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61 Das Ding: o mais primitivo dos êxtimos Das Ding: the most primitive of the êxtimos Gabriela de Freitas Chediak Seganfredo * Daniela Scheinkman Chatelard ** Resumo: Esse artigo pretende destacar o neologismo “extimidade” criado por Jacques Lacan, articulando-o ao conceito de das Ding, termo recortado por esse autor de um dos primeiros textos de Sigmund Freud e bastante valorizado no estudo da psicanálise. Das Ding, enquanto o êxtimo mais primitivo, funcionará como balizador do movimento do sujeito em torno do mun- do de seus desejos. Palavras-chave: Das Ding, êxtimo, gozo, real, desejo, psicanálise. Abstract: is paper intends to highlight the neologism “extimidade”, created by Jacques Lacan, relating it to the concept of das Ding, a highly appreciated expression in psychoanalysis studies, which was extracted by that author from one of Sigmund Freud’s first papers. Das Ding, while be- ing the most primitive “êxtimo”, works as a referring guide of the subject’s movements around his own world of desires. Keywords: Das Ding, êxtimo, enjoyment, real, desire, psychoanalysis. * Psicanalista, membro da Associação Lacaniana de Brasília, doutoranda em Psicologia Clínica e Cultura/Universidade Federal de Brasília-UnB (Brasília-DF-Brasil). ** Psicanalista, membro da Escola dos Fóruns do Campo Lacaniano, docente do Programa de pós-graduação em Psicologia Clínica e Cultura/Universidade Federal de Brasília-UnB (Brasília- DF-Brasil). Cad. Psicanál.-CPRJ, Rio de Janeiro, v. 36, n. 30, p. 61-70, jan./jun. 2014

05 Das Ding o Mais Primitivo Dos Extimos

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Das Ding, paulo

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    Das Ding: o mais primitivo dos xtimosDas Ding: the most primitive of the xtimos

    Gabriela de Freitas Chediak Seganfredo*Daniela Scheinkman Chatelard**

    Resumo: Esse artigo pretende destacar o neologismo extimidade criado por Jacques Lacan, articulando-o ao conceito de das Ding, termo recortado por esse autor de um dos primeiros textos de Sigmund Freud e bastante valorizado no estudo da psicanlise. Das Ding, enquanto o xtimo mais primitivo, funcionar como balizador do movimento do sujeito em torno do mun-do de seus desejos.Palavras-chave: Das Ding, xtimo, gozo, real, desejo, psicanlise.

    Abstract: This paper intends to highlight the neologism extimidade, created by Jacques Lacan, relating it to the concept of das Ding, a highly appreciated expression in psychoanalysis studies, which was extracted by that author fromone of Sigmund Freuds first papers. Das Ding, while be-ing the most primitive xtimo, works as a referring guide of the subjects movements around his own world of desires.Keywords: Das Ding, xtimo, enjoyment, real, desire, psychoanalysis.

    * Psicanalista, membro da Associao Lacaniana de Braslia, doutoranda em Psicologia Clnica e Cultura/Universidade Federal de Braslia-UnB (Braslia-DF-Brasil).** Psicanalista, membro da Escola dos Fruns do Campo Lacaniano, docente do Programa de ps-graduao em Psicologia Clnica e Cultura/Universidade Federal de Braslia-UnB (Braslia-DF-Brasil).

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    xtimo um neologismo criado por Lacan para indicar algo do sujeito que lhe mais ntimo, mais singular, mas que est fora, no exterior. Trata-se de uma formulao paradoxal: aquilo que mais interior, mais prximo, mais ntimo, est no exterior.

    A primeira vez que Lacan parece ter usado este termo foi em 1960, no Seminrio 7: a tica da psicanlise. Ao falar da arte pr-histrica, diz que de se admirar que uma cavidade subterrnea com to pouca iluminao e com tantos obstculos visualizao, como a caverna, fosse escolhida como o lugar das primeiras produes artsticas. Diz, ento, que aquilo com que ele vinha trabalhando ao longo desse seminrio como sendo esse lugar central, essa exterioridade ntima, essa extimidade, que a Coisa (LACAn, 1959-60, p. 173) pode nos ajudar a esclarecer a questo da arte nas cavernas. O que faz, ento, Lacan criar esse termo tem relao com a Coisa (das Ding), termo alemo utilizado por Freud j no incio de seus escritos e que ser retomado na leitura lacaniana portando uma cifra de grande valor para a psicanlise.

