Hanna Arendt 273-298

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    traduodePa

    uloEduardoBodziakJr.*

    eAdrianoCorreia

    A grande tradio1

    Hannah Arendt

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    *

    A grande tradio1

    Paulo Eduardo Bodziak Jnior mestrando em filosofia na Universidade Estadual de Campinas.Adriano Correia professor na Universidade Federal de Gois e pesquisador do CNPQ, nvel 2.

    O presente texto, de 1953, foi editado por Jerome Kohn e Jessica Reifer a partir do material de-nominado por J. Kohn de Marx manuscripts. Trata-se do imenso volume de escritos resultantesdas pesquisas de Arendt no perodo intermedirio entre As origens do totalitarismo (1951) e Acondio humana (1958). O nome de Karl Marx mal mencionado aqui, mas ainda assim notvelo quanto a considerao por Arendt dos temas constantes no presente escrito foi desencadeadapor sua investigao da relao de Marx com o totalitarismo, iniciada pouco aps a publicaodeAs origens do totalitarismo e conduzida ao longo dos anos 1950 em um extenso percurso nombito da tradio do pensamento poltico ocidental a qual, para Arendt, tem incio definido nasubstituio platnica da ao pela sabedoria filosfica e fim no menos definido na transformaomarxiana da filosofia em ao. Se podemos identificar no exame de Marx e da tradio o pano defundo mais notvel do presente escrito, cabe notar que aqui o principal interlocutor de Arendt seguramente Montesquieu, em cuja obra ela encontrou algum amparo para pensar o totalitarismocomo uma forma de governo inteiramente nova e com estatuto prprio. Ainda que os textos con-cebidos por Arendt nesse perodo tenham sua prpria razo de ser, notvel o quanto articulamas preocupaes de Arendt nas duas grandes obras acima mencionadas.

    H conceitos com grande peso terico para os leitores de Arendt, fazendo referncia especifica-mente aos conceitos depodere liberdade, que aparecem neste texto sem os pressupostos tericostradicionalmente conhecidos. A opo foi pela traduo literal a fim de manter a fidelidade aotexto e expressar a prpria indefinio terica da autora em algumas passagens que seriam apro-fundadas apenas em obras posteriores ao ensaio aqui publicado. Talvez caiba notar ainda que

    Arendt, mesmo j fazendo a distino entre labore work em textos do mesmo perodo, e tambmentre laboring efabricating na segunda parte do presente texto, acaba por empregar o termo workem seu uso na linguagem ordinria, no sentido do conjunto das atividades para as quais o cio re-presenta uma cessao. Indicamos entre colchetes as ocorrncias de labor, empregado no sentidoconceitual especfico a Arendt, e de work, em seu uso comum ambos traduzidos por trabalho.Solitude, traduzido aqui pelo correlato solitude, poderia ser igualmente bem traduzido por estar-s. Traduzimos loneliness por desamparo, consoante ao emprego conceitual do termo por Arendtem alemo: Verlassenheit. Ademais, a necessidade de distinguir conceitualmente entre loneliness,solitaryness, isolation e solitude impe dificuldades. As referncias completas das duas partes edi-tadas do texto so as seguintes: Arendt, Hannah. Law and power. Social Research, vol. 74, n 3,Fall 2007, p. 713-726; Arendt, Hannah. Ruling and being ruled. Social Research, vol. 74, n 4,

    Winter 2007, p. 941-954. (Nota dos tradutores).

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    Lei e Poder

    Desde Plato, todas as definies tradicionais das naturezas dos vrios tipos degoverno tm repousado sobre dois pilares conceituais: lei e poder. As diferen-as entre as vrias formas de governo dependiam da distribuio do poder, dese um nico homem, os mais distintos cidados ou o povo possua o poder degovernar. A natureza de cada uma dessas formas de governo era julgada boaou ruim de acordo com o papel desempenhado pela lei no exerccio do poder:o governo legal [lawful] era bom e o governo ilegal [lawless] ruim. Contudo,o critrio da lei como um padro de medida para o governo bom ou ruim foi

    muito cedo substitudo, j na filosofia poltica de Aristteles, pela noo, com-pletamente diferente, de interesse, com o resultado de que o governo ruim setornou o emprego do poder no interesse dos governantes, e o bom governo oemprego do poder no interesse dos governados. Os tipos de governo, enume-rados de acordo com o princpio de poder, no mudavam, em todo caso: haviasempre as trs formas bsicas da monarquia, da aristocracia e da democracia eas trs bsicas perverses correspondentes da tirania, da oligarquia e da oclo-cracia (governo da ral). Ainda o pensamento poltico moderno est sujeito a

