Anatol Rosenfeld - Shakespeare

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    . . o t'tt' . M t 1 ' . . .. Sn'wM nt,wow RCa te'S,,"

    anatol rosenfeldTEATROMODERNO

    .tCol~50 DebatesDirigida por J. Guinsburg

    !'.I.

    .'.

    Equlj,c de realita~ao - Organiza~ao: Nancy Fem~ndes e 1. Guinsburg;Revisao: Ang~litaDogo Pretel e Vera Lucia Bclluzzo Bolognani; Produ-~50: Ricardo W. Neves e Adriana Garcia.

    .~\\f~~. ~ EDITORA PERSPECTIVA~l\~

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    6. SHAKESPEARE1,.' Shakespeare e b Romantismo

    II1\

    A descoberta ~e a leota assimilacao da obra deShakespeare no cohtinente europeu e urn capitulo fas-cinante da historia da literatura e do teatro. Ja pelosfins do seculo XVI os? f amosos comediantes inglesessurgiam principalrriente nos pafses da Europa Central,convidados por prfncipes ou perambulando pelos paf-ses. Ao lade de Marlowe, Kyd, Massinger, etc., apre-sentavam tambem pecas de Shakespeare. No entanto,nao vinham como interpretes de urn grande poeta dra-matico. A propria Iingua inglesa teria impedido, no77

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    infcio, tal empenho literario, E as traducoes que poucoa pouco iam surgindo deformavam os originais de urnmodo atroz. Pelo menos a documcntacfio alernfi rnos-tra que a pr6pria lingua, naquela fase, era totalmenteincapaz de reproduzir, em prosa ou verso, a riquezada obra shakespeariana.Antes de tudo, porem, os comediantes inglesesvinham com contratos que os empregavam como rmi-sicos e acrobatas, expoentes de espetaculos mais oumenos circenses de que 0 teatro declamado era somenteapendice. Mesmo esse apendice tinha de ser adapt adoao gosto rude da epoca da Guerra dos Trinta Anos.Prevalecia 0 espetaculo bruto e sensual; a palavra erasubstitufda, em larga medida pela pantomima. Emmuitos casos 0 texto servia apenas de esquema para aimprovisacao de cenas sangrentas e crucis, contraba-lancadas pelas obscenidades quase inconcebfveis daff .0 A 19uracomlca.- ~~ somente no seculo XVIII que;: se [nicia urnisfor~:') mais serio para apreender 0 ut!iver~ shakes-peariano. Mas ainda David. Ga:rick, 0 (rande ator quetanto vse empenhou pela difusao da olira de Shakes-peare} apresentou nas suas viagens a . ; Franca _textosmutilfidos. As divers as adaptacoes da ,,_epoc~apresen-tam ffamlet e Otelo com happy end. D~ grande impor-tanCitr iriam ser, na Franca dos meadcf~ do, seculo, astradu~oes de De la Place; cerca de yinte;anos maistarde; (1762-1766) seguem-se as prim{!ras yersoes ra-zoav~ls em alemao, feitas por Wieland, homern tipicodo ,Rbcoc6 que, evidentemente, consegiiiu s~ aprenderumarfaceta diminuta de Shakespeare, Jraca:?sando emtodo~ os aspectos que exigem grandezaj pai?ios, paixaovio!~hta ou em que se acentuam 0 tet~tco, {, terrivel eo m~nstruoso.,; ~

    ~:;EmFranca, a grande tradicao clas~ica ~~inava comdeni;'isiado poder conservador para qu~ os ~sforc;os dosade~*os e adaptadores de Shakespeate ~~dess:m tervingRdo. Mesmo urn homem como Vnltaire, ate certopon~o aberto a grandeza de sua obra,pao rod~a admi-tir tis bassesses, bouijonneries, indecences, tnconve-nantes extravagances, grossieres atrd'cites _de Shakes-peajc ~ multo rnenos as irreglliarite.i, in/falites amisiura do tragico e comico, do sultlirne e baixo, 0

