Luis Camnitzer_O Artista

Embed Size (px)

Citation preview

  • 8/16/2019 Luis Camnitzer_O Artista

    1/5

  • 8/16/2019 Luis Camnitzer_O Artista

    2/5

    Geralmente falamos da atividade artística como se fosse algototalmente diferente da atividade científica. Do cientista exigimos queseja responsável e que sirva ao bem comum, que seja rigoroso emseus processos de especulação, de pesquisa e de experimentação, eque seja capaz de prestar contas sobre o que faz, quando isso lhe for

    pedido.

    Quanto ao artista, por sua parte, tolera-se que assuma algum graude onipotência. Uma vez declarada arte, a obra se torna praticamenteindestrutível. O bem comum não é um fator relevante, nãoimportando se a obra é um sintoma de egomania, de sociopatia ou deajuda ao próximo. E o conceito de prestação de contas aqui nãoexiste, ou quando existe, fica turvado com os temas da censura e daliberdade de expressão individual.

    Contudo, deixando de lado as deformações culturais, e se nosreferimos a conceitos cognitivos, a única diferença entre arte eciência está em que na arte podemos trabalhar sem ter que utilizarcomo referência a lógica e podemos suspender a relação causa-efeito. Isso não significa que afastar essas duas condições nos eximedas exigências propostas ao cientista. O artista também tem o deverde ser responsável, tem que servir ao bem comum, ser rigoroso, eser capaz de prestar contas.

    Para entender melhor esta relação que existe entre o artista e o

    cientista com respeito à responsabilidade social, convém introduziruma terceira personagem: o mágico. É o mágico, não o artista, quemestá no extremo oposto ao cientista. Isto é assim porque a essênciado ato mágico está na habilidade de esconder o processo e de mantê-lo secreto. Sua relação com as tarefas cognitivas não é a de expandiro conhecimento, como o faz o bom cientista ou o bom artista, mas ade desafiar o conhecido com a finalidade de criar um espetáculo. Suaresponsabilidade social é a de criar um bom espetáculo e de seassegurar de que este não faça dano a ninguém. A mulher que omágico apresenta somente aparenta ser cortada ao meio, mas não oé realmente. O cientista analisa o que aconteceria se a mulher fosseefetivamente cortada ao meio, uma análise que permite decidir quenormalmente é melhor não cortá-la. O artista utiliza a imagem damulher cortada ao meio como uma metáfora para gerar evocações,pelo qual sua obra fica relativamente a salvo de um juízo ético.

    As três personagens também se diferenciam em sua relação com acredulidade com a qual operamos frente à realidade circundante. Ocientista trata aqui de explicar o incrível. O mágico trata de simular oincrível. O artista trata de apresentar o incrível para expandir omundo do crível. É aqui onde entra a função da explicação para cada

    uma destas personagens.

  • 8/16/2019 Luis Camnitzer_O Artista

    3/5

    O papel da explicação

    Para o cientista, a explicação é sua missão primária. Quer explicar oque até então não foi explicado e confirmar que a explicação queencontra é a correta. Pode-se dizer que tudo o que o cientista faz é

    uma explicação, mesmo que não utilize palavras.

    Para o mágico, a explicação é anátema. Toda explicação destruiria ailusão que ele tenta criar e, por isso, sabotaria seu espetáculo. Daí o juramento da confraria de mágicos de nunca revelar os seus truques.

    Em termos de credulidade, o artista está em algum lugar entre ocientista e o mágico. De certo modo, a obra de arte é um ato demagia explicado, ou pelo menos, explicado com certa facilidade. Maspara o artista, o uso da palavra explicação cria uma situação um

    pouco mais complexa, porque na arte a palavra explicação tem maisníveis que nos outros casos e é necessário determinar em qual nívelse explica.

    A explicação descritiva

    Em primeiro lugar está a interpretação banal da palavra, que aplicadaà arte equivale a explicar uma piada. Este tipo de explicação estragaa piada e pretende esgotar a obra. É a interpretação que leva àconclusão de que se a obra é explicável, não merece existir como

    obra de arte. É verdade que a possibilidade de uma explicação totalneste nível invalida a obra de arte. Mas isso não é assim pelo fato deela ser explicada, mas porque o esgotamento assinala um usoequivocado do meio. Se a obra pode ser resolvida simplesmente compalavras, e se depois, em seu meio original, não fica um resíduoinexplicável, há algo que não está bem. Significa que a obra poderiater sido realizada como uma peça literária e que, portanto, não eranecessário traduzi-la para a linguagem visual.

    Mas há outros dois níveis nos quais se utiliza a palavra explicação.Um é o da problematização e o outro é o da prestação de contas. Oimportante destes dois níveis é que não são explicações meramenterequeridas pelo público. São explicações que o artista necessita parasi mesmo, se é que ele quer manter um controle de qualidade ecertificar-se de que sua intenção de comunicação tem algumapossibilidade de se tornar realidade.