    enfatizar demasiadamente e interpretar erroneamente a concepo aristotlicade interesse: dzn kai eudzn ainda no a regra [rule] que comanda o rei(como o cardeal Rohan o formulou mais tarde), mas designa as preocupaesdos ricos e dos pobres com as quais as leis devem lidar de acordo com o prin-cpio de suum cuique. O governo no interesse de todos, portanto, no muitomais que uma interpretao particular do governo de acordo com leis justas.

    Uma curiosa equivocidade acerca da relao entre lei e poder tem per-manecido oculta nestes clichs bem conhecidos. Quase todos os tericos po-lticos usam, sem mencionar, dois smiles completamente diferentes a esse

    respeito. Por um lado, aprendemos que o poder aplica a lei para efetivar alegalidade; por outro, a lei concebida como a limitao e a fronteira dopoder, as quais nunca devem ser ultrapassadas. No primeiro caso, o poderpoderia ser compreendido como um mal necessrio, enquanto no segundoeste papel caberia muito mais funo da lei, que parece dever sua existncia necessidade de restringir uma fora livre e boa, sob circunstncias outras.Seguindo a categoria tradicional de meios e fins, o poder se mostra, em umaprimeira instncia, como um instrumento para executar a lei, e, em uma se-gunda instncia, a lei aparece como um instrumento para manter o poder sob

    controle. Uma consequncia desta compreenso equvoca da relao entre leie poder parece bvia, primeira vista. Se o poder est l apenas para aplicare executar a lei, no pode fazer muita diferena se tal poder reside em um

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    nico homem, em poucas pessoas ou em todas elas. Pode haver apenas uma

    diferena essencial: aquela entre governo legal, ou constitucional, e governoilegal, ou tirnico.

    O termo tirania, portanto, de Plato em diante, era usado no apenas paraa perverso do governo de um nico homem, mas tambm indiscriminada-mente para qualquer governo ilegal, isto , qualquer governo que nas suasdecises era limitado apenas por sua vontade e seus desejos mesmo se estesfossem a vontade e os desejos da maioria , e no tambm por leis que nopodiam estar sujeitas a decises polticas. Encontramos a ltima consequn-cia desta linha de pensamento no Zum Ewigen Frieden de Kant, no qual eleconclui que em vez de se distinguir muitas formas de governo, poder-se-iadizer que h apenas duas, a saber: governo legal ou constitucional, inde-pendentemente de quem ou de quantos possuem o poder, e dominao oudespotismo. Todas as formas tradicionais de governo so, para Kant, formasde dominao. Elas so despticas porque so diferenciadas de acordo com oprincpio de poder, e nelas qualquer um que possua o poder o possui comoum soberano, no dividido entre outros e no controlado por outros. Con-tra a monarquia, a aristocracia e a democracia, Kant coloca o governo cons-

    titucional, no qual o governo sempre controlado por outros e o qual eledenomina republicano, independentemente de qualquer outro critrio.Mas se tornamos ao segundo smile na relao entre lei e poder, de acordo

    com o qual a lei vista como uma cerca ou um muro rodeando homens pode-rosos que sem esta limitao poderiam abusar da sua fora , as diferenasentre as formas tradicionais de governo, entre monarquias, aristocracias edemocracias, tornam-se muito importantes. A questo agora se um nicohomem, os poucos mais distintos ou o conjunto do povo deveriam ser auto-rizados a exercer o poder nos limites da lei. Neste contexto, bvio porque

    o governo de um homem deveria ser identificado com a tirania ou, em todocaso, ser o mais prximo tirania, e porque a democracia deveria ser conside-rada a melhor forma de governo. A monarquia agora vem a significar que ape-nas um homem livre, a aristocracia que a liberdade garantida apenas paraos melhores e apenas a democracia deve ser considerada um governo livre.Encontramos a ltima consequncia desta linha de pensamento na filosofiada histria de Hegel, na qual a histria do mundo dividida em trs eras: odespotismo oriental, em que apenas um era livre; o antigo mundo grego eromano, no qual apenas alguns eram livres; e, finalmente, o Ocidente cristo,

    no qual todos so livres, pois o homem enquanto tal livre. O aspecto maisimpressionante dessa equivocidade sempre recorrente nos conceitos de lei e

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    de poder que ns no tratamos aqui simplesmente de dois fios diferentes da

    nossa tradio, mas que, pelo contrrio, quase todos os grandes pensadorespolticos usam ambos smiles indiscriminadamente.