    " , desrespeito pel as famosas regras e unidades - pormais aimable que Ihe parecesse esse barbare e por maisseduisant este lou.Ja na Alemanha, 0 classicismo cenico nao tinharafzes tao profundas. Foi. antes, urn produto de im-portacao francesa, imposto quase a forca pelo Profes-sor Gottsched, que debalde procurou naturalizar osalexandrinos. Na luta contra 0 dominic da tragedieclassique (para a burguesia alema ascendente expres-sao do absolutismo odiado), tomando 0 Iado dos ingle-ses, desde logo mais aparentados pela Iingua, anteci-param-se aos romanticos alguns esteticistas suicos esobretudo Lessing, ainda representante da Ilustracaoracionalista. Como padrao desta 1uta foi proclamadoShakespeare, 0 grande abolicionista que libertou gera-

    c;oes sucessivas de poetas das cadeias classicas. Les-sing foi 0 primeiro a atribuir a Shakespeare a grandezade maior poeta tragico desde os gregos e a exalta-locomo urn "genic" superior a Corneille e Racine. Foicom ele que se inicion na Alemanha 0 esforco titanicode conquistar 0 universe shakespeariano. Esforco taobern sucedido que, ria leota assimilacao de todos osaspectos e nuancas da obra, primeiro em prosa, depoisem verso, a propria lingua alema se renovou, plasmoue educou.Lessing tinha ainda que justificar Shakespeare: esuas "irregularidades" perante 0 tribunal da razfio.Fe-lo tentando mostrar que a sua obra corresponde emgrau maior a Poetica de Aristoteles e a pr6pria "natu-reza" do que ados classicos franceses. Para 0 criticoracionalista, 0 que sobretudo importa e a jinalidade daobra de arte - nao as necessidades expressivas doautor, ressaltadas pelos romanticos. Sendo a finalidadeda tragedia a catarse aristotelica, 0 que se impoe cproduzir a ilusiio mdgica que leva a identificacao emo-

    cional do publico' com 0 mundo cenico. SegundoLessing, Shakespeare conseguiu isso muito melhor semas regras do que Voltaire coin elas. 0 que ernpolgaLessing e a verdade e a forca de conviccao das per-sonagens shakespearianas; estas nao servem mais parasustentar a acao mas e a acao que e meio para apre-senta-las, A partir dai, a unidade da peca se baseia79

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    .. ;

    no heroi e as regras, junto eom as unidades, tornam-sesecundarias.Se para Lessing 0 genio ainda e um espirito queorientado por finalidades absolutas (a catnrse) , sab~e~colher em cada easo os meios adequados para alcan-

    c;a-Ia~, s~m ater-se a canomes exteriormente impostos,os pnrneiros romanticos nao admitem mais outra fina-lidade que a propria cxpressao do genic. 0 culto do"genic original" e 0 traco mais marcante da primeiraonda romantica macica, chamada Sturm und Drang(Tempestade e 1mpeto, 1770-1784), entre cujos ex-poe~tes se destacam Herder, 0 jovem Goethe, 0 jovemSchiller e Lenz. 0 conceito do genic reune todas asidelas e aspiracoes do movimento - e todas elas seencamam no genic supremo - Shakespeare. A suaobra desencadeia nesta geracao enormes forcas vitaise uma verdadeira revolucao poetica. Transformado emmto, e 0 criador supostamente "Incbnsclente" e "pri-m~ivo", 0 bardo e vidente elemeritar, ~omo Ossianpojta-voz da "verdade" enquanto e~pres~ao imediata,esJlontanea e .nao raciocinada da afJna; ~ mensageirode, esferas mars altas, mediador do ihfinitp no mediumd~ finitude. J a nao imita a natureja: { ele .mesmourlJa forca natural. Nao cria imitandb, 'm~s exprimind~a }latu.reza que nele se manifesta. ;iLig

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    I,

    '')nao decorre de nenhum sofrimento ou motivo parti-cular (como 0 da vinganca de Hamlet ou do amorfrustrado de Werther), mas que se sente aniquiladopelo proprio fato de existir, terrivelmente isolado, nummundo renascentista ou pos-renascentista, em que 0homem individual, tornado, ele mesmo, 0 seu propriosentido, ja nfio encontra amparo numa ordcm univer-sal. Hamlet - cxatamcnte como Werther - c des-trufdo de dentro de si mesmo, nao por alguma razaoexterior.o "shakespearizar" tornou-se moda entre osjovens "genies", dos quais cada qual tirou 0 naco quemais 0 atraiu, numa conquista parcclada que, longe defazer jus a Shakespeare, geralmente the deformou asintencoes ou partiu de interpretacoes diibias, mas queainda assim resultou em enriquecimento e intenso irn-pulso criativo. Assim, 0 jovem Schiller se apoderouparticularmente dos grandes criminosos e intrigantes deShakespeare - dos Macbeth, Jago, bRichhrd, etc. -qti~,0 fascinaram sobremaneira; masto meralista kan-tiarlo com que encarava os patifes e malfeitores porele criados pouco tinha que ver com ~ha)(espea~e.