    A explicação contextual

    De uma ou de outra maneira, um objeto artístico é uma solução paraum problema colocado pelo artista. Não importa se o problema foi

    formulado antes de fazer a obra ou se foi atribuído depois de ela tersido feita. Importa que, uma vez identificados ambos, se estabeleça

  • 8/16/2019 Luis Camnitzer_O Artista

    4/5

    uma relação indissolúvel, que permita ao artista decidir que a obra “está bem”, que merece sobreviver. “Está bem” é muito diferente de “parece estar bem”. “Está bem” requer uma certeza que vai além deuma impressão. Uma obra que “parece estar bem” pode limitar-se aser um reflexo do gosto do artista. Pelo contrário, uma obra que “estábem” exprime sua conexão correta com o problema com o qualestabeleceu uma relação simbiótica.

    Enquanto “parece estar bem” é um juízo que pode dar-se ao luxo deser intuitivo, “está bem” necessita de mais fundamentação, necessitade uma explicação. Essa explicação contém primariamente aformulação do problema (ou dos problemas) ao qual se aplica a obra.Pode conter também a importância do problema, como o problemafaz parte de uma pesquisa mais ampla, e como tudo isso funcionadentro de uma ideologia que rege as motivações do artista.

    Para o artista, esta explicação é fundamental. Permite assegurar ointeresse do problema, identificar a necessidade ou não de maispesquisa (própria ou com ajuda de terceiros), decidir se a obra é umaprimeira aproximação ou se ela é a versão definitiva, verificar se aobra não constitui uma contradição com outras obras e secorresponde ao discurso ao qual se propõe. É uma explicação que nãopretende esgotar, nem pode esgotar a obra, porque com relação àobra, é uma explicação contextual e não meramente descritiva de umobjeto.

    A explicação de uma obra entendida como corredor deinformação

    Temos logo o terceiro nível de explicação, aquele exigido pelaprestação de contas. É este o nível que, ao misturar-se com oprimeiro nível da explicação banal, cria tanta confusão e tantapolêmica. Quem pede uma explicação da obra espera a explicaçãoliterária e banal. O faz pensando que está pedindo uma prestação decontas. Quem tem que oferecê-la nega-se a dar uma explicação queconsidera irrelevante, mas, também confuso, nega-se a prestarcontas. Isto gera declarações idiotas como “a obra fala por si mesma”ou acusações elitistas e gratuitas sobre um presumível filisteísmo dopúblico.

    Em primeiro lugar, temos que as obras não falam por si mesmas, quesomente são um veículo de comunicação entre o artista e o público.Funcionam como um corredor pelo qual circula a informação, e ainformação se sustenta e amplifica com subentendidoscompartilhados por ambos, artista e público. Não importa se o “corredor” é agradável ou desagradável. Importa que seja o melhor

    corredor possível para que a informação circule sem sofrer erosão. Sea comunicação não funciona bem, isso se deve a que o “corredor”

  • 8/16/2019 Luis Camnitzer_O Artista

    5/5

    está mal projetado ou mal feito, ou a que está sendo recebido por umpúblico que não entende os subentendidos e que não é o destinatário.Falso destinatário e filisteu não são sinônimos. Portanto, o artista temque reconsiderar a obra ou reconsiderar o público.

    Eu, por exemplo, confesso que quando leio a Teoria da Relatividade,não a entendo. Pode muito bem ser porque sou um idiota. Mas émais provável que não a entenda porque não pertenço ao públicopara o qual Einstein estava escrevendo. Portanto, nem ele pode meacusar de filisteu, nem eu posso fazer com que ele me preste contasnem exigir-lhe explicações. Mas se eu fizesse parte de seu públicodestinatário, a coisa mudaria de cara. No caso de Einstein, suateoriaé a explicação, são a mesma coisa. O corredor é o livro no quala teoria está publicada. No caso da arte, excetuando as obrasconceitualistas que trabalham com a tautologia, a explicação não é

    parte integral da obra. A obra possivelmente tem chaves ereferências a subentendidos que me permitem adjudicar-lhe umaexplicação através da qual chego ao problema colocado pelo artista,para depois decidir se ele me oferece ou não a melhor soluçãopossível. Se as chaves são claras, não necessito de mais explicações.Se não o são, o artista me dar a sua formulação do problema queestá resolvendo seria algo muito útil. Na realidade, tudo o que ajudaa uma boa comunicação inteligente é útil. Os elitismos e ospaternalismos é que acabam sendo inúteis.

    Luis Camnitzer (1937, Lübeck, Alemanha; cresceu no Uruguai)estudou Arte e Arquitetura. Desde 1964 radicado nos EUA, onde é

     professor emérito da State University of New York e assessor pedagógico da Fundación Cisneros. Como artista, representou o

    Uruguai na Bienal de Veneza (1988), expôs na Whitney Biennial de2000, na Documenta 11 (2002) e em mostras ao redor do mundo,incluindo a Tate Modern e o Centre Pompidou. Em 2011, recebeu o

     prêmio Frank Jewett Mather da College Art Association por seusescritos.

    Tradução do espanhol: George Bernard Sperber

    Copyright: Goethe-Institut e. V., Humboldt RedaktionDezembro 2011

    Fonte: Revista Humbold

    http://www.goethe.de/wis/bib/prj/hmb/the/156/pt8622845.htm