2. Weder dem Vergangenen anheimfallen noch dem Zuknftigen. Es
kommt darauf ein ganz gegenwrtig zu sein. [No almejar nem os que
passaram nem os que viro. Importa ser de seu prprio tempo.] Karl
Jaspers
3. SUMRIO Prefcio primeira edio Parte I ANTISSEMITISMO Prefcio
1. O antissemitismo como uma ofensa ao bom senso 2. Os judeus, o
Estado-nao e o nascimento do antissemitismo 3. Os judeus e a
sociedade 4. O Caso Dreyfus Parte II IMPERIALISMO Prefcio 1. A
emancipao poltica da burguesia 2. O pensamento racial antes do
racismo 3. Raa e burocracia 4. O imperialismo continental: os
movimentos de unificao 5. O declnio do Estado-nao e o fim dos
direitos do homem Parte III TOTALITARISMO Prefcio 1. Uma sociedade
sem classes 2. O movimento totalitrio 3. O totalitarismo no poder
4. Ideologia e terror: uma nova forma de governo Notas Bibliografia
Sobre a autora
4. PREFCIO PRIMEIRA EDIO Duas guerras mundiais em uma gerao,
separadas por uma srie ininterrupta de guerras locais e revolues,
seguidas de nenhum tratado de paz para os vencidos e de nenhuma
trgua para os vencedores, levaram anteviso de uma terceira guerra
mundial entre as duas potncias que ainda restavam. O momento de
expectativa como a calma que sobrevm quando no h mais esperana. J
no ansiamos por uma eventual restaurao da antiga ordem do mundo com
todas as suas tradies, nem pela reintegrao das massas, arremessadas
ao caos produzido pela violncia das guerras e revolues e pela
progressiva decadncia do que sobrou. Nas mais diversas condies e
nas circunstncias mais diferentes, contemplamos apenas a evoluo dos
fenmenos entre eles o que resulta no problema de refugiados, gente
destituda de lar em nmero sem precedentes, gente desprovida de
razes em intensidade inaudita. Nunca antes nosso futuro foi mais
imprevisvel, nunca dependemos tanto de foras polticas que podem a
qualquer instante fugir s regras do bom senso e do interesse prprio
foras que pareceriam insanas se fossem medidas pelos padres dos
sculos anteriores. como se a humanidade se houvesse dividido entre
os que acreditam na onipotncia humana (e que julgam ser tudo
possvel a partir da adequada organizao das massas num determinado
sentido), e os que conhecem a falta de qualquer poder como a
principal experincia da vida. A anlise histrica e o pensamento
poltico permitem crer, embora de modo inde nido e genrico, que a
estrutura essencial de toda a civilizao atingiu o ponto de ruptura.
Mesmo quando aparentemente melhor preservada, o que ocorre em
certas partes do mundo, essa estrutura no autoriza antever a futura
evoluo do que resta do sculo xx, nem fornece explicaes adequadas
aos seus horrores. Incomensurvel esperana, entremeada com
indescritvel temor, parece corresponder melhor a esses
acontecimentos que o juzo equilibrado e o discernimento comedido.
Mas os eventos fundamentais do nosso tempo preocupam do mesmo modo
os que acreditam na runa final e os que se entregam ao otimismo
temerrio. Este livro foi escrito com mescla do otimismo temerrio e
do desespero temerrio. A rma que o Progresso e a Runa so duas faces
da mesma medalha; que ambos resultam da superstio, no da f. Foi
escrito com a convico de serem passveis de descoberta os mecanismos
que dissolveram os tradicionais elementos do nosso mundo poltico e
espiritual num amlgama, onde tudo parece ter perdido seu valor
espec co, escapando da nossa compreenso e tornando-se intil para ns
humanos. A passividade de ceder ao processo de desintegrao
converteu-se em tentao irresistvel, no somente porque esse processo
assumiu a espria aparncia de necessidade histrica, mas tambm porque
os valores em vias de destruio comearam a parecer inertes,
exangues, inexpressivos e irreais. A convico de que tudo o que
acontece no mundo deve ser compreensvel pode levar- nos a
interpretar a histria por meio de lugares-comuns. Compreender no
signi ca
5. negar nos fatos o chocante, eliminar deles o inaudito, ou,
ao explicar fenmenos, utilizar-se de analogias e generalidades que
diminuam o impacto da realidade e o choque da experincia. Signi ca,
antes de mais nada, examinar e suportar conscientemente o fardo que
o nosso sculo colocou sobre ns sem negar sua existncia, nem vergar
humildemente ao seu peso. Compreender signi ca, em suma, encarar a
realidade sem preconceitos e com ateno, e resistir a ela qualquer
que seja. Assim, deve ser possvel, por exemplo, encarar e
compreender o fato, chocante decerto, de que fenmenos to insigni
cantes e desprovidos de importncia na poltica mundial como a questo
judaica e o antissemitismo se transformaram em agente catalisador,
primeiro, do movimento nazista; segundo, de uma guerra mundial; e,
nalmente, da construo dos centros fabris de morte em massa. Tambm h
de ser possvel compreender a grotesca disparidade entre a causa e o
efeito que compunham a essncia do imperialismo, quando di culdades
econmicas levaram, em poucas dcadas, profunda transformao das
condies polticas no mundo inteiro; a curiosa contradio entre o
realismo, como era cinicamente enaltecido pelos movimentos
totalitrios, e o visvel desdm desses sistemas por toda a textura da
realidade; ou a irritante incompatibilidade entre o real poderio do
homem moderno (maior do que nunca, to grande que pode ameaar a
prpria existncia do seu universo) e a sua incapacidade de viver no
mundo que o seu poderio criou, e de lhe compreender o sentido. A
tentativa totalitria da conquista global e do domnio total
constituiu a resposta destrutiva encontrada para todos os impasses.
Mas a vitria totalitria pode coincidir com a destruio da
humanidade, pois, onde quer que tenha imperado, minou a essncia do
homem. Assim, de nada serve ignorar as foras destrutivas de nosso
sculo. O problema que a nossa poca interligou de modo to estranho o
bom e o mau que, sem a expanso dos imperialistas levada adiante por
mero amor expanso, o mundo poderia jamais ter-se tornado um s; sem
o mecanismo poltico da burguesia que implantou o poder pelo amor ao
poder, as dimenses da fora humana poderiam nunca ter sido
descobertas; sem a realidade ctcia dos movimentos totalitrios, nos
quais pelo louvor da fora por amor fora as incertezas essenciais do
nosso tempo acabaram sendo desnudadas com clareza sem par,
poderamos ter sido levados runa sem jamais saber o que estava
acontecendo. E, se verdade que, nos estgios nais do totalitarismo,
surge um mal absoluto (absoluto, porque j no pode ser atribudo a
motivos humanamente compreensveis), tambm verdade que, sem ele,
poderamos nunca ter conhecido a natureza realmente radical do Mal.
O antissemitismo (no apenas o dio aos judeus), o imperialismo (no
apenas a conquista) e o totalitarismo (no apenas a ditadura) um aps
o outro, um mais brutalmente que o outro demonstraram que a
dignidade humana precisa de nova garantia, somente encontrvel em
novos princpios polticos e em uma nova lei na terra, cuja vigncia
desta vez alcance toda a humanidade, mas cujo poder deve permanecer
estritamente limitado, estabelecido e controlado por entidades
territoriais novamente
6. definidas. J no podemos nos dar ao luxo de extrair aquilo
que foi bom no passado e simplesmente cham-lo de nossa herana,
deixar de lado o mau e simplesmente consider-lo um peso morto, que
o tempo, por si mesmo, relegar ao esquecimento. A corrente
subterrnea da histria ocidental veio luz e usurpou a dignidade de
nossa tradio. Essa a realidade em que vivemos. E por isso que todos
os esforos de escapar do horror do presente, refugiando-se na
nostalgia por um passado ainda eventualmente intacto ou no
antecipado oblvio de um futuro melhor, so vos. Hannah Arendt Vero
de 1950
7. Este um sculo extraordinrio, que comea com a Revoluo e
termina com o Caso Dreyfus. Talvez ele venha a ser conhecido como o
sculo da escria. Parte I ANTISSEMITISMO Roger Martin du Gard
8. PREFCIO Entre o antissemitismo como ideologia leiga do sculo
xix (que de nome, embora no de contedo, era desconhecida antes da
dcada de 1870) e o antissemitismo como dio religioso aos judeus,
inspirado no antagonismo de duas crenas em con ito, obviamente h
profunda diferena. Pode-se discutir at que ponto o primeiro deve ao
segundo os seus argumentos e a sua atrao emocional. A noo de que
foram ininterruptamente contnuas as perseguies, expulses e
massacres dos judeus desde o m do Imprio Romano at a Idade Mdia, e,
depois, sem parar, at o nosso tempo, frequentemente conjugada com a
ideia de que o antissemitismo moderno nada mais seno uma verso
secularizada de populares supersties medievais,1 no menos
preconceituosa (embora seja, naturalmente, menos nociva) que a noo
antissemita de uma secreta sociedade judaica, que dominou ou
procurou dominar o mundo desde a Antiguidade. Historicamente, o
hiato entre os ns da Idade Mdia e a poca moderna, no que se refere
questo judaica, ainda mais marcante do que a brecha entre a
Antiguidade romana e a Idade Mdia, ou o abismo frequentemente
considerado o ponto decisivo e o mais importante da histria judaica
que separou os massacres perpetrados pelas primeiras Cruzadas e os
primeiros sculos medievais. Esse hiato durou quase duzentos anos,
do incio do sculo Xv at o m do sculo xvi, quando as relaes entre
judeus e gentios estiveram mais frgeis do que nunca, quando a
indiferena [judaica] s condies e eventos do mundo exterior foi mais
profunda do que antes, e o judasmo se tornou um sistema fechado de
pensamento. Foi por essa poca que os judeus, sem qualquer
interferncia externa, comearam a pensar que a diferena entre o povo
judeu e as naes era, fundamentalmente, no de credo, mas de natureza
interior, e que a antiga dicotomia entre judeus e gentios provinha
mais provavelmente de origem tnica do que de discordncia
doutrinria.2 Essa mudana na avaliao do carter diferente do povo
judeu que s surgiu entre os no judeus muito mais tarde, na Era do
Esclarecimento constituiu certamente a condio sine qua non do
nascimento do antissemitismo, e de certa importncia observar que
ela ocorreu primeiro no ato da autointerpretao judaica, surgido na
poca da fragmentao da cristandade europeia em grupos tnicos, os
quais depois alcanariam a autonomia poltica, formando o sistema de
Estados-naes. A histria do antissemitismo, como a histria do dio
aos judeus, parte integrante da longa e intrincada histria das
relaes que prevaleciam entre judeus e gentios desde o incio da
disperso judaica. O interesse por essa histria, praticamente nulo
antes dos meados do sculo xix, surgiu coincidindo com a ecloso do
antissemitismo, hostil aos judeus emancipados e assimilados.
Obviamente, esse foi o pior momento para a pesquisa historiogr ca
objetiva.3 Desde ento, tanto os historigrafos judeus quanto os no
judeus dedicaram-se embora por motivos opostos nfase dos elementos
mutuamente antagnicos, encontrados nas fontes crists e judaicas.
Ambos os lados sublinhavam as catstrofes, expulses e massacres que
pontilharam a histria dos judeus,
9. do mesmo modo como os con itos armados e desarmados,
guerras, fome e pestilncia que pontilharam a histria da Europa.