    Enumerei as formas de governo do modo como eram formuladas e de-finidas na tradio, cuja fundao foi estabelecida no devido curiosidadehistrica sobre os vrios modos de vida de diferentes povos, mas por causa dabusca de Plato pela melhor forma de governo, uma busca que surgiu de suaatitude negativa com relao cidade-Estado ateniense e sempre a implicou.Desde ento, a busca pelo melhor governo tem servido para conceitualizar etransformar todas aquelas experincias polticas que encontraram sua casa natradio do pensamento poltico, a qual talvez em nenhum outro lugar mos-tre sua abrangncia de modo mais impressionante que no espantoso fato deque nenhuma nova forma de governo foi adicionada durante 2.500 anos. ARepblica Romana, o Imprio Romano, o reinado medieval e a emergncia doEstado-nao no foram percebidos como razo suficiente para uma revisoou uma adio no que j era familiar a Plato. De modo bastante surpreen-dente, em vista de suas enormes consequncias, a distino entre governar eser governado como uma condio para toda sociedade organizada foi intro-

    duzida por Plato de um modo repentino e quase improvisado, enquanto oconceito de lei assume seu lugar central como contedo genuno de toda vidapoltica apenas em seu ltimo tratado, as Nomoi (As leis) o qual, a propsito,foi perdido e redescoberto apenas no sculo XV , e a as leis so entendidascomo sendo o visvel, traduo poltica das ideias da Repblica.

    No obstante, se na busca pelo melhor governo a questo das leis desem-penhou um papel subalterno, seu papel foi sempre maior na definio da ti-rania como a pior forma de governo. A razo para esta constelao inicialrepousa na experincia poltica especfica da plis, a qual tanto Plato quanto

    Aristteles podiam apenas tomar como certa. A experincia poltica grega pr-filosfica compreendeu as leis como as fronteiras que os homens estabelecementre si ou entre uma cidade e outra. Elas cercavam o espao vital que cadaum tinha o direito de chamar de seu e eram sagradas, enquanto estabilizado-ras da condio humana, dos cambiantes movimentos, circunstncias e aesdos homens. As leis conferiam estabilidade a uma comunidade composta demortais e, portanto, continuamente ameaada em sua continuidade por no-vos homens nascidos nela. A estabilidade das leis corresponde ao constantemovimento de todos os assuntos humanos, um movimento que nunca pode

    parar enquanto os homens nascem e morrem. Cada nascimento novo ameaaa continuidade da plis, pois com cada novo nascimento um novo mundo

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    potencialmente vem a existir. As leis cercam estes novos incios e garantem a

    preexistncia de um mundo comum, a permanncia de uma continuidade quetranscende o tempo de vida individual de cada gerao, no qual cada homemsingular, em sua mortalidade, pode esperar deixar um trao de permannciaatrs de si. Neste sentido, que se firmou com a ascenso daplis grega, as leisconstituem o mundo pblico comum fora do qual, de acordo com os gregos, avida humana era privada de suas preocupaes mais essenciais.

    A grande vantagem da organizao da vida pblica em uma plis era queesta, devido fora estabilizadora de seu muro de leis, poderia conferir aosassuntos humanos uma solidez que a prpria ao humana, na sua intrnsecafutilidade e dependncia do louvor imortalizador dos poetas, nunca podepossuir. Por cercar-se de um muro permanente de leis, aplis como uma uni-dade podia pretender assegurar que tudo o que ocorresse ou fosse feito emseu interior no pereceria junto com a vida do agente ou do paciente de umaao, mas viveria na memria das geraes futuras. Seu grande mrito sobreo reinado, a razo pela qual, mitologicamente falando, os gregos viram nafundao de Atenas pelo rei Teseu a ltima e mxima realizao real foi dadacndida e sucintamente por Pricles, que glorificou Atenas porque ela no

    precisava de um Homero para deixar, para o melhor ou o pior, inumerveismonumentos dos feitos de seus filhos.Esse sentido inicial de nomos ainda est presente em Plato quando ele