    Alguns anos depois, em 1969, no Seminrio 16: de um Outro ao outro, Lacan retoma esse neologismo para falar do ponto vazio da estrutura. Ao situ-ar o lugar do objeto a, nos diz: [...] ele est num lugar que podemos designar pelo termo xtimo, conjugando o ntimo com a exterioridade radical. [...] o objeto a xtimo. (LACAn, 1968-69, p. 241). Um dos principais conceitos criados por Lacan, o objeto a, xtimo.

    Apesar de o termo surgir textualmente apenas nesses dois seminrios de Lacan, a ideia que ele porta parece percorrer toda a extenso da psicanlise, marcando o devir do sujeito. Est na origem, em das Ding. Marca o lugar do objeto a, operador da estrutura, ponto de real onde o mais ntimo est lanado fora, no exterior. Carrega consigo a essncia da psicanlise.

    Para tentar entender a estrutura do sujeito, Lacan, em certo momento de seu ensino, parte para o estudo da topologia. no Seminrio 9: a identificao (1961-62), introduz a figura do toro para localizar ali a funo do sujeito. O sujeito ex-siste, nos dir Lacan. Existe primeiro fora, no discurso do Outro. O Outro aparece, ento, como o xtimo do sujeito. Em A instncia da letra no inconsciente ou a razo desde Freud (1957), Lacan vai falar de uma excentrici-dade radical de si em si mesmo com que o homem confrontado (LACAn, 1957, p. 528). Ou seja, o centro do homem, o mais ntimo de si mesmo, est exterior a ele. A seguir, continua falando de uma inegvel heteronomia radical

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    do humano. Freud j a demonstrava ao falar da ferida narcsica com o surgi-mento do inconsciente: o homem no senhor nem em sua prpria morada. Lacan continua com um questionamento: Qual , pois, esse outro a quem sou mais apegado do que a mim, j que, no seio mais consentido de minha identi-dade comigo mesmo, ele que me agita? (Ibid.). O inconsciente o discurso do Outro, o desejo o desejo do Outro, no seriam formas de falar da exti-midade intrnseca ao sujeito?

    A palavra xtimo nos faz lembrar o Unheimlich, o estranho familiar, que Freud usa em seu texto O estranho (1919). Ambas parecem carregar certa am-biguidade. Ambas parecem portar a noo de interior e exterior acontecendo juntos. Ambas so capazes de conjugar o fora e o dentro. Ambas apontam para algo da ordem do real. xtimo: o mais ntimo, o mais particular, o mais inte-rior, mas que est excludo, fora. Unheimlich: aquilo que estranho, estrangei-ro e familiar ao mesmo tempo.

    Enquanto fratura constitutiva da intimidade (MiLLEr, 2010, p. 17), o falante tem certa dificuldade para aceitar a extimidade como algo seu, pois se revela como o elemento do real que traz consigo as marcas do horror.

    Lacan vai buscar em Freud, Kant e Heidegger elementos para se apro-fundar na elaborao do conceito de das Ding, estudo to fundamental para a psicanlise. Em Freud, essa palavra aparece j no Projeto para uma psicolo-gia cientfica (1950[1895]). Para entendermos o conceito de das Ding ser preciso nos remetermos experincia do desamparo descrita por Freud nes-se mesmo texto.

    no incio est o desamparo. O beb humano ao nascer, ao contrrio do animal, porta certa prematuridade constitucional, uma insuficincia de recur-sos fsicos e psquicos para garantir sua sobrevivncia no mundo com inde-pendncia. Sua existncia intra-uterina parece ser curta em comparao com a maior parte dos animais, sendo lanado ao mundo num estado menos aca-bado (FrEUD, 1926[1925], p. 179).

    imerso na prematurao de seu nascimento, o humano, portanto, inca-paz de pr fim s excitaes que lhe acometem, advindas do mundo exterior, e as vive como algo avassalador. Mergulhado nesse estado de desamparo, ele grita. num primeiro momento, o grito surge como uma forma de descarga motora, mas nenhuma descarga pode produzir resultado aliviante, visto que o estmulo endgeno continua a ser recebido e se restabelece a tenso [...] (FrEUD, 1950[1895], p. 431). O grito torna-se, ento, o primeiro apelo do

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    humano, a primeira forma de comunicao. Apelo por um alvio das tenses sentidas como invasivas.