Desnecessrio dizer, enquanto os historigrafos judeus, com sua
tendncia polmica e apologtica, detectavam da histria crist as
ocorrncias caracterizadas pelo dio aos judeus, os antissemitas, de
modo intelectualmente idntico, faziam o mesmo, procurando as
enunciaes das antigas autoridades judaicas que tivessem dado incio
tradio judaica de antagonismo, muitas vezes violento, contra os
cristos e gentios. A opinio pblica judaica ficou ento no s
perplexa, mas genuinamente pasmada,4 to bem tinham seus porta-vozes
conseguido convencer a todos inclusive a si mesmos da veracidade do
antifato que apresentava a segregao dos judeus como resultado
exclusivo da hostilidade dos gentios e do seu completo
obscurantismo. Desde ento, os historiadores judeus passaram a a
rmar ter sido o judasmo sempre superior s outras religies, pelo
simples fato de crer na igualdade e tolerncia humana. Essa teoria
perniciosa, aliada convico de que os judeus sempre constituam
objeto passivo e sofredor das perseguies crists, na verdade
prolongava e modernizava o velho mito de povo escolhido; assim, s
podia levar a novas e frequentemente complicadas prticas de
segregao, destinadas a manter a antiga dicotomia numa daquelas
ironias que parecem reservadas aos que, por quaisquer motivos,
buscam enfeitar e manipular os fatos polticos e os registros
histricos. Pois, se os judeus tinham em comum com os seus vizinhos
no judeus algo que justi casse a sua recm-proclamada igualdade, era
precisamente o passado de mtua hostilidade determinada
religiosamente, passado to rico em realizao cultural no nvel mais
alto quanto abundante em fanatismo e supersties no nvel das massas
ignorantes. Contudo, at os irritantes esteretipos desse setor da
historiogra a judaica apoiam-se mais solidamente em fatos histricos
que as obsoletas necessidades polticas e sociais do povo judeu na
Europa do sculo xix e do comeo do sculo xx. Embora a histria
cultural judaica fosse in nitamente mais diversa do que se supunha
naquela poca, e embora as causas do desastre judeu variassem ao
longo das circunstncias histricas e geogr cas, a verdade que se
alteravam mais em funo do ambiente no judeu do que das comunidades
judaicas. Dois fatos reais foram decisivos para a formao dos
conceitos errneos e fatdicos que ainda permeiam as verses populares
da histria judaica. Em parte alguma e em tempo algum depois da
destruio do Templo de Jerusalm (no ano 70) os judeus possuram
territrio prprio e Estado prprio; sua existncia fsica sempre
dependeu da proteo de autoridades no judaicas, embora se lhes
concedessem, em vrias regies, alguns meios de autodefesa, como por
exemplo, aos judeus da Frana e da Alemanha at comeos do sculo x
iii,5 o direito de portar armas. Isso no signi ca que os judeus
nunca tiveram fora, mas a verdade que, em qualquer disputa
violenta, no importa por que motivos, os judeus eram no apenas
vulnerveis como indefesos. Assim, no admira que, especialmente no
decorrer dos sculos em que era completa a sua separao do meio no
judeu e que foram anteriores sua ascenso igualdade poltica , todas
as mltiplas exploses da violncia lhes parecessem meramente normais.
Alm disso, as catstrofes eram entendidas, dentro da tradio judaica,
em termos de martirologia, o que por sua vez
10. tinha base histrica tanto nos primeiros sculos de nossa
era, quando judeus e cristos desa avam o poder do Imprio Romano,
quanto nas condies medievais, quando se oferecia aos judeus o
batismo como alternativa para se livrarem das perseguies, mesmo se
a causa da violncia fosse poltica e econmica, e no religiosa. Essa
sequncia de eventos conduziu iluso que desde ento afeta tanto os
historiadores judeus como os no judeus, j que ambas as partes do
mais nfase ao fato de os cristos se desassociarem dos judeus do que
do inverso.6 Assim, escondem o seguinte fenmeno: a separao dos
judeus do mundo gentio, e mais especi camente do ambiente cristo,
tem tido maior relevncia na histria judaica do que o seu oposto,
pela razo bvia de que a prpria sobrevivncia do povo judeu como
entidade identi cvel dependia dessa separao, que era voluntria, e
no, como se costumava supor, resultante da hostilidade dos cristos
e no judeus em geral. S nos sculos xix e xx, depois da emancipao e
em consequncia da assimilao dos judeus, o antissemitismo veio a ter
alguma importncia para a preservao do povo judeu, pois s ento os
judeus passaram a aspirar a serem aceitos pela sociedade no
judaica. Embora os sentimentos antijudaicos fossem correntes entre
as classes educadas da Europa no sculo xix, o antissemitismo como
ideologia constitua, com muito poucas excees, rea de atuao dos
malucos e lunticos. At os duvidosos produtos do judasmo apologtico,
que nunca convenceram ningum seno os que j estavam convencidos,
formavam exemplos de elevada erudio e cultura, se comparados com o
que os inimigos dos judeus tinham a oferecer em matria de pesquisa
histrica.7 Quando, aps o m da Segunda Guerra Mundial, comecei a
organizar o material para este livro, coletado a partir de
documentos e monogra as, s vezes excelentes, que cobriam um perodo
de mais de dez anos, no encontrei uma nica obra sobre o
antissemitismo compatvel com os padres mais elementares da apreciao
histrica. E de l para c a situao pouco mudou. Isso deplorvel, pois
a necessidade do tratamento el e imparcial da histria judaica
tornou-se recentemente maior do que jamais. Os acontecimentos
polticos do sculo xx atiraram o povo judeu no centro do turbilho de
eventos; a questo judaica e o antissemitismo, fenmenos
relativamente sem importncia em termos de poltica mundial,
transformaram-se em agente catalisador, inicialmente, da ascenso do
movimento nazista e do estabelecimento da estrutura organizacional
do Terceiro Reich, no qual todo cidado tinha de provar que no era
judeu ou descendente dos judeus; e, em seguida, de uma guerra
mundial de ferocidade nunca vista, que culminou, nalmente, com o
surgimento do genocdio, crime at ento desconhecido em meio
civilizao ocidental. Creio ser bvio que isso exige no apenas
lamentao e denncia, mas tambm compreenso. Este livro uma tentativa
de compreender os fatos que, primeira vista, pareciam apenas
ultrajantes. Repito: compreender no signi ca negar o ultrajante,
subtrair o inaudito do que tem precedentes, ou explicar fenmenos
por meio de analogias e generalidades tais que se deixa de sentir o
impacto da realidade e o choque da experincia. Signi ca antes
examinar e suportar conscientemente o fardo que os acontecimentos
colocaram sobre ns sem negar sua existncia nem vergar humildemente
a seu peso, como se tudo o
11. que de fato aconteceu no pudesse ter acontecido de outra
forma. Compreender signi ca, em suma, encarar a realidade,
espontnea e atentamente, e resistir a ela qualquer que seja, venha
a ser ou possa ter sido. Para essa compreenso indispensvel embora
no seja su ciente uma certa familiaridade com a histria judaica na
Europa do sculo xix e a consequente evoluo do antissemitismo. Os
captulos que seguem tratam apenas daqueles elementos da histria do
sculo xix que realmente importam para o estudo das origens do
totalitarismo. Ainda est por ser escrita a histria analtica do
antissemitismo, o que foge ao escopo deste volume. Enquanto existir
essa lacuna, justi ca-se a publicao dos captulos seguintes como
contribuio para o estudo mais completo, embora tenham sido
originalmente concebidos to s como parte integrante da pr-histria
do totalitarismo. Alm disso, no apenas a histria do antissemitismo
tem sido elaborada por no judeus mentecaptos e por judeus
apologticos, sendo em geral evitada por historiadores de reputao:
mutatis mutandis, com quase todos os elementos que se
cristalizariam no fenmeno totalitrio ocorreu o mesmo. Ambos os
fenmenos o antissemitismo e o totalitarismo mal haviam sido notados
pelos homens cultos, porque pertenciam corrente subterrnea da
histria europeia, onde, longe da luz do pblico e da ateno dos
homens esclarecidos, puderam adquirir virulncia inteiramente
inesperada. Quando a derradeira catstrofe cristalizante a Segunda
Guerra Mundial trouxe tona essas correntes subterrneas, surgiu a
tendncia de confundir o totalitarismo com os seus elementos e com
as suas origens, como se cada exploso de antissemitismo ou racismo
pudesse ser a priori identi cada com o totalitarismo. Essa atitude
to enganadora na busca da verdade histrica como perniciosa para a
anlise poltica. A poltica totalitria longe de ser simplesmente
antissemita, ou racista, ou imperialista, ou comunista usa e abusa
de seus prprios elementos ideolgicos, at que se dilua quase que
completamente com a sua base, inicialmente elaborada partindo da
realidade e dos fatos realidade da luta de classes, por exemplo, ou
dos con itos de interesse entre os judeus e os seus vizinhos, que
fornecia aos idelogos a fora dos valores propagandsticos.