    > J a 0 infeliz Lenz - levando ceitas tendencies deSh~kespeare ao extremo - criou 0 .f'drama de farra-po~;', assim chamado por causa da ;~seqii~ncia desco-sid~ de cenas brevissimas. Caracterfsiico da dramatur-gia~ de.Lenz e 0 forte tra~.o grot$.co, :.tragiComico.Atendo-se a urn aspecto parcial de Sbakespeare e exa-ger'ando-o, exigiu - como recentemente Duerrenmatt-: ,~que "os nossos autores de :o~6t~ias'~;e~cr~;es~em"aft mesmo tempo de modo comico, e trpgtco , vistoqu~ "a comedia, enquanto quadro ~Je.c9stum:es, naopb~e ser apenas ridente quando a sociednde se tornauhf caso serio". ' f _ - ,< , F6i a mistura do dispar - antielassiCa p ar e xc el-le~e que Victor Hugo realcou no pr5~aciq' a Cro~wel1(1~27) tres anos antes de 0 romanjismd frances, noni~oravel escandalo provocado pelf! apr.~sentaGao deH e r n a n i veneer a batalha contra a itradi~ao classics,ai~da agora sob a lideranca do dramaturgo ingJ,es. Foiseih duvida a Franca que entao se , tornou porta-vozuniversal de Shakespeare. Atraves ~da mediacao deMiidame de Stael, as tendencias do romantismo alemao

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    foram transmitidas a Franca, ha muito preparada pordesenvolvimentos proprios para receber 0 germe darebeliao, Essa disposicao tornou possivel 0 imensoexito de uma companhia inglesa que, em 1827/28,apresentou Shakespeare em Paris. 0 entusiasmo deHugo foi tamanho que 0 chamou "0 maior criador de-pols de Deus". "Em nome da verdade, todas as regrasestiio abolidas ... ", ao que Alfred de Vigny acrcsccn-tou: "Nada de unidades, nada de distincoes entre osgeneros, nada de estilo nobre".

    No prefacio mencionado, Shakespeare afigura-sea Hugo (como a Herder e Lenz) 0 mestre que soubefundir "num so alento. .. 0 horrendo e 0 ccmico, atragedia e a comedia", 0 drama deve ser realista e arealidade surge da combinacao "de dois tipos: 0 gro-tesco e 0 sublime que se entrelacam no drama, damesma forma como na propria vida ... " SO -Shakes-peare teria consegnido unir 0 antagonico, particular-mente 0 terrfvel e b burlesco.Ouase toda a, dramaturgia romantica frances a e ,de urn ou outro modo.: influenciada por Shakespeare.Uma das mais belas pecas romanticas - Lorenzaccio(1834), de Alfredjde Musset - lembra no sell parce-lamento extrema as obras quase contemporaneas de G.Buechner. Como 0Werther, esta peca retoma 0 temade Hamlet - do indivfduo em si mesmo dissociado,ironico, devorado ~ela desilusao, pelo ceticismo, pcla"melancolia da alma moderna" - sobretudo 0 motiveda loucura histrionica de Hamlet: Lorenzaccio desem-penha 0 papel da devassidao ate se tornar realmente que no inicio apenas parecia ser.Novos grupos de romanticos alemaes descobriramentrementes novos tesouros na fonte inesgotavel: 0Shakespeare da atmosfera fantastica, maravilhosa,feerica, misteriosa., dos seres elementares, de Caliban,Ariel, Puck, e tudo isso associ ado a uma ironia quetudo impregna, a tim humor que tudo abarca. Duzen-tos anos de esforcos resultam, enfim, na monumentale quase se diria adequada traducao de Schlegel (0"quase" deve ser acentuado), no renascimento de Sha-kespeare numa estrutura lingiifstica diversa, numa ver-sao que retine e supera todas as tentativas anteriorese compoe, num todo, os aspectos pouco a pouco assi-

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    milados pelos predecessores. Mas 0 processo da con-quista de Shakespeare nao se detem com os roman-ticos. A grande obra de arte e terra sem fim e cad aepoca, reencontrando-se nela, explora-lhe novas re-gioes e novas tesouros.