    O beb necessitar, pois, da interveno de uma ao especfica (Ibid.) para tentar remover o excesso de estmulos que lhe acomete. Sozinho, porm, ele no capaz de promover essa ao especfica. Torna-se necessria uma ajuda alheia, nos diz Freud (Ibid.), a ajuda do grande Outro, para usar a ter-minologia de Lacan, para fazer vigorar a ao especfica. Da a clebre frase de Freud: o desamparo inicial dos seres humanos a fonte primordial de todos os motivos morais (Ibid.). necessitar, portanto, de um objeto que lhe d am-paro, que lhe fornea um suporte e amenize o mal-estar de uma brusca sepa-rao. Assim, esse objeto, essa ajuda alheia, que ter a funo de proteger e aliviar as tenses, ser revestido de grande valor e onipotncia. Essa situao cria a necessidade de ser amada que acompanhar a criana durante o resto de sua vida (FrEUD, 1926[1925], p. 179).

    Estamos diante do que se chama, em psicanlise, de Experincia do Ne-benmensch ou do Prximo. importante destacar que este Outro ou este pr-ximo que promover a ao especfica no um outro qualquer, no um outro semelhante, mas algum que possui um diferencial, que j est submeti-do ao simblico. Portando o corte do simblico, esse prximo, autor da ao especfica, no vai dar conta de amenizar toda a avalanche de estmulos que submerge o humano. Algo escapa, resta no real, das Ding.

    Freud, no Projeto, descreve a experincia com o prximo como que se decompondo em dois componentes: [...] num componente no assimilvel (a Coisa) e num componente conhecido do ego atravs de sua prpria experin-cia (atributos, atividades) o que chamamos de compreenso (FrEUD, 1950[1895], p. 491). Em outras palavras, a experincia do Nebenmensch pode ser dividida em duas partes: uma parte coesa, que no d conta de tudo, parte que resta no real e que tem relao com das Ding; e, a outra que consegue dar conta de promover alguma satisfao e que entra, por isso, no processo de memria, que so as representaes. A partir disso, na nossa leitura, entende-mos que das Ding aquilo que cai da experincia do sujeito com o Nebenmens-ch. O Ding o elemento que , originalmente, isolado pelo sujeito em sua experincia do Nebenmensch como sendo, por sua natureza, estranho, Fremde (LACAn, 1959-60, p. 68). Estranho, assustador, resto cado no real do encon-tro do humano com o prximo.

    Trata-se desse interior excludo que, para retomarmos os pr-prios termos do Entwurf, , deste modo, excludo no interior.

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    no interior de qu? De algo que se articula, mui precisamente nesse momento, como o Real-Ich que quer dizer, ento, o real derradeiro da organizao psquica, real concebido como hipo-ttico, no sentido em que ele suposto necessariamente Lust-Ich (LACAn, 1959-60, p. 128).

    Marco Antnio Coutinho Jorge (2002) nos esclarece, ao dizer que das Ding o objeto perdido da espcie humana, diferenciando do objeto a que o objeto perdido da histria do sujeito. Enquanto o primeiro est ligado pr-histria e, portanto, a um momento mtico, o segundo liga-se histria do sujeito.

    Das Ding percorre grande parte do Seminrio 7: a tica da psicanlise de Lacan. Como j dissemos, foi nesse seminrio, e para falar de das Ding, que Lacan cria o neologismo extimidade. O Ding como Fremde, estranho e po-dendo mesmo ser hostil num dado momento, em todo caso como o primeiro exterior, em torno do que se orienta todo o encaminhamento do sujeito. (LACAn, 1959-60, p. 69). O primeiro exterior, o mais primitivo dos xtimos, que balizar todo o movimento do sujeito em torno de seu mundo de desejos.

    Lacan tenta situar das Ding:

    [...] das Ding no centro, e em volta o mundo subjetivo do in-consciente organizado em relaes significantes, para vocs ve-rem a dificuldade de sua representao topolgica. Pois esse das Ding est justamente no centro, no sentido de estar excludo. Quer dizer que, na realidade, ele deve ser estabelecido como ex-terior, esse das Ding, esse Outro pr-histrico impossvel de es-quecer, do qual Freud afirma a necessidade da posio primeira sob a forma de alguma coisa que entfremdet, alheia a mim, embora esteja no mago desse eu, alguma coisa que, no nvel do inconsciente, s uma representao representa (LACAn, 1959-60, p. 92).