Constituiria certamente grave erro subestimar o papel que o racismo
puro tem desempenhado e ainda desempenha no governo dos estados do
sul dos Estados Unidos, mas seria uma iluso ainda mais grave chegar
concluso retrospectiva de que amplas reas desse pas eram submetidas
ao regime totalitrio h mais de um sculo. A nica consequncia direta
e no adulterada dos movimentos antissemitas do sculo xix no foi o
nazismo mas, ao contrrio, o sionismo, que, pelo menos em sua forma
ideolgica ocidental, assumiu o aspecto de consciente
contraideologia, de resposta ao antissemitismo. Isso no signi ca
que a autoconscincia grupal dos judeus resultasse do
antissemitismo; at mesmo o conhecimento super cial da histria
judaica, cuja preocupao central, desde o exlio babilnico, sempre
foi a sobrevivncia do povo a despeito da disperso, seria su ciente
para destruir esse mito sobre o assunto, mito que se tornou at
elegante, a ponto de vir a ser repetido nos crculos intelectuais,
depois da interpretao existencialista de Sartre, segundo a qual o
judeu era algum que os outros
12. consideravam e definiam como tal. O que melhor exempli ca
tanto a diferena como a relao entre o antissemitismo pr-totalitrio
e o totalitrio talvez a histria dos Protocolos dos sbios do Sio. O
emprego dessa falsi cao pelos nazistas, que a usaram como
livro-texto, certamente no pertence histria do antissemitismo, mas
s a histria do antissemitismo pode explicar por que era vivel o uso
da mentira para os ns de propaganda antijudaica. Mas essa histria
no explica por que se transformou em fenmeno poltico a alegao,
obviamente totalitria, do suposto domnio global a ser exercido com
mtodos esotricos pelos membros de uma sociedade secreta. A atrao
poltica decorrente do uso dos Protocolos importante, na medida em
que suas origens esto no imperialismo em geral, como foi elaborado
em verso europeia continental, altamente explosiva, a partir dos
movimentos nacionalmente, ou melhor, etnicamente unificadores,
principalmente pangermnicos e pan-eslavistas. Este livro, portanto,
limitado no tempo e no espao, tanto quanto no assunto. Suas anlises
cuidam da histria judaica na Europa central e ocidental desde o
tempo ps- medieval dos judeus da corte at o Caso Dreyfus, naquilo
em que ele foi, de um lado, relevante para o nascimento do
antissemitismo e, do outro, in uenciado por ele. Trata dos
movimentos antissemitas que ainda se baseavam de modo bastante
slido nas realidades factuais das relaes entre judeus e gentios,
isto , no papel desempenhado pelos judeus no desenvolvimento do
Estado-nao e no seu papel dentro da sociedade no judaica. O
surgimento dos primeiros partidos antissemitas nas dcadas de 1870 e
1880 marca o instante em que foi superado o elemento factual (e
limitado) do con ito de interesses e ultrapassada a experincia
convivencial, abrindo-se assim o caminho que levou soluo nal
genocida. Da por diante, na era do imperialismo, j no possvel
isolar a questo judaica ou a ideologia antissemita de questes que,
na verdade, quase nada tm a ver com as realidades da moderna
histria judaica. Isso no ocorre apenas e basicamente porque essas
questes sejam to importantes nos negcios mundiais, mas porque o
prprio antissemitismo agora utilizado para ns que transcendem a
problemtica aparente, e os quais, embora sua implantao faa dos
judeus as principais vtimas, deixam para trs todas as questes de
interesse judaico e antijudaico. Hannah Arendt Julho de 1967
13. 1. O ANTISSEMITISMO COMO UMA OFENSA AO BOM SENSO Muitos
ainda julgam que a ideologia nazista girou em torno do
antissemitismo por acaso, e que desse acaso nasceu a poltica que in
exivelmente visou perseguir e, nalmente, exterminar os judeus. O
horror do mundo diante do resultado derradeiro, e, mais ainda,
diante do seu efeito, constitudo pelos sobreviventes sem lar e sem
razes, deu questo judaica a proeminncia que ela passou a ocupar na
vida poltica diria. O que os nazistas apresentaram como sua
principal descoberta o papel dos judeus na poltica mundial e o que
propagavam como principal alvo a perseguio dos judeus no mundo
inteiro foi considerado pela opinio pblica mero pretexto,
interessante truque demaggico para conquistar as massas. bem
compreensvel que no se tenha levado a srio o que os prprios
nazistas diziam. Provavelmente no existe aspecto da histria
contempornea mais irritante e mais misti cador do que o fato de,
entre tantas questes polticas vitais, ter cabido ao problema
judaico, aparentemente insigni cante e sem importncia, a duvidosa
honra de pr em movimento toda uma mquina infernal. Tais
discrepncias entre a causa e o efeito constituem ultraje ao bom
senso a tal ponto que as tentativas de explanar o antissemitismo
parecem forjadas com o to de salvar o equilbrio mental dos que
mantm o senso de proporo e a esperana de conservar o juzo. Uma
dessas apressadas explicaes identi ca o antissemitismo com
desenfreado nacionalismo e suas exploses de xenofobia. Mas, na
verdade, o antissemitismo moderno crescia enquanto declinava o
nacionalismo tradicional, tendo atingido seu clmax no momento em
que o sistema europeu de Estados-naes, com seu precrio equilbrio de
poder, entrara em colapso. Os nazistas no eram meros nacionalistas.
Sua propaganda nacionalista era dirigida aos simpatizantes e no aos
membros convictos do partido. Ao contrrio, este jamais se permitiu
perder de vista o alvo poltico supranacional. O nacionalismo
nazista assemelhava-se propaganda nacionalista da Unio Sovitica,
que tambm usada apenas como repasto aos preconceitos das massas. Os
nazistas sentiam genuno desprezo, jamais abolido, pela estreiteza
do nacionalismo e pelo provincianismo do Estado-nao. Repetiram
muitas vezes que seu movimento, de mbito internacional (como, alis,
o movimento bolchevista), era mais importante para eles do que o
Estado, o qual necessariamente estaria limitado a um territrio
espec co. E no s o perodo nazista mas os cinquenta anos anteriores
da histria antissemita do prova contrria identi cao do
antissemitismo com o nacionalismo. Os primeiros partidos
antissemitas das ltimas dcadas do sculo xix foram os primeiros a
coligar-se em nvel internacional. Desde o incio, convocavam
congressos internacionais, e preocupavam-se com a coordenao de
atividades em escala internacional ou, pelo menos, intereuropeia.
Tendncias gerais, como o declnio do Estado-nao coincidente com o
crescimento do antissemitismo, no podem ser explicadas por uma nica
razo ou causa. Na maioria
14. desses casos, o historiador depara com situao histrica
complexa, na qual tem a liberdade (e isto quer dizer perplexidade)
de isolar um determinado fator como correspondente ao esprito da
poca. Existem, porm, algumas regras gerais que so teis. A principal
delas a de nio, por Tocqueville (em LAncien Rgime et la Rvolution,
livro ii , captulo 1), dos motivos do violento dio das massas
francesas contra a aristocracia no incio da Revoluo dio que levou
Burke a observar que a Revoluo se preocupava mais com a condio de
um cavalheiro do que com a instituio de rei. Segundo Tocqueville, o
povo francs passou a odiar os aristocratas no momento em que
perderam o poder, porque essa rpida perda de poder no foi
acompanhada de qualquer reduo de suas fortunas. Enquanto os nobres
dispunham de vastos poderes, eram no apenas tolerados mas
respeitados. Ao perderem seus privilgios, e entre eles o privilgio
de explorar e oprimir, o povo descobriu que eles eram parasitas,
sem qualquer funo real na conduo do pas. Em outras palavras, nem a
opresso nem a explorao em si chegam a constituir a causa de
ressentimento: mas a riqueza sem funo palpvel muito mais
intolervel, porque ningum pode compreender e consequentemente
aceitar por que ela deve ser tolerada. O antissemitismo alcanou o
seu clmax quando os judeus haviam, de modo anlogo, perdido as funes
pblicas e a in uncia, e quando nada lhes restava seno sua riqueza.
Quando Hitler subiu ao poder, os bancos alemes, onde por mais de
cem anos os judeus ocupavam posies-chave, j estavam quase judenrein
desjudaizados , e os judeus na Alemanha, aps longo e contnuo
crescimento em posio social e em nmero, declinavam to rapidamente
que os estatsticos prediziam o seu desaparecimento em poucas
dcadas. verdade que as estatsticas no indicam necessariamente
processos histricos reais: mas digno de nota que, para um
estatstico, a perseguio e o extermnio dos judeus pelos nazistas
pudessem parecer uma insensata acelerao de um processo que
provavelmente ocorreria de qualquer modo, em termos da extino do
judasmo alemo. O mesmo verdadeiro em quase todos os pases da Europa
ocidental. O Caso Dreyfus no ocorreu no Segundo Imprio, quando os
judeus da Frana estavam no auge de sua prosperidade e in uncia, mas
na Terceira Repblica, quando eles j haviam quase desaparecido das
posies importantes (embora no do cenrio poltico). O antissemitismo
austraco tornou-se violento no sob o reinado de Metternich e
Francisco Jos, mas na Repblica austraca aps 1918, quando era
perfeitamente bvio que quase nenhum outro grupo havia sofrido tanta
perda de in uncia e prestgio em consequncia do desmembramento da
monarquia dos Habsburgos quanto os judeus. A perseguio de grupos
impotentes, ou em processo de perder o poder, pode no constituir um
espetculo agradvel, mas no decorre apenas da mesquinhez humana. O
que faz com que os homens obedeam ou tolerem o poder e, por outro
lado, odeiem aqueles que dispem da riqueza sem o poder a ideia de
que o poder tem uma determinada funo e certa utilidade geral. At
mesmo a explorao e a opresso podem levar a sociedade ao trabalho e
ao estabelecimento de algum tipo de ordem. S a riqueza sem o poder
ou o distanciamento altivo do grupo que, embora poderoso, no
exerce
15. atividade poltica so considerados parasitas e revoltantes,
porque nessas condies desaparecem os ltimos laos que mantm ligaes
entre os homens. A riqueza que no explora deixa de gerar at mesmo a
relao existente entre o explorador e o explorado; o alheamento sem
poltica indica a falta do menor interesse do opressor pelo
oprimido. Contudo, o declnio dos judeus na Europa ocidental e
central forma apenas o pano de fundo para os eventos subsequentes,
e explica to pouco esses eventos como o fato de a aristocracia ter
perdido o poder explicaria a Revoluo Francesa. Conhecer essas
regras gerais importante, para que seja possvel refutar as
insinuaes do aparente bom senso, segundo as quais o dio violento ou
a sbita rebelio so necessariamente decorrentes do exerccio de forte
poder e de abusos cometidos pelos que constituem o alvo do dio, e
que, consequentemente, o dio organizado contra os judeus s pode ter
surgido como reao contra sua importncia e o seu poderio. Mais sria
parece outra argumentao: os judeus, por serem um grupo inteiramente
impotente, ao serem envolvidos nos con itos gerais e insolveis da
poca, podiam facilmente ser acusados de responsabilidade por esses
con itos e apresentados como autores ocultos do mal. O melhor
exemplo e a melhor refutao dessa explicao, que to grata ao corao de
muitos liberais, est numa anedota contada aps a Primeira Grande
Guerra. Um antissemita alegava que os judeus haviam causado a
guerra. A resposta foi: Sim, os judeus e os ciclistas. Por que os
ciclistas?, pergunta um. E por que os judeus?, pergunta outro. A
teoria que apresenta os judeus como eterno bode expiatrio no signi
ca que o bode expiatrio poderia tambm ser qualquer outro grupo?
Essa teoria defende a total inocncia da vtima. Ela insinua no
apenas que nenhum mal foi cometido mas, tambm, que nada foi feito
pela vtima que a relacionasse com o assunto em questo. Contudo,
quem tenta explicar por que um determinado bode expiatrio se adapta
to bem a tal papel abandona nesse momento a teoria e envolve-se na
pesquisa histrica. E ento o chamado bode expiatrio deixa de ser a
vtima inocente a quem o mundo culpa por todos os seus pecados e
atravs do qual deseja escapar ao castigo; torna-se um grupo entre
outros grupos, todos igualmente envolvidos nos problemas do mundo.