    ,'!

    2. Crltica Shakespeariana: certamente exagerada a afirmacao de OskarWalzel, de que a Inglaterra aprendeu da Alemanha ahonrar em Shakespeare 0seu maior escritor. Parececerto, no entanto, que a adrniracao tributada a ele pelosrornanticos alemiies supera de longe a que ate entfiosuscitara na pr6pria terra. Shakespeare tornou-se paraas alemaes, depois de Lessing, a sfmbolo maximo dogenio e da forca criativa no terreno da Iiteratura -mais do que Homero, Dante e a proprio Goethe. Naos6 passou a exercer profunda influencia sobre a maio-ria dos dramaturgos alemaes, Inspirou .tarnbem urnv~sto labor de analise e interpreta~ao _L labor quepr'bduziu numerosos ensaios crfticos, alguns de quali-Mde excepcional, ~,:, ,": f As rapsodias do jovem Goethe ?'sobrifShakespeareai:lda ::nao tem propriamente valor ~r1tico. Exprimemo entusiasmo de um poeta em formai,'ao pelo seu Idolo:

    ;;' W illiam , astro da mais bela altui"h, a ~6s devo tudoqll!mto sou!, ,: :';-;

    'f Mas este entusiasmo caracteriza nao so a joveme)rom!ntico Goethe da decada de f 770/ fase em quee~reveu 0 Werther e concebeu o;.Fausto. Ainda aCibethe da fase madura, de tendencias classicas, apre-~ema-nos no romance Os Anos de; Apt~ndizagem deWilhelm Meister (1795 e ss.), Unl'a bela analise docltrater de Hamlet ("critica de carater" que depois set~mouo torte de A. C. Bradley). A tragedia do heroi6~explicada a partir do repentino desabamento da vidafl~ica e moralmente segura da su, juventude (paisqpethe the pinta, por meio de infer~ncias, toda a vidaapterior ao inicio da peca) ; dai a:destruic;ao da suacQnfilinc;ana ordem moral, antes sirhbolizada pelo ma-tiimonio dos pais. Nesta situacao de hbalo tern deenfrentar a tarefa da vinganca:!I'II\I

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    Urn efeito grande imposto a uma alma que niio tern 0vigor necessario a este feito ... Urn ente bela, puro, nobre,de elevado carater moral, mas sem a Corp vital que fa;' (Jher6i, sucumbe sob uma carga que niio pede nem suportar,nem rejeitar; cada dever e-Ihe sagrado; este lhe pesa em de-masia.Esta caracterizacao romantizante suscitou rnuitaadmiracao, tanto na Alernanha como na Inglatcrra,excetuando-se naturalmente T. S. Eliot, que nunca sedeu bern com Goethe; Hegel apoia-se quase por intei-ro nela, na sua interpretacao de Hamlet.Entretanto, Erich Auerbach (em Mimesis) criti-ca-a de novo, sem diivida com razao, Considera-a umaprojecao do rnoralismo burgues sabre a rnundo renas-centista, bern mais elernentar, de Shakespeare.Sera que Goethe nlio sentiu a forca primitivn... docarfiter de Hamlet, seu espirito cortnnte, Que Iaz tremer osque 0 cercarn, It astucia e ousadia de suas trarnas, sua durezaselvagem contra Ofelia, a violencia com que enfrenta a mae,a fria calma com que Iiquida os cortesaos que the atravessamo caminho, a audacia elastica de todos os seus pensamentose palavras?Essa caracterizacao, inteiramente contraria a deGoethe, se baseia numa tradicso mais recente - a deGundolf que" sell} diivida, provem de Nietzsche.Ja velho, Goethe ainda se preocupava com a fe-

    nomeno de Shakespeare, escrevendo urn ensaio cujotitulo parece indicar certo aborrecimento com a maniashakespeariana dos romanticos: Shakespeare sem tim(1813/26). Mas apesar do titulo e da frase inicial -"Ja tanto se disse sobre Shakespeare que poderia pa-recer que nada mais houvesse a dizer sabre ele" -,Goethe acaba fazendo mais uma das inurn eras corn-paracoes entre a tragedia antiga e a tragedia shakes-peariana. E, alias, interessante que Goethe consideraindispensaveis cortes amplos na encenacao de Shakes-peare; .sem isso, ele logo desapareceria dos palcosalemaes -

    o que de resto nilo seria rienhuma desgraca; pois 0 apre-ciadot solitario ousoclavel (como leitor ou ouvinte, atravesda recitacao) sentira tanto mais prazer em Shakespeare.85