    evoca Zeus como um deus das fronteiras no incio do seu discurso emAs leis,como estava presente em Herclito, quando ele declarou que um povo develutar por suas leis como luta pelo muro (teichos) de sua cidade. Assim comouma cidade s poderia vir a existir fisicamente aps seus habitantes edifica-rem um muro em torno dela, a vida poltica dos cidados,politeuesthai, s po-dia ter incio apsa lei ter sido concebida e estabelecida. A proteo da lei era

    necessria para a cidade-Estado porque apenas ali pessoas viviam juntas demodo tal que o espao mesmo no era mais garantia suficiente para assegurara cada uma delas sua liberdade de movimento. A concepo de leis era a talponto percebida como uma condio da vida naplis que o legislar, a prpriafeitura das leis, no era considerado uma atividade poltica: o legislador pode-ria ser um homem chamado de fora da cidade ou, como Slon, algum que,depois de estabelecidas as leis, se retirava da vida pblico-poltica, ao menospor um tempo. A lei era a tal ponto pensada como algo para ser erigido e esta-belecido por homens sem qualquer autoridade ou fonte transcendentes, que

    a filosofia pr-socrtica, quando props distinguir todas as coisas indagandose deviam sua origem aos homens ou se eram o que eram por si prprias, in-

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    troduziu os termos nom ephysei:por lei ou por natureza. Portanto, a ordem

    do universo, o kosmos das coisas naturais, era diferenciada do mundo dosassuntos humanos, cuja ordem estabelecida pelos homens, uma vez que uma ordem de coisas produzidas e realizadas por eles. Esta distino aindapersiste no incio da nossa tradio, quando Aristteles expressamente afirmaque a cincia poltica lida com coisas que so nom e nophysei. neste con-texto que o tirano que demole as fronteiras das leis destri o domnio polticocompletamente. Ele no um governante, mas um destruidor a demolir osmuros da cidade, que so a condio pr-poltica de sua existncia.

    Muito cedo, porm, mesmo antes do incio da nossa tradio, j havia ou-tra compreenso de lei completamente diferente. Quando Pndaro diz nombasileus pantn,podemos estar justificados ao traduzir suas palavras por a lei a governante de todas as coisas, e tambm ao compreender isso no sentidode que assim como um rei mantm unido e confere ordem a qualquer coisainiciada sob sua liderana, do mesmo modo a lei uma ordem inerente aouniverso e governa seu movimento. Esta lei no estabelecida nem concebidapor homens ou deuses; se chamada divina porque governa inclusive osdeuses. Essa lei, obviamente, no poderia ser concebida como um muro ou

    uma fronteira erigida pelo homem. Leis derivadas ou sustentadas por issotinham uma validade no restrita a uma comunidade nem ao domnio p-blico enquanto tal, nem em geral a assuntos que ocorriam entre os homens,enquanto distintos daqueles que aconteciam com os homens. A lei csmicaera universal em cada aspecto, aplicvel a todas as coisas e a cada homem,em cada situao e condio de vida. Esta distino entre physei e nmo, en-tre coisas que vm a ser naturalmente e coisas que devem sua existncia aoshomens, perde sua relevncia, porque uma lei preside e governa a ambas. Oconceito posterior de lei natural, como foi desenvolvido no estoicismo grego,

    est j claramente indicado, mas para uma compreenso que via as leis ima-gem de cercas ou fronteiras que rodeiam, protegem e estabelecem os vriosmundos comuns daplis o prprio termo lei natural teria sido uma contra-dio em termos, visto que assumia que as coisas so o que so pela naturezaou pela lei, mas no por ambas.

    De importncia ainda maior para a tradio o fato de que sob a supo-sio de que uma lei governa todas as coisas morais e polticas, os domniosprivado e pblico da vida j no so claramente distintos, mas esto ambosincrustados na ordem eterna do universo e so governados por ela. Os ho-

    mens pertencem a este universo, pois, nas palavras de Kant, o cu estreladoacima de mim corresponde, em sua sublimidade legalmente ordenada, lei