O fato de ter sido ou estar sendo vtima da injustia e da crueldade
no elimina a sua corresponsabilidade. At h pouco, a falta de lgica
aparente na formulao da teoria do bode expiatrio bastava para
descart-la como escapista. Mas o surgimento do terror como
importante arma dos governos aumentou-lhe a credibilidade. A
diferena fundamental entre as ditaduras modernas e as tiranias do
passado est no uso do terror no como meio de extermnio e
amedrontamento dos oponentes, mas como instrumento corriqueiro para
governar as massas perfeitamente obedientes. O terror, como o
conhecemos hoje, ataca sem provocao preliminar, e suas vtimas so
inocentes at mesmo do ponto de vista do perseguidor. Esse foi o
caso da Alemanha nazista, quando a campanha de terror foi dirigida
contra os judeus, isto , contra pessoas cujas caractersticas comuns
eram aleatrias e independentes da conduta individual espec ca. Na
Rssia sovitica a situao mais confusa, j que o sistema bolchevista,
ao
16. contrrio do nazista, nunca admitiu em teoria o uso de
terror contra pessoas inocentes: tal a rmao, embora possa parecer
hipcrita em vista de certas prticas, faz muita diferena. Por outro
lado, a prtica russa mais avanada do que a nazista em um
particular: a arbitrariedade do terror no determinada por diferenas
raciais, e a aplicao do terror segundo a procedncia socioeconmica
(de classe) do indivduo foi abandonada h tempos, de sorte que
qualquer pessoa na Rssia pode subitamente tornar-se vtima do terror
policial. No estamos interessados aqui na ltima consequncia do
exerccio do domnio pelo terror, que leva situao na qual jamais
ningum, nem mesmo o executor, est livre do medo; em nosso contexto,
tratamos apenas da arbitrariedade com que as vtimas podem ser
escolhidas, e para isso decisivo que sejam objetivamente inocentes,
que sejam selecionadas sem que se atente para o que possam ou no
ter feito. primeira vista, isso pode parecer con rmao tardia da
velha teoria do bode expiatrio, e verdade que a vtima do terror
moderno exibe todas as caractersticas do bode expiatrio: no sentido
objetivo absolutamente inocente, porque nada fez ou deixou de fazer
que tenha alguma ligao com o seu destino. H, portanto, uma tentao
de voltar explicao que automaticamente tira toda a responsabilidade
da vtima: ela parece corresponder realidade em que nada nos
impressiona mais do que a completa inocncia do indivduo tragado
pela mquina do terror, e a sua completa incapacidade de mudar o
destino pessoal. O terror, contudo, assume a simples forma do
governo s no ltimo estgio do seu desenvolvimento. O estabelecimento
de um regime totalitrio requer a apresentao do terror como
instrumento necessrio para a realizao de uma ideologia espec ca, e
essa ideologia deve obter a adeso de muitos, at mesmo da maioria,
antes que o terror possa ser estabelecido. O que interessa ao
historiador que os judeus, antes de se tornarem as principais
vtimas do terror moderno, constituam o centro de interesse da
ideologia nazista. Ora, uma ideologia que tem de persuadir e
mobilizar as massas no pode escolher sua vtima arbitrariamente. Em
outras palavras, se o nmero de pessoas que acreditam na veracidade
de uma fraude to evidente como os Protocolos dos sbios do Sio
bastante elevado para dar a essa fraude o foro do dogma de todo um
movimento poltico, a tarefa do historiador j no consiste em
descobrir a fraude, pois o fato de tantos acreditarem nela mais
importante do que a circunstncia (historicamente secundria) de se
tratar de uma fraude. A explicao tipo bode expiatrio escamoteia,
portanto, a seriedade do antissemitismo e da importncia das razes
pelas quais os judeus foram atirados ao centro dos acontecimentos.
Igualmente disseminada a doutrina do eterno antissemitismo, na qual
o dio aos judeus apresentado como reao normal e natural, e que se
manifesta com maior ou menor virulncia segundo o desenrolar da
histria.Assim, as exploses do antissemitismo parecem no requerer
explicao especial, como consequncias naturais de um problema
eterno. perfeitamente natural que os antissemitas pro ssionais
adotassem essa doutrina: o melhor libi possvel para todos os
horrores. Se verdade que a humanidade tem insistido em assassinar
judeus durante mais de 2 mil
17. anos, ento a matana de judeus uma ocupao normal e at mesmo
humana, e o dio aos judeus fica justificado, sem necessitar de
argumentos. O aspecto mais surpreendente dessa premissa o fato de
haver sido adotada por muitos historiadores imparciais e at por um
elevado nmero de judeus. Essa estranha coincidncia torna a teoria
perigosa e desconcertante. Em ambos os casos, seu escapismo
evidente: como os antissemitas desejam fugir responsabilidade dos
seus feitos, tambm os judeus, atacados e na defensiva, ainda mais
naturalmente recusam, sob qualquer circunstncia, discutir a sua
parcela de responsabilidade. Contudo, as tendncias escapistas dos
apologistas o ciais baseiam-se em motivos mais importantes e menos
racionais. O aparecimento e o crescimento do antissemitismo moderno
foram concomitantes e interligados assimilao judaica, e ao processo
de secularizao e fenecimento dos antigos valores religiosos e
espirituais do judasmo. Vastas parcelas do povo judeu foram, ao
mesmo tempo, ameaadas externamente de extino fsica e, internamente,
de dissoluo. Nessas condies, os judeus que se preocupavam com a
sobrevivncia do seu povo descobriram, num curioso e desesperado
erro de interpretao, a ideia consoladora de que o antissemitismo, a
nal de contas, podia ser um excelente meio de manter o povo unido,
de sorte que na existncia de antissemitismo eterno estaria a eterna
garantia da existncia judaica. Essa atitude decerto supersticiosa,
relacionada com a f em sua eleio por Deus e com a esperana
messinica, era fortalecida pelo real fato de ter sido a hostilidade
crist, para os judeus, autntico fator que, durante muitos sculos,
desempenhava o papel do poderoso agente preservador, espiritual e
poltico. Os judeus confundem o moderno antissemitismo com o antigo
dio religioso antijudaico. Esse erro compreensvel: na sua
assimilao, processada margem do cristianismo, os judeus
desconheciam-lhe o aspecto religioso e cultural. Enfrentando o
cristianismo em declnio, os judeus podiam imaginar, em toda a
inocncia, que o antissemitismo correspondia a uma espcie de
retrocesso, medieval e anacrnica Idade das Trevas.A ignorncia ou a
incompreenso do seu prprio passado foi, em parte, responsvel pela
fatal subestimao dos perigos reais e sem precedentes que estavam
por vir. Mas preciso lembrar tambm que a inabilidade de anlise
poltica resultava da prpria natureza da histria judaica, histria de
um povo sem governo, sem pas e sem idioma. A histria judaica
oferece extraordinrio espetculo de um povo, nico nesse particular,
que comeou sua existncia histrica a partir de um conceito bem de
nido da histria e com a resoluo quase consciente de realizar na
terra um plano bem delimitado, e que depois, sem desistir dessa
ideia, evitou qualquer ao poltica durante 2 mil anos. Em
consequncia, a histria poltica do povo judeu tornou-se mais
dependente de fatores imprevistos e acidentais do que a histria de
outras naes, de sorte que os judeus assumiam diversos papis na sua
atuao histrica, tropeando em todos e no aceitando responsabilidade
precpua por nenhum deles. Aps a catstrofe nal, isto , aps a
aniquilao quase completa dos judeus da Europa, a tese do
antissemitismo eterno tornou-se mais perigosa do que nunca, pois
ela poderia levar at absolvio os mais tenebrosos criminosos entre
os antissemitas.
18. Longe de garantir a sobrevivncia do povo judeu, o
antissemitismo ameaou-o claramente de extermnio. Contudo, essa
explicao do antissemitismo, tal como a teoria do bode expiatrio e
por motivos semelhantes , sobreviveu ao confronto com a realidade,
pois ela acentua a absoluta inocncia das vtimas do terror moderno,
o que aparentemente con rmado pelos fatos. Em comparao com a teoria
do bode expiatrio, ela tem at a vantagem de responder incmoda
questo Por que os judeus e no outros? de maneira simplria: eterna
hostilidade. deveras notvel que as doutrinas que ao menos tentam
explicar o signi cado poltico do movimento antissemita neguem
qualquer responsabilidade espec ca da parte dos judeus e se recusem
a discutir o assunto nestes termos. Ao implicitamente recusarem
abordar o significado da conduta humana, assemelham-se s modernas
prticas e formas dos governos que, por meio do terror arbitrrio,
liquidam a prpria possibilidade de ao humana. De certa forma, nos
campos de extermnio nazistas os judeus eram assassinados de acordo
com a explicao oferecida por essas doutrinas razo do dio:
independentemente do que haviam feito ou deixado de fazer,
independentemente de vcio ou virtude pessoais. Alm disso, os
prprios assassinos, apenas seguindo ordens e orgulhosos de sua
desapaixonada e cincia, assemelhavam-se sinistramente aos
instrumentos inocentes de um ciclo inumano e impessoal de eventos,
exatamente como os considerava a doutrina do eterno antissemitismo.
Esses denominadores comuns entre a teoria e a prtica no indicam,
por si ss, a verdade histrica, embora espelhem o carter oportunista
das opinies popularmente propaladas, revelando e explicando por que
elas so to facilmente aceitveis pela multido. O historiador se
interessa por elas enquanto so parte da histria de que tratam, e na
medida em que se interpem no caminho de sua busca verdade. Mas,
sendo contemporneo dos eventos, o historiador to sujeito ao poder
persuasrio dessas opinies como qualquer outra pessoa. Para o
historiador dos tempos modernos especialmente importante ter
cuidado com as opinies geralmente aceitas, que dizem explicar
tendncias histricas, porque durante o ltimo sculo foram elaboradas
numerosas ideologias que pretendem ser as chaves da histria, embora
no passem de desesperados esforos de fugir responsabilidade. Plato,
em sua luta contra os so stas, descobriu que a arte universal de
encantar o esprito com argumentos (Fedro, 261) nada tinha a ver com
a verdade, mas s visava conquista de opinies, que so mutveis por
sua prpria natureza e vlidas somente na hora do acordo e enquanto
dure o acordo (Teeteto, 172b). Descobriu tambm que a verdade ocupa
uma posio muito instvel no mundo, pois as opinies isto , o que pode
pensar a multido, como escreveu decorrem antes da persuaso do que
da verdade (Fedro, 260). A diferena mais marcante entre os so stas
antigos e os modernos simples: os antigos se satisfaziam com a
vitria passageira do argumento custa da verdade, enquanto os
modernos querem uma vitria mais duradoura, mesmo que custa da
realidade. Em outras palavras, aqueles destruam a dignidade do
pensamento humano, enquanto estes destroem a dignidade da ao
humana. O lsofo preocupava- se com os manipuladores da lgica,
enquanto o historiador v obstculos nos modernos
19. manipuladores dos fatos, que destroem a prpria histria e
sua inteligibilidade, colocada em perigo sempre que os fatos deixam
de ser considerados parte integrante do mundo passado e presente,
para serem indevidamente usados a m de demonstrar esta ou aquela
opinio. certo que seria difcil encontrar o caminho no labirinto dos
fatos desarticulados, se fossem abandonadas as opinies e rejeitada
a tradio. Contudo, essas perplexidades da historiogra a so
consequncias n mas se forem consideradas as profundas transformaes
do nosso tempo e o seu efeito sobre as estruturas histricas do
mundo ocidental. Dessas transformaes resultou o desnudamento dos
componentes, antes ocultos, de nossa histria. Isso no signi ca que
o que desabou na crise (talvez a mais profunda na histria do
Ocidente desde a queda do Imprio Romano) foi mera fachada que
encobria esses componentes, embora no passassem de fachada muitas
coisas que, h apenas algumas dcadas, eram consideradas essenciais.
A simultaneidade entre o declnio do Estado-nao europeu e o
crescimento de movimentos antissemitas, a coincidncia entre a queda
de uma Europa organizada em naes e o extermnio dos judeus,
preparado pela vitria do antissemitismo sobre todos os outros ismos
que competiam na luta pela persuaso e conquista da opinio pblica,
tm de ser interpretadas como srio elemento no estudo da origem do
antissemitismo. O antissemitismo moderno deve ser encarado dentro
da estrutura geral do desenvolvimento do Estado-nao, enquanto, ao
mesmo tempo, sua origem deve ser encontrada em certos aspectos da
histria judaica e nas funes especi camente judaicas, isto ,
desempenhadas pelos judeus no decorrer dos ltimos sculos. Se no
estgio nal da desintegrao os slogans antissemitas constituam o meio
mais e caz de inspirar grandes massas para lev-las expanso
imperialista e destruio das velhas formas de governo, ento a
histria da relao entre os judeus e o Estado deve conter indicaes
elementares para entender a hostilidade entre certas camadas da
sociedade e os judeus. Trataremos disso no captulo seguinte. Se,
alm disso, a contnua expanso da ral moderna isto , dos dclasss
provenientes de todas as camadas produziu lderes que, sem se
preocuparem com o fato de serem ou no os judeus su cientemente
importantes para se tornarem o foco de uma ideologia poltica,
repetidamente viram neles a chave da histria e a causa central de
todos os males, ento a histria das relaes entre os judeus e a
sociedade deve conter indicaes elementares para explicar a
hostilidade entre a ral e os judeus. Trataremos da relao entre os
judeus e a sociedade no terceiro captulo. O quarto captulo ocupa-se
do Caso Dreyfus, que foi uma espcie de ensaio geral para o
espetculo do nosso prprio tempo. Analisamos o caso em todos os
detalhes, dada a peculiar oportunidade que oferece de, num breve
momento histrico, revelar as potencialidades do antissemitismo, at
ento ocultas, como importante arma poltica dentro da estrutura
poltica do sculo xix, e isto apesar da sua relativa sanidade. Os
trs captulos seguintes analisam, porm, apenas os elementos
preparatrios, que chegaram ao estgio da completa realizao quando a
decadncia do Estado-nao e o surgimento do imperialismo se
destacaram concomitantemente no cenrio poltico.