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    . , . , l 1 l i 1 . . 5 '.7.. 7 .2 .7 .7 = r lJ CM 'II m " 5 I i i r l 'l I n l l l j l ' lI I I I ' e l M t . ? _ t l i ll " 1 I I I7 . r . r . _ ~ 1 l I I I I I 1 I I i I I ! l ! 1 i l I ! i l I . \ l H l B I I I i l W l ! l O f o i ' C " " " " " ' l l ; i < " , , .r=sr=>,.~ ')

    De importancia 6 a critica de Friedrich Schlegel,porque a apreciacao de Shakespeare, por parte do lfderintelectual da primeira onda propriamente romantica,se combina e choca com 0 grande amor que devota aCalder6n. Lope de Vega, de quem tern opiniao des-favoravel, se teria detido no primeiro degrau da artedramatics, apresentando apenas "a esplendorosa super-ficie da vida, a aparencia passageira do rico quadrouniversal", 0 segundo degrau e aquele em que, aolade da paixao e da aparencia colorida, 0 Mundo e avida se apresentam no seu sentido profundo, nas sunscontradicoes e confusoes estranhas e enredadas e emque 0homem e sua existencia, este enigma muito envol-vido, nos surgem como tal, como enigma. Se isso fosseo tinico fim do dramaShakespeare nao seria apenas 0 primeiro entre todosnesta arte, mas nem de longe se Ihe poder.a cornparar nenhumantigo ou moderno. "

    ~\ Mas a arte dramatica tern um\ alvJ ainda maisel~vad'o. Nao s6 deve expor 0 eni#,\na da existencia,dtrye tambem soluciona-lo; deve conauzii~a vida, atra-v6t; da confusao da realidade presenje, p~ra alern dela'~~\e6 ultimo desenvolvimento e '; a dt'eisao final".R~tirando 0 veu mortal, ela nos ~eve;apresentar 0mfsterio do mundo invisivel, refletidb numa visao fan-tat,iosa e mais profunda, para mostrsr ac{ fim como 0f,u:'J1doeterno se liberta do ocaso te(reno: Essa trans-fiturac;ao espiritual e glorificacao da~."homem interno"ep que mais se eoaduna com 0 poeta cristae e nisso9~lder6n e , entre todos, 0 primeirtf e maior., Seme-Ihlmte concepcao, evidentemente iniipira4a a Schlegelp~a sua conversao ao catolicismo, '~ransf,orrna Calde-id p no mais romantico, por mais c\1.sta~ dos poetas,superior mesmo a Dante, que, parti~do desde logo dopcrnsamento cristae, impoe este, alegoricamente; a vida,a 9 passo que Calder6n, partindo cia vida, eleva-a abdeza simbolica do cristianismo. )::2 Apesar disso, Calder6n falha torqu~ precipita as~Ju~ao; esta teria mais efeito se nos deixasse por maist empo na diivida e se caracterizasse.;o enigma da vidac(jm a profundeza de Shakespeare; ;e, enfim, nao noscr:locasse desde logo no sentimento da transfiguracao.

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    Shakespeare tern 0 defeito contrario; cetico que e,poe-nos diantedo misterio da vida, sem acrescentar asolucao, E mesmo quando leva a obra a solucao, 0desfecho e geralmente 0 da tragicidade antiga do nau-fragio completo ou entao, no ,maximo, 0 desfecho"misto" da satisfacao mediana; raramente, porern,aquela amorosa redencao transcendente que dominaem Calderon. A concepcao de Schlegel, fundamental-mente crista, e em essencia antitragica. Dentro do uni-verso cristae nao ha lugar para 0 tragico.Ainda assim, Schlegel chega quase a idolatrarShakespeare e a sua "pintura universal de verdadeinsuperavel". Nela 0 homem e apresentado com "niti-dez por vezes acre" na sua "profunda decadencia", masem toda a parte "transparece a recordacao e a ideiacia altivcz e sublirnidade originals do ser humane",Essa dissonfincia, porern, nao 6 resolvida e assirn