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    moral contida em mim. Esta lei tem perdido o carter de limitao, mani-

    festo em todos os cdigos legais positivos que contm mais proibies queprescries, e que, portanto, deixam tudo o que no est claramente proibidopara a deciso livre daqueles que a eles esto sujeitos. O conflito entre mora-lidade pblica e privada, entre coisas permitidas e demandadas no intercursopessoal e aquelas que so requeridas pelas necessidades da poltica, que na-turalmente resulta da suposio de uma lei universal, poderia ser decidido deoutro modo: em conformidade com as necessidades da vida poltica, custada moralidade privada como, por exemplo, em Hobbes que, iniciando dodomnio pblico-poltico onde o poder originado, conclui que a naturezado homem aquela de um animal com sede de poder ou, pelo contrrio,em conformidade com o comportamento de cada homem em sua privacidadeindividual, como no exemplo de Kant, em que a lei contida em mim me eleva condio de legislador universal. Em todo caso, a universalidade de uma leiest salva: aqueles que obedecem e se submetem docilmente s leis do poderso por natureza sedentos de poder;aqueles que obedecem as leis da cidadereconhecem em si mesmos a natureza da legalidade moral.

    Todavia, por toda a nossa tradio a distino entre a lei csmica, em sua

    validade universal, e as regras e prescries vlidas apenas entre um grupo dehomens claramente definido foi mantida e a relao entre elas vista aproxima-damente luz da imagem que encontramos pela primeira vez em Herclito:Pois todas as leis humanas so alimentadas por uma s lei divina, j que estadomina o quanto quer, suficiente para todos e prevalece em tudo (Frag.114). decisivo que a nossa tradio legal sempre tenha sustentado que oscdigos legais positivos, feitos pelo homem, eram no apenas derivados, mastambm dependiam de uma lei universalmente vlida como sua fonte ltimade autoridade. essa mesma distino e essa mesma relao que encontra-

    mos mais tarde entre o ius civile e o ius naturale, entre lei positiva e lei naturalou comando divino. Em cada exemplo, a noo inicial de lei como uma cercasobrevive nos cdigos de lei positivados, mediante os quais a lei universal traduzida em padres humanos de certo e errado.

    A lei universal, ou posteriormente o Mandamento de Deus, entendidacomo eterna e imvel, e dessa eternidade as leis positivas feitas pelo ho-mem derivam sua relativa permanncia, mediante a qual podem estabilizaros assuntos humanos em constante mutao. Vimos nas formas totalitriasde dominao o que acontece quando esta distino entre lei universal e lei

    positiva j no preservada isto , quando a lei universal, na forma mo-derna de uma lei do desenvolvimento, natural ou histrico, torna-se a lei do

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    movimento, que no pode seno sobrepujar constantemente os cdigos de

    regras e prescries positivas feitas pelo homem.Tal terror, enquanto execuo diria de uma lei universal do movimen-

    to sempre em mudana, torna impossvel toda lei positiva, em sua relativapermanncia, e conduz a comunidade como um todo a um dilvio de ca-tstrofes. Esse perigo permanece latente onde quer que o velho conceito deuma lei universal esteja privado de sua eternidade e, pelo contrrio, estejacombinado com o moderno conceito de desenvolvimento enquanto contnuoprogresso dos movimentos da natureza ou da histria. Se se considera esseprocesso do ponto de vista da histria das ideias, pode-se facilmente, emborafalaciosamente, chegar concluso de que o domnio totalitrio no tantouma ruptura com todas as tradies do homem ocidental, mas antes o frutode uma heresia filosfica que culminou em Hegel e foi aplicada pratica-mente por Darwin e Marx, a quem Engels denominou o Darwin da histria.

    A ideia de uma lei universal permaneceu mais ou menos uma preocupa-o dos filsofos enquanto juristas, e ainda que concordassem acerca da ne-cessidade de uma autoridade ltima (e mesmo transcendente) para conferirlegitimidade s leis, continuaram a pensar as leis como fronteiras e relaes

    entre as pessoas. Essa diferena muito marcada na origem dupla da leinatural, que tambm, e independentemente, se desenvolveu do ius gentiumromano, uma lei erigida entre diferentes povos cujas cidades prescreviam di-ferentes leis civis. Aqui a lei natural no compreendida nem como originadae atuante no interior de cada ser humano nem a presidir de cima e a governarsuprema todos os acontecimentos no universo, mas como os necessrios ca-nais especficos de comunicao e relacionamento entre cidade e cidade, en-tre um cdigo legal e outro a menos que uma cidade queira, ao estilo grego,viver isolada de outra cidade ou destru-la. A influncia romana permanece

    forte na tradio estritamente jurdica; na tradio filosfica do pensamentopoltico permaneceu to imperceptvel quanto outras experincias romanas.