20. 2. OS JUDEUS, O ESTADO-NAO E O NASCIMENTO DO ANTISSEMITISMO
1. OS EQUVOCOS DA EMANCIPAO E O BANQUEIRO ESTATAL JUDEU No pice do
seu desenvolvimento no sculo xix, o Estado-nao concedeu aos
habitantes judeus a igualdade de direitos. Esconde contradies
profundas e fatais a evidente incoerncia do fato de que os judeus
receberam a cidadania dos governos que, no decorrer dos sculos,
haviam feito da nacionalidade um pr-requisito da cidadania, e da
homogeneidade de populao a principal caracterstica da estrutura
poltica. As leis e ditos que outorgavam aos judeus o direito
emancipao seguiam na Europa, lenta e hesitantemente, a lei francesa
de 1792. Esses decretos foram precedidos e acompanhados pela
atitude ambgua da parte do Estado-nao em relao aos seus habitantes
judeus. Do colapso da ordem feudal surgiu o conceito revolucionrio
de igualdade, segundo o qual no se podia mais tolerar uma nao
dentro de outra nao. Por conseguinte, as restries e os privilgios
dos judeus tinham de ser abolidos juntamente com todos os outros
direitos especiais. Contudo, essa expanso da igualdade dependia em
grande parte do crescimento da fora de uma mquina estatal
independente que, sob forma de despotismo esclarecido ou de governo
constitucional, superior s classes e aos partidos, pudesse, em
esplndido isolamento, funcionar, governar e representar os
interesses da nao como um todo. Assim, quando a partir do m do
sculo xvii a expanso econmica estatal aumenta a necessidade de
crditos e o alargamento da esfera de in uncia econmica do Estado,
era natural que se recorresse ao auxlio dos judeus, velhos e
experimentados emprestadores de dinheiro, com ligaes com a nobreza
europeia, qual deviam muitas vezes proteo local e cujas nanas
costumavam administrar, enquanto nenhum outro grupo entre as
populaes da Europa estava disposto a conceder crdito ao Estado, ou
a participar ativamente da evoluo dos negcios estatais. Era do
interesse dos Estados conceder aos judeus certos privilgios em
troca e trat-los como grupo parte. De modo algum o Estado poderia
consentir que os judeus fossem assimilados pelo resto da populao, a
qual lhe recusava crdito, negando- se a participar dos negcios do
Estado e a foment-los. Portanto, a emancipao dos judeus, como lhes
foi concedida pelo sistema de Estados nacionais na Europa durante o
sculo xix, tinha dupla origem e o signi cado ambguo. Por um lado,
ela decorria da estrutura poltica e jurdica de um sistema renovado,
que s podia funcionar nas condies de igualdade poltica e legal, a
ponto de os governos, para seu prprio bem, precisarem aplainar as
desigualdades da velha ordem do modo mais completo e mais rpido
possvel. Por outro lado, a emancipao resultava claramente da
gradual extenso de privilgios originalmente concedidos a apenas
alguns indivduos e, depois, a pequenas camadas de judeus ricos e
que passaram a ser outorgados a todos os judeus da Europa central e
ocidental, para que atendessem s crescentes exigncias dos negcios
estatais, a que os limitados grupsculos de judeus
21. ricos no conseguiam mais fazer face sozinhos.1 Assim, a
emancipao signi cava, ao mesmo tempo, igualdade e privilgios: a
destruio da antiga autonomia comunitria judaica e a consciente
preservao dos judeus como grupo separado na sociedade; a abolio de
restries e direitos especiais e a extenso desses direitos a um
grupo cada vez maior de indivduos. A igualdade de condio para todos
os cidados constituiu a premissa do novo corpo poltico e, embora
essa igualdade houvesse sido realmente posta em prtica pelo menos
no tocante privao das antigas classes governantes do privilgio de
governar e das classes oprimidas do direito de serem protegidas , o
processo coincidia com o nascimento de uma sociedade de classes, as
quais novamente separavam os cidados, econmica e socialmente, de
modo to e caz quanto o antigo regime. A igualdade de condio, como
entendida pelos jacobinos da Revoluo Francesa, s se tornou
realidade na Amrica do Norte; no continente europeu, foi substituda
por uma simples igualdade perante a lei. A contradio fundamental
entre o corpo poltico baseado na igualdade perante a lei e a
sociedade baseada na desigualdade do sistema de classes impediu o
desenvolvimento de sistemas e cazes e o nascimento de uma nova
hierarquia poltica. A intransponvel desigualdade da condio social
outorgada ao indivduo e quase garantida por nascimento coexistia
paradoxalmente com a igualdade poltica. Somente pases politicamente
atrasados, como a Alemanha imperial, haviam conservado alguns
vestgios feudais. L, os membros da aristocracia, que, pouco a
pouco, adquiriam a conscincia de serem uma classe, dispunham de
condio poltica privilegiada e, assim, podiam conservar, como grupo,
certa relao especial com o Estado. Mas tratava-se apenas de
vestgios do passado. O sistema de classes completamente
desenvolvido e maduro de ne a condio do indivduo por sua associao
com uma determinada classe dentro do relacionamento dela com as
outras, e no por sua posio pessoal no Estado. Os judeus constituam
a nica exceo a essa regra geral. No formavam uma classe nem
pertenciam a qualquer das classes nos pases em que viviam. Como
grupo, no eram nem trabalhadores nem gente da classe mdia, nem
latifundirios, nem camponeses. Sua riqueza parecia fazer deles
membros da classe mdia, mas no participavam do seu desenvolvimento
capitalista; mal eram representados nas empresas industriais; e,
se, na ltima fase de sua histria europeia, chegavam a conduzir
importantes empresas, dirigiam pessoal burocrtico ou intelectual e
no o operariado. Em outras palavras, embora seu status fosse de
nido pelo fato de serem judeus, no o era por suas relaes com as
outras classes. A proteo especial que recebiam do Estado (quer sob
antiga forma de privilgios, quer sob forma de leis especiais de
emancipao, de que nenhum outro grupo necessitava e que, muitas
vezes, precisava de reforo legal ulterior, por causa da hostilidade
da sociedade) e os servios especiais que prestavam a governos
impediam, ao mesmo tempo, que submergissem no sistema de classes, e
que se estabelecessem como classe.2 Assim, mesmo que ingressassem
na sociedade, formavam um grupo bem de nido que preservava a sua
identidade mesmo dentro de uma das classes com as quais se
relacionavam, fosse esta aristocracia ou burguesia.
22. No h dvida de que o interesse do Estado-nao no sentido de
conservar os judeus como grupo especial, e evitar que fossem
assimilados pela sociedade de classes, coincidia com o interesse
dos judeus no sentido de sobreviverem como grupo. Tambm mais do que
provvel que, sem essa coincidncia, as tentativas dos governos
teriam sido vs: as fortes tendncias de igualar todos os cidados,
por parte do Estado, e de incorporar cada indivduo numa classe, por
parte da sociedade, implicavam claramente a completa assimilao dos
judeus e s podiam ser frustradas por uma combinao de dois
elementos: interveno do governo e cooperao voluntria. A nal, a
poltica o cial em relao aos judeus no era sempre to consistente e
in exvel como poderamos pensar, se apenas considerssemos os
resultados nais.3 realmente surpreendente ver com que uniformidade
os judeus desprezaram as oportunidades de se engajar em empresas e
negcios capitalistas normais.4 Mas, sem os interesses e as prticas
dos governos, os judeus mal poderiam ter conservado sua identidade
grupal. Em contraste com todos os outros grupos, os judeus eram de
nidos pelo sistema poltico, e a sua posio era determinada por ele.
Como, porm, esse sistema poltico carecia de base assentada em
realidade social, eles se situavam, socialmente falando, no vcuo.
Sua desigualdade social era bem diferente da desigualdade
decorrente do sistema de classes; novamente, ela resultava da relao
com o Estado, de modo que, na sociedade, o prprio fato de o
indivduo ter nascido judeu signi cava que ou era superprivilegiado
por receber proteo especial do governo ou subprivilegiado, privado
de certos direitos e oportunidades, negados aos judeus para impedir
a sua assimilao. O esquema da ascenso e queda do sistema de
Estados-naes europeus com relao ao povo judeu segue, grosso modo,
os seguintes estgios: 1. Nos sculos xvii e xviii, o lento
desenvolvimento dos Estados-naes processava-se sob a tutela dos
monarcas absolutos. Em toda parte, judeus emergiam individualmente
do profundo anonimato marginalizador para as posies s vezes
atraentes e quase sempre in uentes de judeus da corte, que
nanciavam os negcios do Estado e administravam as transaes
nanceiras dos seus soberanos. Essas modi caes afetavam de maneira
insigni cante os judeus em geral e as massas que continuavam a
viver dentro dos padres correspondentes antiga ordem feudal. 2. Aps
a Revoluo Francesa, que alterou bruscamente as condies polticas de
todo o continente europeu, surgiram Estados-naes no sentido
moderno, cujas transaes comerciais exigiam muito mais capital e
crdito de que jamais dispuseram os judeus da corte. Somente poderia
satisfazer s novas e maiores necessidades governamentais a fortuna
combinada dos grupos judeus mais ricos da Europa ocidental e
central, con ada por eles a banqueiros judeus que, por conseguinte,
como banqueiros, precisavam de coletividades judaicas organizadas
como fontes da captao do dinheiro, e as apoiavam nesse sentido.
Nesse perodo, portanto, comeou a concesso de privilgios at ento s
necessrios, individualmente, aos judeus da corte camada rica que
havia conseguido estabelecer-se, no decorrer do sculo xviii, nos
centros urbanos e nanceiros mais importantes. Por m, foi concedida
aos judeus a emancipao em todos os
23. Estados-naes, exceto naqueles pases em que os judeus,
devido ao seu elevado nmero e ao atraso social geral (como na
Rssia), no conseguiram organizar-se como grupo especial, parte, de
funo econmica especi camente destinada a apoiar financeiramente o
governo. 3. Essa ntima relao entre judeus e governos era facilitada
pela indiferena geral da burguesia no tocante poltica em geral e s
nanas do Estado em particular. Esse perodo terminou com o
surgimento do imperialismo, no m do sculo xix, quando os negcios
capitalistas em expanso j no podiam ser realizados sem a interveno
e o apoio poltico ativo do Estado. O imperialismo, por outro lado,
minou as prprias bases do Estado-nao e introduziu no conjunto de
naes europeias o esprito comercial de concorrncia competitiva. Os
judeus perderam ento sua posio exclusiva nos negcios do Estado para
homens de negcios de mentalidade imperialista, e a sua importncia
como grupo declinou, embora alguns judeus conservassem
individualmente sua in uncia como consultores nanceiros e como
mediadores intereuropeus. Esses judeus, contudo, em contraste com
os banqueiros estatais, no precisavam do apoio e solidariedade das
comunidades judaicas, como os judeus da corte dos sculos xvii e
xviii. Assim, isolavam-se delas. Alis, as comunidades judaicas j no
eram nanceiramente organizadas e, embora alguns judeus em altas
posies ainda representassem aos olhos do mundo gentio o povo judeu
como um todo, havia pouca ou nenhuma realidade material nesse fato.