    este poeta que: exteriorrnente se afigura ternperado esereno hicido e jovial, em quem domina 0 intelecto e quesempr~ procede COID",prop6sito, dir-se-ia mesmo com frieza, eno seu sentimento ri'tnis I ri ti rn o ,0 mais profundamente dolo-roso e amnrgamente=trdgicc entre todos os poetas, tanto dostempos antigos coma modernos.Observe-se a~ profunda diferenca na apreciacaodo genic entre os pre-romanticos e este romantico.Aqueles exaltaram, como qualidade do genic incons-ciente, 0 que os ~eoclassicos ate entao haviam d:sta-cado como graves defeitos de Shakespeare - as irre-gularidades "barbaras e primitivas". Em essencia, con-cordam, pois, com a critica neoclassica, somente valo-rizando de modo contrario. J a os romanticos - pelomenos os da prirneira geracao - concebem 0 genic(isto e , Shakespeare) como, espfrito sagaz e ironico,que elabora lucidamente a sua obra.o irmao de Friedrich, Augusto Wilhelm, escreveuprofusamente sobre Shakespeare. A sua traducao de17 pecas de Shakespeare e ainda hoje modelar: dev:-se

    a ela a "encampacao" de Shakespeare pelos alemaes.Como critico analisou e diferenciou com precisao 0, .estilo e a versifidl

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    acentuacao exagerada, sensivel em Hegel e radicaliza-da na apreciacao de Tolst6i, levou a muitos erros.Toda a concepcao de V. Hugo acerca do drama "ro-mantico" de Shakespeare encontra-se prefigurada naanalise do companheiro de Madame de Stael, Nas suasfamosas prelecoes de Viena (1808) - que parecemter influfdo fortemente em Coleridge - afirma:. A arte e poesia antigas visam a severa separacao dodesigual, as romanticas se aprazem em misturas Indlssohiveiset~das as contr~d:i~es - natureza e arte, poesia e prosa, se~riedade e comlcldade... entram em fusao Intima,Schlegel compara a tragedia antiga a urn grupoescult6rieo; os caraeteres eorrespondem as figuras, aa~ao ao agrupamento delas. Nao existe nada alemdisso. Ja 0 drama de Shakespeare (0 drama "roman-

    ti~o") deve ser imaginado como um,;:granl1equadro emqqe, alem das figuras e dos movifuent6s do grupo,agora bern mais rico, ainda 6 repr6duzifJo 0 mundo--amblente e uma vista panoramica, maik distante -tti}io isso sob iluminacao magica l:Iue determlna de"todo vario a impressfio perspectivjca geral, 0 queanora se destaca, bern mais que a tlgura' (0 tipico) c3,: fisionomia (individual), realcadri pelb colorido epl~Ia luz que modelam:;:, as mais sutis nuancas da expressfio. espirltual nas faces.Tfjmbcm podernos Icr profunda mente na alma enos seus mo-vitnentos minimos, meres do olhar que -a escultura s6 podereproduzir de modo imperfeito. ,,:- S excepcional a agudez com qde Schlegei destacaat'impressao perspectfvica geral", ha~o distintivo daaite e doteatro p6s-medievais.; ;,~ Uma das poucas vozes discordantes da epoca 6aide C. D. Grabbe (1801-1836), dfamaturgo contem-pbrllneo de Buechner, muito estHnadd por Alfredr ~ r r y . No entanto, seu ensaio poletnico ~Sobre a Sha-kr.spearomania (1827) e mais umaj dianibe contra oso~ "manfacos" do que contra 0 pi3prio Shakespeare.~,:.aim,ita~ao cega que co~sidera ?et,'a~ta. De qualqucrIrtodo coloca os gregos acima do tn~les e - fenemenoi'~ro na epoea - recomenda a leltura dos classicosffanceses; neles, os dramaturgos aletnaes encontrariamd que lhes falta:88