    Os padres de certo e errado, como so estabelecidos na lei positiva tm,por assim dizer, dois aspectos: so absolutos na medida em que devem suaexistncia a uma lei universalmente vlida, alm do poder e da competncia dohomem; mas tambm so meras convenes, relativas a um povo e vlidas den-tro de limitaes, na medida em que foram concebidas e moldadas pelo homem.Sem um, a lei universalmente vlida permaneceria sem realidade no mundo doshomens; sem o outro, as leis e regulaes estabelecidas pelos homens carece-

    riam de sua fonte ltima de autoridade e legitimao. Por causa desta relao edo seu duplo aspecto, a legalidade especfica do governo, que historicamente

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    caracterstica apenas para a plis e para as vrias formas republicanas que so

    derivadas dela, poderia se tornar, na estrutura da tradio, o suporte princi-pal de todos os corpos polticos. A aplicao da lei finalmente vista como aobrigao mais importante do governo, e o governo legal considerado bomindependentemente de se muitas ou poucas pessoas compartilham e desfrutamda posse do poder. Ao final desta tradio encontramos a filosofia poltica deKant, na qual o conceito de lei absorveu todos os outros. Aqui a lei se tornou ocritrio para todo o domnio poltico, em detrimento de todas as outras expe-rincias e possibilidades polticas. A legalidade o nico contedo legtimo daconvivncia humana e toda atividade poltica , em ltima instncia, delineadacomo atividade legislativa ou aplicao de prescries legais.

    Esboamos esse desenvolvimento muito tardio a fim de chegar, como emum curto-circuito, a uma posio onde governo e lei coincidem de fato; ondeo governo constitucional j no uma dentre vrias possibilidades de go-vernar e de agir dentro da estrutura da lei, mas um governo no qual as leismesmas governam e o governante apenas administra e obedece s leis. Essa a concluso lgica do ltimo estgio do pensamento poltico de Plato, comoo conhecemos das Nomoi (Leis).

    Essas consideraes pareciam necessrias para uma compreenso do ltimopensador que, ainda na linha da grande tradio, indagou acerca da naturezada poltica e fez as velhas questes sobre as diferentes formas de governo. Mon-tesquieu, cuja fama se sustenta seguramente na descoberta dos trs ramos dogoverno, o legislativo, o executivo e o judicirio isto , na grande descobertade que o poder no indivisvel , era um escritor poltico muito mais queum pensador sistemtico. Isso o habilitou a considerar livremente e reformu-lar quase involuntariamente os grandes problemas do pensamento poltico, talcomo tinham chegado a ele, sem comprometer suas novas intuies [insights]

    mediante a realizao de um trabalho completo com eles, e sem desarranjar aconsistncia inerente de seu pensamento pela motivao de posterior apresen-tao. Suas intuies so substancialmente muito mais revolucionrias e aomesmo tempo mais duradouramente positivas que aquelas de Rousseau, que seu nico equivalente no peso do puro impacto imediato sobre as revoluesdo sculo XVIII e da influncia intelectual sobre a filosofia poltica do sculoXIX. Sua falta de preocupao sistemtica, por outro lado, e a frouxa organi-zao do seu material, tm tornado lamentavelmente fcil negligenciar tanto aconsistncia inerente de seus pensamentos largamente dispersos quanto a no-

    tvel unidade de sua abordagem de todas as matrias polticas, que o separamtenuemente menos de seus sucessores que dos seus predecessores.

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    Oculta sob a descoberta dos trs ramos do governo (que apenas Kant

    compreendeu corretamente como o critrio decisivo de um governo verda-deiramente republicano e que apenas na constituio da repblica estadu-nidense encontrou uma realizao adequada), repousa uma viso de vidapoltica na qual o poder est completamente separado de toda conotao deviolncia. Apenas Montesquieu tinha um conceito de poder que se encontra-va absolutamente fora da categoria tradicional de meios e fins. Os trs ramosdo governo representam para ele as trs principais atividades polticas dohomem: a criao de leis, a execuo de decises e a sentena judicial quedeve acompanhar ambas. Cada uma dessas atividades engendra seu prpriopoder. O poder pode ser dividido entre os ramos do governo assim comoentre estados federados e entre os governos estaduais e o federal porqueno um instrumento para ser aplicado a um objetivo. Suas origens repousamnas capacidades mltiplas dos homens para a ao; essas aes no tm fimenquanto o corpo poltico est vivo; seus propsitos imediatos so prescritospelas circunstncias das vidas humana e poltica em constante mudana, asquais, por si mesmas, e porque ocorrem dentro de comunidades definidase civilizaes estabelecidas, constituem o domnio dos assuntos pblicos a

    surgir entre cidados enquanto indivduos, unindo ou separando esses pro-psitos como interesses compartilhados ou conflitantes. Os interesses, nes-te contexto, no tm conotao de ganncia ou necessidades materiais, masconstituem muito literalmente o inter-esse, aquilo que est entre os homens.Esse espao-entre [in-between], comum a todos e, portanto, concernente acada um, o espao no qual a vida poltica ocorre.