4. Como grupo, o povo judeu do Ocidente europeu desintegrou-se
juntamente com o Estado-nao nas dcadas que precederam a de agrao da
Primeira Guerra Mundial. O rpido declnio da Europa aps a guerra j
os encontrou destitudos do antigo poder, atomizados num rebanho de
indivduos mais ou menos ricos. Mas, na era imperialista, a riqueza
dos judeus havia se tornado insigni cante; para a Europa,
desprovida de equilbrio de poder entre as naes que a compunham, e
carente de noes de solidariedade intereuropeia, o elemento judeu,
intereuropeu e no nacional, tornou-se objeto de dio, devido sua
riqueza intil, e de desprezo, devido sua falta de poder. Os
primeiros governos a necessitarem de renda regular e de nanas
seguras foram as monarquias absolutistas, sob as quais o Estado-nao
viria a nascer. Antes, prncipes e reis feudais tambm necessitavam
de dinheiro, e at mesmo de crdito, mas apenas para ns espec cos e
operaes temporrias; mesmo no sculo xvi, quando os Fugger puseram
seu prprio crdito disposio do Estado, ainda no cogitavam de
estabelecer crdito estatal especial. Inicialmente, os monarcas
absolutos cuidavam de suas necessidades nanceiras em parte pelo
velho mtodo de guerra e pilhagem, e em parte pelo sistema de
monoplio de impostos, o que solapava o poder, pois arruinava as
fortunas da nobreza, sem aplacar a hostilidade da populao. Durante
muito tempo, as monarquias absolutistas procuraram na sociedade um
grupo do qual pudessem depender com a mesma segurana que a nobreza
dava monarquia feudal. Na Frana, desde o sculo xv desenvolvia-se
incessante luta entre as corporaes e a monarquia, esta querendo
integrar aquelas no sistema do Estado. A mais interessante dessas
experincias foi, sem dvida, o surgimento do mercantilismo e as
tentativas do
24. Estado absolutista para impor o monoplio absoluto ao
comrcio e indstria nacionais. O consequente desastre do Estado
absolutista e a sua bancarrota provocada pela resistncia da
burguesia em ascenso so suficientemente conhecidos.5 Antes dos
ditos de emancipao, cada casa principesca, cada monarca da Europa,
j possua seu judeu da corte para administrar as nanas. Durante os
sculos xvii e xviii, esses judeus da corte eram sempre indivduos
isolados, que mantinham, decerto, conexes intereuropeias e
dispunham de fontes de crdito intereuropeias mas no constituam
entidade nanceira internacional.6 Os judeus individualmente e as
primeiras ricas pequenas comunidades judaicas dispunham ento de
poder to elevado que se permitiam abordar com maior franqueza no s
as discusses sobre seus privilgios mas tambm sobre o direito de
obt-los, enquanto as autoridades se referiam de maneira muito
cuidadosa importncia dos servios que os judeus prestavam ao
Estado.7 No h sombra de dvida quanto conexo entre os servios
prestados e privilgios concedidos. Na Frana, na Baviera, na ustria
e na Prssia os judeus privilegiados recebiam ttulos de nobreza, de
modo que ultrapassavam o status de meros homens ricos. Sobrepujadas
as di culdades enfrentadas pelos Rothschild em conseguir o ttulo de
nobreza (aprovado pelo governo austraco em 1817), ndava cabalmente
uma poca. Em ns do sculo xviii j era evidente nos vrios pases que
nenhuma das camadas ou classes estava desejosa ou tinha capacidade
de tornar-se classe governante, isto , de identi car-se com o
governo como a nobreza o havia feito no decorrer dos sculos.8 O
fato de a monarquia no ter conseguido encontrar uma classe que
substitusse a aristocracia dentro da sociedade levou ao rpido
desenvolvimento do Estado-nao e presuno de que esse sistema
estivesse acima de todas as classes, completamente independente da
sociedade com sua pluralidade de interesses particulares que a
perfaziam en m, o verdadeiro e nico representante da nao como um
todo. Esse sistema resultou, por outro lado, no aprofundamento da
brecha entre o Estado e a sociedade, na qual repousava a estrutura
poltica da nao. Sem essa brecha, no seria necessrio nem possvel
incluir os judeus na histria europeia em termos de igualdade.
Quando falharam todas as tentativas de aliar-se a uma das classes
principais da sociedade, restou ao Estado impor-se como poderosa
empresa comercial. O crescimento dos negcios estatais foi causado
pelo con ito entre o Estado e as foras nanceiramente poderosas da
burguesia, que preferiu dedicar-se ao investimento privado,
evitando a interveno do Estado e recusando-se a participar de
maneira ativa no que lhe parecia ser empresa improdutiva. Foram
assim os judeus a nica parte da populao disposta a nanciar os
primrdios do Estado e a ligar seu destino ao desenvolvimento
estatal. Com o seu crdito e suas ligaes internacionais, estavam em
excelente posio para ajudar o Estado-nao a a rmar-se entre os
maiores empregadores e empresas da poca.9 Acentuados privilgios e
mudanas decisivas na condio da vida dos judeus constituam o preo
pela prestao de tais servios e, ao mesmo tempo, a recompensa por
grandes riscos. Quando os Mnzjuden judeus nancistas de Frederico
da
25. Prssia ou os judeus da corte do imperador austraco
receberam, sob forma de privilgios gerais e patentes, o mesmo
status que, meio sculo mais tarde, todos os judeus da Prssia
receberiam com o nome de emancipao e igualdade de direitos; quando,
no m do sculo xviii, no pice de sua fortuna, os judeus de Berlim
conseguiram impedir o in uxo dos judeus das provncias orientais
ex-polonesas do imprio germnico, porque no desejavam dividir a sua
igualdade com os correligionrios mais pobres e menos cultos, os
quais no reconheciam como iguais; quando, ao tempo da Assembleia
Nacional Francesa, os judeus de Bordeaux e de Avignon protestaram
violentamente contra a concesso de igualdade, por parte do governo
francs, aos judeus das provncias orientais Alscia principalmente ,
cou claro que os judeus no pensavam em termos de direitos iguais,
mas, sim, de privilgios e liberdades especiais. E realmente no nos
surpreende que os judeus privilegiados, intimamente ligados aos
negcios de governos e bem conscientes da natureza e condio de seu
status, relutassem em aceitar a outorga para todos os judeus dessa
liberdade, que eles conseguiram em troca por seus servios, e a
qual, portanto, vista sob esse aspecto, no podia, segundo eles,
tornar-se um direito a ser compartilhado por todos.10 S no m do
sculo xix o imperialismo em evoluo levou as classes proprietrias
mudana da opinio inicial sobre a suposta improdutividade dos
negcios estatais. A expanso imperialista, juntamente com o
gradativo aperfeioamento dos instrumentos de violncia monopolizados
de modo absoluto pelo Estado, tornou interessantes os negcios
comerciais com o Estado como parceiro. Isso signi cou,
naturalmente, que os judeus, gradual mas automaticamente, perderam
sua posio exclusiva e singular. Mas a boa sorte dos judeus e a sua
sada da obscuridade para a importncia poltica teriam sido mais
breves, se eles se houvessem restringido a meras funes comerciais
dentro do Estado-nao em crescimento. Em meados do sculo xix, alguns
Estados adquiriram su ciente crdito para dispensar o nanciamento e
a garantia dos judeus para seus emprstimos.11 Ademais, a crescente
conscincia por parte dos cidados de que seus destinos particulares
se tornavam cada vez mais dependentes dos destinos do pas fez com
que eles se dispusessem a conceder ao governo mais crdito
necessrio. A prpria igualdade era simbolizada pelo fato de qualquer
um poder comprar papis do governo aes, aplices, bnus etc. , j
considerados a mais segura modalidade de investir capital, na
medida em que o Estado, totalmente soberano para travar guerras e
dispor da vida dos sditos, tornou-se a nica entidade que podia
realmente proteger as propriedades dos cidados. A partir de meados
do sculo xix, os judeus mantiveram posio de destaque porque ainda
desempenhavam papel importante, intimamente ligado participao nos
destinos do Estado. Sem territrio e sem governo prprios, os judeus
constituam elemento intereuropeu; e o Estado-nao necessariamente
conservava-lhes essa condio, porque dela dependiam os servios
nanceiros prestados por judeus. Mas, mesmo aps o desaparecimento da
sua utilidade econmica, a condio intereuropeia dos judeus
continuava sendo de suma importncia para o Estado, principalmente
em tempo de conflitos e guerras entre as naes. Enquanto a
necessidade dos servios dos judeus aos Estados-naes surgira de
modo
26. lento e lgico, evoluindo a partir do contexto geral da
histria da Europa, a ascenso dos judeus posio de destaque poltico e
econmico foi sbita e inesperada, tanto para eles prprios como para
os seus vizinhos. No fim da Idade Mdia, o emprestador de dinheiro
judeu perdeu a sua antiga importncia, e j no comeo do sculo xvi os
judeus comearam a ser expulsos de cidades e centros comerciais para
lugarejos e vilas do interior, trocando assim a uniforme proteo das
autoridades centrais por uma posio insegura, concedida
desigualmente por pequenos nobres locais.12 O momento crtico surgiu
no sculo xvii quando, durante a Guerra dos Trinta Anos, esses
judeus, insigni cantes e dispersos emprestadores de dinheiro,
podiam garantir, com o auxlio de judeus mercadores, provises para
os exrcitos mercenrios dos chefes guerreiros situados em terras
ocupadas e estranhas. Como essas guerras eram semifeudais e mais ou
menos particulares dos prncipes, sem envolver quaisquer interesses
de outras classes, o que os judeus ganhavam em status era muito
limitado e quase imperceptvel. Mas o nmero de judeus da corte
aumentava, porque cada casa feudal precisava do seu financista
particular. Esses judeus da corte eram servos de um grupo social
apenas: serviam to s a pequenos senhores feudais, que, como membros
da nobreza, no aspiravam a representar qualquer autoridade
centralizada. As propriedades que administravam, o dinheiro que
emprestavam e as provises que compravam constituam problemas
particulares do senhor, de modo que essas atividades no podiam
envolver os judeus em questes polticas. Portanto, odiados ou
favorecidos, os judeus tampouco podiam transformar-se em questo
poltica de alguma importncia. Quando, contudo, mudou o status do
senhor feudal, quando ele se tornou prncipe ou rei, alterou-se
tambm a funo do judeu da corte. Os judeus, como elementos
estranhos, desinteressados pelas mudanas, mal percebiam a gradativa
melhora de sua posio. No que lhes tocava, continuavam a administrar
negcios privados, e sua lealdade continuava a ser questo pessoal,
que nada tinha a ver com consideraes polticas. A lealdade signi
cava honestidade: no obrigava a tomar partido nos con itos ou a
permanecer el por motivos polticos. Comprar provises, vestir e
alimentar um exrcito, emprestar dinheiro para o recrutamento de
mercenrios re etia apenas o interesse pelo bem-estar de um scio
comercial, fosse ele quem fosse. O tipo de relao entre os judeus e
a aristocracia impediu que o grupo judeu se ligasse a outra camada
da sociedade. Depois que desapareceu, no comeo do sculo xix, nunca
foi substitudo. Como seu vestgio, entre os judeus permaneceu a
inclinao por ttulos aristocrticos (especialmente na ustria e na
Frana) e, no tocante aos no judeus, uma espcie de antissemitismo
liberal, que colocava judeus e nobreza no mesmo nvel, por alegar
que ambos se aliavam nanceiramente contra a burguesia em ascenso.