    ... seriedade, rigor, ordern, forc;a teatral e dramaticn, sere-nidade, r itmo rapido da a~lio. Encontram ali tambern (.,.)uma multidjio de caracteres, como Shakespeare nlio os temmelhores.Como comedi6grafo prefere Moliere.Shakespeare, no comico, nem evitou tantos err os, nernrealizou tanta coisa boa como Moliere.o curioso 6 que a obra de Grabbe se situ a entreaquelas que mais nitidamente mostram a influencia deShakespeare.Ja urn pouco distante 6 a atitude do grande dra-maturgo Friedrich Hebbel (1813-1863). Shakespeareentao ja se tomou urn "bern cultural" classico, Em1858, HebbeI esereve que Shakespeare venceu por

    completo esem diivida toaa Europa comemorara em 1864 0 tricen-tenario de seu nascifnento, os povos germanicos por amor eentusiasmo, os latinos por respeito.Da distfmcia de urn seculo cita Lessing:Shakespeare deve ser estudado e nuo pilhado,E prossegue:Seus (de Lesiing) conternporaneos imediatos nuo 0ouviram e desperdic;aram suns forr;as. Goethe e Schiller, to-davia, depois de passada it primeira embriaguez juvenil, adota,ram este ponto de vista sadie enos deram urn drama nacional,no qual se mantivetam, nas coisas particulares, 0 mais dis-tante posslvel de Shakespeare, ao passo que no seu todo nuncao perderam de vista. Este e 0 caminho moderado que deveser seguido para que 0 beneficio nao se transforme em mal-di~ao.Foi Friedrich Gundolf que, no seu grande livroShakespeare e 0 Espirito Alemiio (1920) apresentouuma especie de balance do encontro dos poetas ale-maes (ate 0 Romantismo) com a obra de Shakespeare

    (sem referir-se de perto a critica shakespearian a alerna,aparentemente ainda nao estudada em livro especiali-zado). Esta obra de urn dos maiores discipulos deStefan George tern 0 defeito de uma linguagem ama-neirada, enfatica, cheia de overstatement; muitos tre-chos quase se dissolvem na bruma solene que os envol-89

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    ve. Dificilmente tera havido um Ingles que haja escri-to coisas tao "miticas" e extremas sobre Shakespeare.Ainda assim, se trata de uma obra importante, cujasqualidades superam os defeitos.A comparacao, por exernplo, que faz entre Hamlete Fausto apresenta-nos uma visfio penetrante, apesarda perspectiva um tanto telesc6pica. Ao destruir aimagem rornantica de Hamlet - no que foi seguidopor Auerbach - tomou aos alemaes entendivel porqueHamlet foi escrito por um Ingles e nao por um alemao

    - 0 que no fundo nenhum alemao jamais entendeu.Afinal, nao 6 Hamlet 0 her6i, cuja forca para realizaras coisas pr6ximas e primeiras e paralisada pela con-templacao das coisas iiltimas e distantes? Ha aindahoje alemaes que - apesar do milagre 'economico -consideram este tema essencialmente alemao, Gundolf,nri; entanto, mostrou que

    "

    ) a coragem incondiclonal de enfrefttar face a face arealidade como ela e distingue 0 autor de,Hamlet daquele doprifneiro Fausto, no qual ha muito romantlsmo; multo prazere tortura e, por tras do mundo dado, proeurar ou sentir faltade um mundo mais elevado.. A Hamlet, prossegue, falta todd impulse idealistade transfigurar a existencia, Mesrno no seu mais de-solado pessimismo, Hamlet afirma a realidade com um

    ;'S)m" mais incondicionaI do que Fausto .nos seus so-nhos mais exaltados. Shakespeare nao coloca a ques-tao do valor, do bem e do mal. Basta que o mundoexista, que 0 homem seja. Fausto esta sempre alemdaquilo que e ; Hamlet simplesmente e . Fausto sofrepdr nfio ter vida suficicnte; Hamlet, pol' tcr dcmais.Goethe aspira a contetidos e formas novas de vida;SHakespeare transborda de plenitude. Neste apice daliteratura alema (como tambem nos seus niveis infe-riores), percebe-se, segundo Gundolf, que ela provernde!pulpito, da catedra, do gabinete de estudos, ao passoque a inglesa nasceu no campo de torneios.. Trata-se, sem diivida, de uma visao telesc6picaque passa por cima de "pormenores" discord antes(dizer que Shakespeare nao coloca 0 problema dovalor e absurdo!); ainda assim, esta generalizacao eaplicavel a fase rornantica e pelos menos jovens de

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    x, Goethe. 0 proprio Gundolf e seu livre ainda sc cncon-tram na aura deste passado alemao dos "poetas e pen-sadores"; passado que ele mesmo parece tentar trans-formar em passado, pela pr6pria imagem anti-roman-tica de Hamlet. Nota-se, nesta imagem, a influenciade Nietzsche, cujo fiIosofar romantico visava, parado-xalmente, a destruicao do Romantismo.