    A descoberta de Montesquieu, tanto da natureza divisvel do poder quan-to dos trs ramos do governo, emergiu de sua preocupao com o fenmenoda ao como a condio central de todo o domnio da poltica. Suas prprias

    indagaes o levaram a fazer a distino entre a natureza do governo, ce qui lefait tre tel, e seu princpio, ce qui le fait agir (LEsprit des lois, Livro III, Cap.1). Ele define a natureza do governo em termos levemente modificados: negli-gencia a forma da aristocracia e afirma que a repblica o governo constitu-cional com poder soberano nas mos do povo, a monarquia um governo legalcom o poder soberano nas mos de um homem e a tirania um governo semlei no qual o poder manejado por um homem de acordo com sua vontadearbitrria. Sua descoberta mais profunda a intuio de que essas estruturasparticulares precisam cada uma de um princpio para coloc-las em movi-

    mento ou, em outras palavras, que estas estruturas por si mesmas so mortase no correspondem s realidades da vida poltica e s experincias dos ho-

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    mens de ao. Como um princpio de movimento, Montesquieu introduziu a

    histria e o processo histrico em estruturas que devendo sua existncia aopensamento grego haviam sido concebidas originalmente como imutveis.Ou melhor, antes de Montesquieu, a nica possibilidade de mudana haviasido pensada como mudana para pior, a mudana da perverso que poderiatransformar uma aristocracia em uma oligarquia, uma democracia em umaoclocracia, ou uma monarquia em uma tirania. H naturalmente muito maispossibilidades de tais perverses; foi, por exemplo, apontado muito cedo queo governo da maioria tambm tem uma inclinao particular para terminarem tirania. Comparados ao princpio de ao de Montesquieu enquanto foramotriz da mudana, todas essas perverses so de uma natureza fsica, quaseorgnica. O famoso prognstico de Plato de que mesmo o melhor governopossvel no poderia durar para sempre, e sua avaliao da consequente runadele, devida a alguns erros inevitveis na escolha de pais apropriados parauma prole desejvel, apenas o mais plausvel exemplo de uma mentalidadeque poderia conceber a mudana apenas em termos de runa. Montesquieu,pelo contrrio, reconheceu o movimento como a verdadeira condio da his-tria, precisamente porque ele entendia que a ao o fator essencial de toda

    vida poltica. A ao no pertence meramente aos governantes, no se mostraapenas nos feitos registrados das naes e nunca exaurido no processo degovernar e ser governado: On juge mal des choses. Il y a souvent autant de po-litique employe pour obtenir un petit bnfice que pour obtenir la papaut (Dela politique, in Mlanges indites de Montesquieu, 1892). Ele reconhece coma tradio o carter permanente do bom governo fundado na legalidade; masv esta estrutura de leis apenas como a armao no interior da qual pessoas semovimentam e agem, como fator de estabilizao de algo que por si mesmoest vivo e se movendo sem se desenvolver necessariamente em uma direo

    prescrita, seja de runa, seja de progresso. Ele, portanto, fala no apenas sobrenatureza ou essncia, mas tambm sobre a estrutura do governo como aquelaque em relativa permanncia abriga as circunstncias em mudana e as aesdos homens mortais.

    Correspondendo s suas trs formas essenciais de governo, Montesquieudistingue trs princpios que fazem uma comunidade agir: a virtude emuma repblica, a honra em uma monarquia e o medo em uma tirania. Essesprincpios no consistem em motivos psicolgicos. So antes o critrio deacordo com o qual todas as aes pblicas so julgadas e que articula o con-

    junto da vida poltica. Enquanto tais, so os mesmos tanto para os governosquanto para os cidados, para governantes e sditos. Se o princpio do medo