    Algo que est no mago do eu, mas que alheia a mim, est fora. Exterior ntimo: xtimo. E toda a busca do sujeito vai direo de reencontrar das Ding, a Coisa, o Outro absoluto do sujeito (Ibid.), esse Outro pr-histrico ines-quecvel (Ibid., p. 70). A questo que esse objeto , desde o incio, perdido: (...) esse objeto, pois se trata de o reencontrar, ns o qualificamos igualmente de objeto perdido. Mas esse objeto, em suma, nunca foi perdido, apesar de tratar-se essencialmente de reencontr-lo (Ibid., p. 76). O sujeito vai em busca de encontrar aquilo que no pode jamais ser reencontrado. reencontramo-lo no mximo com saudade. (Ibid., p. 69). O reencontro com das Ding ns no

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    poderamos suportar, seria o extremo do prazer, a prpria morte. Heidegger nos define a morte de uma forma belssima ao dizer que A morte o escrnio do nada (HEiDEggEr, 2002, p. 156). Ou seja, a morte guarda em seu cofre das Ding. Encontrar das Ding seria esbarrar com a morte. Mas justamente a busca desse reencontro que move o desejo humano.

    Trata-se para ns no apenas de aproximar das Ding, mas seus efeitos, sua prpria presena no mago da tramia humana, ou seja, de se ir vivendo no meio da floresta dos desejos, e dos com-promissos que os tais desejos estabelecem com uma certa reali-dade, seguramente no to confusa quanto se pode imaginar (LACAn, 1959-60, p. 132).

    Lacan situa das Ding num lugar anterior ao recalque, o que ele chama, originalmente, de o fora-do-significado (Ibid., p. 71). Pleno e vazio ao mes-mo tempo, ou melhor, pleno de vazio. Ora, no seria este o lugar do real? Tra-ta-se de uma realidade muda que comanda e ordena, vai dizer em outro momento. realidade muda de significados, de significantes, rida, mas que, ao mesmo tempo, fornece todas as coordenadas e diretrizes.

    [...] essa Coisa, o que do real - entendam aqui um real que no temos ainda que limitar, o real em sua totalidade, tanto o real que o do sujeito, quanto o real com o qual ele lida como lhe sendo exterior - o que, do real primordial, diremos, padece do significante (Ibid., p. 149).

    no horizonte, para alm do princpio do prazer, delineia-se [...] das Ding [...] (Ibid., p. 93), lugar do para alm, lugar do gozo. Um dos ouvintes do se-minrio de Lacan sobre a tica, ao ouvi-lo falar de das Ding, a compara com a funo de um vacolo. Termo da biologia, vacolo definido como um espa-o cheio de lquido incolor que se forma no protoplasma das clulas vegetais (FErrEirA, 1986, p. 1748). um espao no interior de uma clula ao qual vedado o acesso. isso nada mais que a definio de xtimo.

    no centro, das Ding, o real primitivo, plo de atrao gravitacional. Em volta, os infinitos objetos que o sujeito constri para tentar recuperar o pleno primitivo. Como j dissemos, este reencontro da ordem do insuportvel, mas, como polo de atrao, ele que vai promover o movimento, o desassos-sego do sujeito em busca de seus desejos.

    Aproveitando-se de Heidegger, Lacan, no seminrio sobre a tica, ilustra a teorizao da noo de das Ding servindo-se do exemplo do oleiro na cons-

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    truo de um vaso. A modelagem de um vaso acontece a partir do nada, cria-o ex-nihilo. O nada, o furo, o vazio do vaso justamente o lugar onde se situa das Ding. As paredes e o fundo do vaso so as redes significantes mode-ladas pelo homem em torno do real hipottico que a Coisa. A criao de um objeto, diz Lacan, pode ter a funo de representar a Coisa, de marcar seu lu-gar, ao contrrio de evit-la. O vaso, portanto, tem essa funo de trazer not-cias sobre das Ding.

    [...] como um objeto feito para representar a existncia do vazio no centro do real que se chama a Coisa, esse vazio, tal como ele se apresenta na representao, apresenta-se, efetivamente, como um nihil, como nada. E por isso que o oleiro, assim como vo-cs para quem eu falo, cria o vaso em torno desse vazio com sua mo, o cria assim como o criador mtico, ex nihilo, a partir do furo (LACAn, 1959-60, p. 153).

    E no seria esse o objetivo de uma psicanlise? isto , a partir do desejo do analista possibilitar ao sujeito, enquanto oleiro, construir seu vaso utilizando- se de suas redes significantes em torno do vazio, do real primordial que das Ding? no justamente das Ding que nos move na construo de nossa fico, de nossa histria enquanto sujeito desejante? Pois, h uma identidade entre a modelagem do significante e a introduo no real de uma hincia, de um furo (Ibid.). nenhum vaso igual ao outro, h uma identidade entre o vazio ocupa-do por das Ding e a costura dos significantes ali amarrados.