Esses argumentos, correntes na Prssia e na Frana, eram plausveis
antes da emancipao geral dos judeus, pois os privilgios dos judeus
da corte realmente se assemelhavam aos direitos e s liberdades da
nobreza; os judeus demonstravam o mesmo medo da aristocracia de
perder os seus privilgios, e usavam os mesmos argumentos contra a
igualdade de todos. A plausibilidade tornou-se ainda maior quando,
no sculo xviii,
27. maioria dos judeus privilegiados foram outorgados ttulos
menores de nobreza e, no comeo do sculo xix, quando os judeus
ricos, tendo perdido seus laos com as comunidades judaicas,
buscaram status social seguindo o modelo da aristocracia. Mas tudo
isso era inconsequente, primeiro, porque j era bvio que a nobreza
estava em declnio, enquanto os judeus, ao contrrio, subiam
continuamente em sua posio social; e, segundo, porque a prpria
aristocracia, especialmente na Prssia, veio a ser a primeira classe
a esboar uma ideologia baseada no antissemitismo. Os judeus eram
fornecedores em tempo de guerra, mas, embora servos do rei, jamais
participavam dos con itos; nem se esperava que o zessem. Quando os
con itos cresceram e se tornaram guerras nacionais, eles
continuaram mantendo a caracterstica de grupo internacional, cuja
importncia e utilidade decorriam precisamente do fato de nunca se
terem ligado a qualquer causa nacional. No sendo mais banqueiros
estatais nem fornecedores em tempo de guerra (a ltima guerra
nanciada por um judeu foi a guerra austro-prussiana de 1866, quando
Bleichroeder ajudou Bismarck, depois que o parlamento da Prssia
negou a este ltimo os crditos necessrios), os judeus tornaram- se
consultores nanceiros e assistentes em tratados de paz e, de modo
menos organizado e mais inde nido, mensageiros e intermedirios na
transmisso de notcias. Os ltimos tratados de paz elaborados sem
assistncia judaica foram os do Congresso de Viena, entre a Frana e
as demais potncias da Europa. O papel de Bleichroeder nas negociaes
de paz entre a Alemanha e a Frana em 1871 foi mais signi cativo do
que seu auxlio na guerra, e ele prestou servios ainda mais
importantes no m da dcada de 1870, quando, atravs de suas ligaes
com os Rothschild, proporcionou a Bismarck um meio de comunicao
indireta com Benjamin Disraeli.13 Os tratados de paz aps a Primeira
Guerra Mundial foram os ltimos nos quais os judeus desempenharam
papel proeminente como consultores. O ltimo judeu que deveu sua
ascenso no cenrio nacional sua conexo judaica internacional foi
Walter Rathenau, ministro do Exterior da Repblica de Weimar. Como
disse um de seus colegas aps o seu assassinato por nacionalistas
antissemitas, Rathenau pagou com a vida o fato de ter transferido
aos ministros da nova repblica, completamente desconhecidos no
mbito internacional, seu prestgio no mundo internacional das nanas
e o apoio dos judeus em todo o mundo.14 bvio que os governos
antissemitas no usassem os judeus para os negcios de guerra e paz.
Mas a eliminao dos judeus do cenrio internacional tinha um signi
cado mais amplo e mais profundo do que o antissemitismo
propriamente dito. Os judeus eram valiosos na guerra na medida em
que, usados como elemento no nacional, asseguravam as
possibilidades de paz; isto , enquanto o objetivo dos beligerantes
nas guerras de competio era a paz de acomodao e o restabelecimento
do modus vivendi. Mas, quando as guerras tornaram-se ideolgicas,
visando a completa aniquilao do inimigo, os judeus deixaram de ser
teis. J isso levaria destruio de sua existncia coletiva, embora
seja necessrio frisar que seu desaparecimento do cenrio poltico, e
at mesmo a extino da vida grupal espec ca, no conduzia
necessariamente ao extermnio fsico dos judeus. Contudo, verdadeiro
apenas parcialmente o argumento
28. de que os judeus alemes teriam se tornado nazistas, se isso
lhes fosse permitido, com a mesma facilidade com que o zeram seus
concidados arianos, como, alis, os judeus italianos se alistavam no
partido fascista da Itlia antes que o fascismo italiano
introduzisse a legislao racial. Essa assero verdadeira apenas com
relao psicologia dos judeus tomados individualmente, psicologia que
no diferia muito da ento reinante ao redor, mas patentemente falsa
no sentido histrico. O nazismo, mesmo sem pregar o antissemitismo,
teria levado o golpe de misericrdia na existncia do povo judeu na
Europa, e seria suicdio para os judeus como povo apoi-lo, mesmo que
no o fosse necessariamente para indivduos de origem judaica. A
primeira contradio que marcou o destino dos judeus da Europa
durante os ltimos sculos aquela entre a igualdade e o privilgio
isto , entre a igualdade concedida sob a forma de privilgio e o
privilgio como meio para alcanar a igualdade. A esta, preciso
acrescentar uma segunda contradio: os judeus, o nico povo no
nacional da Europa, foram mais ameaados que quaisquer outros pelo
colapso do sistema de Estados nacionais. A situao menos paradoxal
do que pode parecer primeira vista. Os representantes da nao,
fossem jacobinos de Robespierre a Clemenceau ou representantes dos
governos reacionrios da Europa central desde Metternich at
Bismarck, tinham algo em comum: todos estavam sinceramente
preocupados com o equilbrio do poder na Europa. Buscavam,
naturalmente, mudar esse equilbrio em favor de seus respectivos
pases, mas jamais sonhariam com o monoplio do poder que levasse
aniquilao dos seus competidores. Os judeus no apenas podiam ser
usados no interesse desse precrio equilbrio, mas se tornaram at uma
espcie de smbolo dos interesses comuns das naes europeias. No foi,
portanto, mero acidente que as derrotas dos povos da Europa foram
antecedidas pela catstrofe do povo judeu. Era fcil iniciar a
dissoluo do precrio equilbrio de foras na Europa a partir da
eliminao dos judeus, embora fosse difcil compreender que essa
eliminao transcendia o nacionalismo inusitadamente cruel ou a
inoportuna restaurao de velhos preconceitos. Quando veio a
hecatombe, o destino do povo judeu passou a ser considerado um caso
especial, cuja histria seguia leis excepcionais e cuja sorte,
portanto, por depender de determinismo histrico, no era relevante.
Mas a esse colapso da solidariedade europeia correspondeu o colapso
da solidariedade interjudaica em toda a Europa. Quando comeou a
perseguio aos judeus alemes, os judeus dos outros pases desse
continente descobriram que os judeus da Alemanha constituam uma
exceo, cujo destino no se assemelhava ao seu. Do mesmo modo, o
colapso da comunidade judaica alem foi precedido pela fragmentao em
numerosas faces, cada qual acreditando que seus direitos humanos
seriam protegidos por privilgios especiais o privilgio de ter sido
veterano da Primeira Grande Guerra, ou lho de veterano, ou lho do
soldado morto em combate pela ptria. Cada grupo julgava constituir
uma exceo. A aniquilao fsica dos indivduos de origem judaica parece
ento estar sendo precedida pela destruio moral do grupo e pela
autodissoluo comunitria, como se o povo judeu devesse sua existncia
exclusivamente aos outros povos e ao dio que deles emanava.
29. ainda um dos aspectos mais comoventes da histria judaica o
fato de que o ingresso dos judeus na histria da Europa tenha sido
motivado por constiturem um elemento intereuropeu e no nacional num
mundo estruturado nacionalmente. Que esse papel foi mais duradouro
e mais essencial do que sua funo como banqueiros estatais uma das
razes que engendraram o novo tipo, moderno, de produtividade
judaica nas artes e nas cincias. No sem lgica histrica que a queda
dos judeus como grupo tenha coincidido com a runa de um sistema e
de um corpo poltico que, quaisquer que tenham sido os seus
defeitos, haviam necessitado e podiam tolerar um elemento pan-
europeu, consubstanciado em judeus. A grandeza dessa existncia
especi camente europeia no deve ser esquecida. Os poucos autores
europeus que sentiam esse aspecto da questo judaica, mesmo que no
nutrissem simpatia pelos judeus, sabiam avaliar imparcialmente a
situao europeia. Entre eles estava Diderot, o nico lsofo francs do
sculo xviii que no era hostil aos judeus e que reconhecia neles um
lao til entre europeus de diferentes nacionalidades; Wilhelm von
Humboldt, que, testemunhando a emancipao dos judeus como resultado
da Revoluo Francesa, observou que eles perderiam sua universalidade
quando virassem franceses;15 e, nalmente, Friedrich Nietzsche,
autor da expresso bom europeu, que soube avaliar corretamente o
papel dos judeus na histria europeia, sem cair nas armadilhas do
lossemitismo barato ou de atitude, ento progressista, de proteo.
Essa anlise, embora correta na descrio de manifestaes super ciais
do fenmeno, deixa de lado o paradoxo mais srio existente no centro
da histria poltica dos judeus. De todos os povos europeus, os
judeus eram os nicos sem Estado prprio e, precisamente por isso,
haviam aspirado tanto, e tanto se prestavam, a alianas entre
governos e Estados, independentemente do que esses governos e
Estados representassem. Por outro lado, os judeus no tinham
qualquer tradio ou experincia poltica e no percebiam a tenso
nascente entre a sociedade e o Estado, nem os riscos evidentes e a
potencialidade decisria que assumiam, decorrentes do seu novo
papel. O parco conhecimento da poltica resultava da prtica, j
tradicional, de sua convivncia. Essa falha surgiu ainda no Imprio
Romano, onde os judeus eram protegidos, por assim dizer, pelo
soldado romano, e, depois, na Idade Mdia, quando haviam buscado e
recebido proteo de remotas autoridades monrquicas e clericais, a
despeito da animosidade da populao e dos governantes locais. Essas
experincias haviam, de alguma forma, lhes ensinado que a
autoridade, e especialmente a alta autoridade, lhes era favorvel, e
que os funcionrios inferiores, e especialmente o povo comum, eram
perigosos. Esse preconceito, que expressava uma verdade histrica,
embora no mais correspondesse s novas circunstncias, estava to
profundamente arraigado entre os judeus, e era to inconscientemente
compartilhado por eles, como eram arraigados entre os gentios os
preconceitos contrrios aos judeus. A histria da relao entre os
judeus e os governos rica de exemplos da rapidez com
30. que os banqueiros judeus transferiam a sua lealdade de um
governo para outro, mesmo aps mudanas revolucionrias. Os Rothschild
franceses no levaram mais que 24 horas para transferir, em 1848,
seus servios de Lus Filipe nova e passageira Repblica Francesa e,
depois, para Napoleo iii . O mesmo processo se repetiu na Frana, a
um ritmo mais lento, aps a queda do Segundo Imprio e o
estabelecimento da Terceira Repblica. Na Alemanha, essa mudana
sbita e fcil foi simbolizada, depois da revoluo [republicana] de
1918, pela poltica nanceira da famlia banqueira dos Warburg, de um
lado, e pelas volveis ambies polticas de Walter Rathenau, de
outro.16 Esse tipo de conduta envolve mais do que o simples padro
burgus, que aceita como premissa nada ser to bem-sucedido como o
sucesso.17 Se os judeus tivessem sido burgueses no sentido lato do
termo, poderiam ter avaliado com exatido as extraordinrias
possibilidades de poder decorrentes de suas novas funes, e ter pelo
menos tentado representar com vista a manter a iluso do sucesso
aquele papel ctcio de um poder mundial secreto que faz e desfaz
governos, e que os antissemitas, de qualquer modo, lhes atribuam.
Nada, porm, estava mais longe da verdade. Os judeus, sem conhecer o
poder ou se interessar por ele, nunca pensaram em exercer seno
suaves presses para ns subalternos de autodefesa. Essa falta de
ambio foi mais tarde profundamente ressentida pelos lhos mais
assimilados dos banqueiros e negociantes judeus. Enquanto alguns
deles sonhavam, como Disraeli, com alguma sociedade secreta
judaica, qual poderiam pertencer, mas que nunca existiu, outros,
como Rathenau, que eram melhor informados, entregavam-se a tiradas
meio antissemitas contra os mercadores ricos que no tinham poder
nem posio social. Essa inocncia nunca foi bem entendida por
estadistas ou historiadores no judeus. Por outro lado, o
desligamento dos judeus do poder era aceito com tanta naturalidade
pelos representantes ou escritores judeus que eles quase nunca o
mencionavam, a no ser para exprimir sua surpresa ante as absurdas
suspeitas levantadas contra eles. Nas memrias dos estadistas do
sculo xix encontram-se frequentes observaes que pressupem a
dependncia da ecloso de guerras da vontade de um Rothschild de
Londres, Paris ou Viena. Mesmo um historiador sbrio e digno de f
como J. A. Hobson podia dizer, ainda em 1905: Algum supe seriamente
que qualquer Estado europeu pode fazer guerra, ou subscrever um
grande emprstimo estatal, se a Casa dos Rothschild e suas conexes
se opuserem?.18 O prprio Metternich mantinha rme convico de que os
Rothschild desempenhavam na Frana papel superior ao de qualquer
governo estrangeiro, tendo afirmado aos Rothschild vienenses, pouco
antes da Revoluo de 1848: Se eu desaparecer, vossa casa desaparecer
comigo. A verdade que os Rothschild tinham tanta noo poltica quanto
qualquer outro banqueiro judeu e, como seus correligionrios, jamais
se aliavam a um governo espec co, e sim a governos, autoridade em
si. Se naquela poca mostravam preferncia de nida pelos governos
monrquicos em detrimento das repblicas, foi por suspeitarem, e com
razo, que as repblicas se baseavam grandemente no desejo do povo,
do qual eles instintivamente desconfiavam.
31. Quo profunda era a f que os judeus tinham no Estado, e quo
fantstica era a sua ignorncia das verdadeiras condies da Europa,
foi revelado nos ltimos anos da Repblica de Weimar na vspera da
tomada de poder por Hitler quando, j razoavelmente apavorados com
relao ao futuro, os judeus procuraram uma vez engajar-se na
poltica. Com o auxlio de alguns no judeus, fundaram um partido de
classe mdia que denominaram Partido do Estado (Staatspartei), j a
sua denominao sendo contraditria. Estavam to ingenuamente
convencidos de que seu partido, que supostamente os representava na
luta poltica e social, se confundisse com o prprio Estado que lhes
escapou at a anlise da relao entre um partido e o Estado. Se algum
levasse a srio esse partido de cavalheiros respeitveis e perplexos,
teria concludo que a lealdade a qualquer preo encobria foras que
tramavam apoderar-se do Estado. Do mesmo modo como os judeus
ignoravam completamente a tenso crescente entre o Estado e a
sociedade, foram tambm os ltimos a perceber as circunstncias que os
arrastavam para o centro do con ito. Nunca, portanto, souberam
avaliar o antissemitismo, nunca chegaram a reconhecer o momento em
que a discriminao se transformava em argumento poltico. Durante
mais de cem anos o antissemitismo havia, lenta e gradualmente,
penetrado em quase todas as camadas sociais em quase todos os pases
europeus, at emergir como a nica questo que podia unir a opinio
pblica. Foi simples como ocorreu esse processo: cada classe social
que entrava em con ito com o Estado virava antissemita, porque o
nico grupo que parecia representar o Estado, identi cando-se com
ele servilmente, eram os judeus. E a nica classe que demonstrou ser
quase imune propaganda antissemita foram os trabalhadores que,
absorvidos pela luta de classes e equipados com a explicao marxista
da histria, nunca entravam em con ito direto com o Estado, mas s
com outra classe social, a burguesia, que os judeus certamente no
representavam e da qual nunca haviam sido parte importante. A
emancipao poltica dos judeus no m do sculo xviii em alguns pases e
a discusso do problema no resto da Europa central e ocidental
causaram a mudana da atitude dos judeus em relao ao Estado, a qual
foi, de certa forma, simbolizada pela ascenso da casa dos
Rothschild. A nova poltica desses judeus da corte, que foram os
primeiros a se tornar banqueiros estatais, veio luz quando,
insatisfeitos em servir a um prncipe ou a um governo, decidiram
internacionalizar seus servios, pondo-os simultaneamente disposio
dos governos da Alemanha, da Frana, da Gr-Bretanha, da Itlia e da
ustria. At certo ponto, essa orientao sem precedentes resultou da
reao dos Rothschild aos perigos da verdadeira emancipao, que,
juntamente com a igualdade, ameaava nacionalizar os judeus dos
respectivos pases e destruir assim as prprias vantagens
intereuropeias sobre as quais havia repousado a posio dos
banqueiros judeus. O velho Meyer Amschel Rothschild, fundador da
casa, deve ter reconhecido que a condio intereuropeia dos judeus j
no estava segura, e que era melhor que ele tentasse consolidar essa
singular posio internacional no mbito de sua famlia. O
estabelecimento de seus cinco lhos nas cinco capitais nanceiras da
Europa
32. Frankfurt, Paris, Londres, Npoles e Viena foi a engenhosa
resposta que encontrou para a soluo do embaraoso problema da
emancipao dos judeus.19 Os Rothschild haviam iniciado sua
espetacular carreira a servio nanceiro do prncipe de Hessen.
Importante nancista, nanciador e agiota, o prncipe ensinou aos
Rothschild a prtica comercial e introduziu-os a muitos dos seus
clientes. A vantagem de Rothschild era ter residido em Frankfurt, o
nico grande centro urbano alemo do qual os judeus nunca haviam sido
expulsos e onde, no comeo do sculo xix, constituam quase 10% da
populao. Os Rothschild iniciaram-se como judeus da corte sem estar
sob a jurisdio de nenhum prncipe ou municipalidade, submetidos
autoridade direta do imperador distante, em Viena. Aliavam assim as
vantagens do status judaico da Idade Mdia com as do seu prprio
tempo, e dependiam muito menos da nobreza ou das autoridades locais
que qualquer outro judeu da corte. As atividades posteriores da
casa, a enorme fortuna que reuniram e sua fama to simblica so su
cientemente conhecidas.20 Ingressaram no mundo dos grandes negcios
durante os ltimos anos das guerras napolenicas, quando de 1811 a
1816 quase metade das subvenes inglesas s potncias do Continente
europeu passaram por suas mos. Quando, aps a derrota de Napoleo, a
Europa inteira precisava de elevados emprstimos para reorganizar
suas mquinas estatais e reconstruir estruturas nanceiras, os
Rothschild detinham quase o monoplio da gesto dos emprstimos
estatais. Isso durou trs geraes, durante as quais conseguiram
derrotar todos os concorrentes judeus e no judeus. A Casa dos
Rothschild tornou-se, como disse Cape gue, o tesoureiro principal
da Santa Aliana.21 O estabelecimento internacional da Casa
Rothschild e a sua hegemonia alcanada com relao aos demais
banqueiros judeus mudaram a estrutura dos negcios estatais
judaicos. Desapareceu a evoluo acidental, desorganizada e sem
plano, quando indivduos judeus, su cientemente astutos para se
aproveitarem de uma oportunidade, frequentemente galgavam posies de
incomensurvel riqueza, para cair em profunda misria na gerao
seguinte. Alis, isso no afetava os destinos do povo judeu como um
todo, exceto quando esses banqueiros agiam como protetores de
alguma comunidade. Mas, no importa quo numerosos fossem os ricos
agiotas judeus ou quo in uentes fossem os judeus da corte, o fato
que no existia um grupo judeu de nido que gozasse coletivamente de
privilgios espec cos e prestasse servios espec cos. Foi
precisamente o monoplio dos Rothschild na emisso de emprstimos
governamentais que tornou possvel e at necessria a utilizao do
capital judaico, canalizando uma elevada porcentagem das fortunas
judaicas para os negcios dos Estados, o que gerou a base de uma
renovada coeso intereuropeia dos judeus da Europa central e
ocidental. O que nos sculos xvii e xviii foi uma ligao
desorganizada entre judeus individuais de diferentes pases
transformou-se em aproveitamento sistemtico das oportunidades
esparsas por uma nica rma, sicamente presente em todas as
importantes capitais europeias, e em constante contato com todas as
camadas do povo judeu, detentora da rede das informaes teis e capaz
de dar formas organizadas a oportunidades decorrentes do
sistema.22
33. A posio exclusiva da casa Rothschild no mundo judaico
substituiu at certo ponto os antigos laos de tradio espiritual e
religiosa, cuja gradual dissoluo, provocada pelo impacto da cultura
ocidental, pela primeira vez ameaava a prpria existncia do povo
judeu. Para o mundo exterior, essa famlia tornou-se tambm o smbolo
da realidade prtica do internacionalismo judaico num mundo de
Estados-naes e povos organizados politicamente em bases nacionais.
Onde poderiam os antissemitas encontrar melhor prova do fantstico
conceito de um governo mundial judaico do que nessa famlia? Unida,
embora ativa em cinco pases diferentes, proeminente em toda parte,
em ntima cooperao com governos distintos, cujos frequentes con itos
jamais abalavam a solidariedade de interesses existente entre seus
banqueiros estatais, constituiu-se no smbolo que nenhuma propaganda
poderia ter criado para ns polticos de modo mais eficaz. A noo
popular de que os judeus eram unidos por laos supostamente mais
estreitos de sangue e de famlia que os outros povos era at certo
ponto estimulada pelo que ocorria nessa famlia, smbolo vivo e
atuante da importncia econmica e poltica que emanava da viso
popular do povo judeu. A consequncia fatal foi simples: quando, por
motivos que nada tinham a ver com a questo judaica, os problemas
raciais ocuparam o centro do cenrio poltico, os judeus
imediatamente foram ajustados como alvo pelas ideologias e
doutrinas que de niam grupos humanos por laos de sangue e por
caractersticas genticas familiares. Contudo, outro fato, menos
acidental, explica essa imagem do judeu