    Onde est o mal?, pergunta Lacan, em certo momento de seu semin-rio. E ele responde:

    Pode estar na Coisa dado que ela no o significado que guia a obra, dado que tampouco a matria da obra, mas, dado que, no mago do mito da criao ao qual est suspensa toda a ques-to [...] ela mantm a presena do humano. Trata-se, com efeito, da Coisa, ela dado ser definida por isto - ela define o humano, embora, justamente, o humano nos escape (Ibid., p. 156-7).

    Lacan define tanto a Coisa quanto o humano como sendo aquilo que do real padece do significante (Ibid.). O mal, portanto, est na Coisa, nisso que h de humano, nesse para alm do princpio do prazer, no gozo. no seria, ento, a aproximao com o mal, isto que h de humano, to meu e to fora, to xtimo, o que possibilitaria ao sujeito se enveredar pelos caminhos de seu estilo, de sua singularidade?

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    Sabemos que o mal sempre foi algo rechaado pela humanidade. Criam- se, a todo o momento, artimanhas para dele escapar, para se distanciar dessa Coisa assustadora. Dessa forma, Lacan (1959-60, p. 164) vai dizer que a arte caracteriza-se por uma organizao em torno da Coisa, do vazio. A religio, por sua vez, busca a evitao do mal, apresentando um ser bom que Deus para nos proteger da Coisa. H aqui o deslocamento de das Ding. A cincia, por outro lado, prezando o saber absoluto, isto , fixando-se no poder do simblico, rejeita a presena do vazio, do real e trabalha com a foracluso da Coisa. E a psicanlise, o que faz com das Ding? Utiliza-a como fio condutor da trama do sujeito em busca de seu desejo? Como? Fazendo-a operador de uma busca, de um movimento que permita ao sujeito romper com o mesmo e inventar seu estilo? Acreditamos que a psicanlise, a partir do desejo do analista, pode propiciar ao sujeito contornar a Coisa. Como isto? O sujeito que se dirige Coisa, buscando reencontrar a satisfao plena, deve encon-trar no meio do caminho um limite, a castrao. E deve suportar esse limite, ou seja, suportar o desejo como falta radical para permanecer desejante. A psicanlise possibilitaria ao sujeito vislumbrar ou entrever o real a partir do parapeito da janela. Ao contrrio do heri da tragdia que parece sempre ir alm desse limite.

    A histria de Antgona, da tragdia grega, ilustra bem o encontro com a Coi-sa, este ir alm do limite, ultrapassar o mais alm do princpio do prazer. Antgona filha de dipo e Jocasta e est condenada morte por lutar pelo funeral se seu irmo Polnices, morto num duelo com seu irmo Etocles, que tambm morreu. O funeral de Polnices foi proibido por Creonte, o rei da cidade, porque ele era do exrcito inimigo. Ao lutar pelo funeral de seu irmo, Antgona ficou no entre--duas-mortes (Ibid., p. 327). Ou ela morria em vida, cumprindo a determinao de Creonte e submetendo-se ao gozo do Outro, ou ela optava por seguir o seu de-sejo, fazer o funeral do irmo e pagar o preo com sua morte. Faz a opo de seguir seu desejo. Lacan nos diz que [...] Antgona leva at o limite a efetivao do que se pode chamar de desejo puro, o puro e simples desejo de morte como tal. Esse de-sejo ela o encarna (Ibid., p. 342). Antgona encarna o desejo, ficando na histria como o exemplo trgico do desejo absoluto.

    Antgona se apresenta como autnomos, pura e simples relao do ser humano com aquilo que ocorre de ele ser miraculosa-mente portador, ou seja, do corte significante, que lhe confere o poder intransponvel de ser o que , contra tudo e contra todos (Ibid., p. 341).

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    Ter das Ding como parceira nos torna desejantes, encontr-la, nos mortifica. Dessa forma, [...] o sujeito verdadeiro, para no dizer o bom sujeito, o sujeito do desejo, [...], no nada alm da Coisa, que dele o que h de mais prximo, em-bora mais lhe escape (LACAn, 1960, p. 662). Que possamos fazer de das Ding a companheira do sujeito desejante o que se espera, pois, de uma psicanlise.

    Gabriela de Freitas Chediak [email protected]

    Braslia-DF-Brasil

    Daniela Scheinkman [email protected]

    Braslia-DF-Brasil

    Tramitao:recebido em 10/10/2013Aprovado em 22/12/2013

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