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    inspira todas as aes em uma tirania, isso significa que o tirano age por te-

    mer seus sditos e os oprimidos por temerem o tirano. Assim como o orgulhode um sdito em uma monarquia consiste em distinguir-se e ser honrado pu-blicamente, o orgulho de um cidado em uma repblica consiste em no sermaior em assuntos pblicos que seus concidados, o qual a sua virtude.Disso no se segue que os cidados em uma repblica no saibam o que ahonra , ou que os sditos de uma monarquia no sejam virtuosos, nem quetodas as pessoas tm de se comportar todo o tempo de acordo com as regrasdo governo sob o qual calhou viverem. Isso significa apenas que a esfera davida pblica sempre determinada por certas regras que so tomadas comocertas por todos aqueles que agem, e que essas regras no so as mesmas paratodas as formas de corpos polticos. Se essas regras j no so vlidas, se osprincpios de ao perdem sua autoridade de modo que ningum mais acre-dita na virtude em uma repblica, ou na honra em uma monarquia, ou se, emuma tirania, o tirano deixa de temer seus sditos, ou os sditos j no tememseu opressor , ento cada uma das formas de governo chega ao seu fim.

    Sob as observaes assistemticas de Montesquieu, e mesmo algumas ve-zes casuais, sobre as relaes entre as naturezas dos governos e seus princ-

    pios de ao encontra-se uma intuio ainda mais profunda sobre os princ-pios de unidade nas civilizaes historicamente dadas. Seu esprit gnral o que une a estrutura de governo com seu correspondente princpio de ao.Enquanto tal, ele se tornou a ideia inspiradora das cincias histricas, assimcomo da filosofia da histria. O esprito do povo (Volksgeist) de Herder e oesprito do mundo (Weltgeist) de Hegel mostram claramente os traos dessaascendncia. A descoberta original de Montesquieu menos metafsica quequalquer uma destas ltimas, e talvez mais frutfera para as cincias polticas.Escrevendo em meados do sculo XVIII, ele ainda estava felizmente incons-

    ciente da histria do mundo, que cem anos mais tarde na filosofia deHegel e tambm na obra dos principais historiadores ter usurpado para sio ofcio do julgamento do mundo: Die Weltgeschichte ist das Weltgericht. Seuesprito unificador geral antes de tudo uma experincia bsica de homensvivendo e agindo juntos, que se expressa simultaneamente nas leis de um pase nas aes dos homens vivendo sob essa lei. A virtude, nesse sentido, estbaseada no amor igualdade e a honra est baseada no amor distino.

    As leis de uma repblica so baseadas na igualdade, e o amor igualdade afonte da qual as aes de seus cidados surgem; leis monrquicas so basea-

    das na distino, de modo que o amor s distines inspira a aes pblicasdo conjunto dos cidados.

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    Ambos, distino e igualdade, so experincias bsicas de toda vida hu-

    mana em comunidade. Podemos dizer com igual validade que os homens sodistintos e diferentes de cada outro pelo nascimento e que todos os homensnascem iguais e so distintos apenas pelo status social. A igualdade, namedida em que uma experincia poltica enquanto distinta da igualdadeperante Deus, um ser infinitamente superior ante o qual todas as distines ediferenas se tornam insignificantes , tem sempre significado que, indepen-dentemente das diferenas existentes, todos possuem igual valor, pois cadaum recebeu por natureza igual quantia de fora. A experincia fundamentalsobre a qual as leis republicanas esto fundadas e das quais as aes dos ci-dados emergem a experincia de viver em conjunto e de serem membrosde um grupo de homens igualmente poderosos. As leis em uma repblicano so, portanto, leis de distino, mas de restrio; elas so projetadas pararestringir a fora de cada cidado de modo que se deixe espao para a fora deseus concidados. A base comum da lei republicana, e da ao em seu mbito, a intuio de que a fora humana no primariamente limitada por algumpoder superior Deus ou a natureza , mas pelo poder de iguais e pela alegriaque emerge disso. A virtude, enquanto amor igualdade, surge dessa experi-

    ncia de igualdade de poder que sozinha protege os homens contra o pavordo desamparo [loneliness]. Um nico e inteiramente sozinho e sempre serassim, como o velho verso infantil ingls se atreve a indicar s mentes huma-nas aquilo que pode ser apenas a suprema tragdia de Deus.

    A distino, sobre a qual as monarquias (e toda forma hierrquica de go-verno) esto baseadas, no uma experincia poltica menos autntica e ori-ginal. Apenas por meio da distino eu posso me tornar verdadeiramente eumesmo, esse algum que um indivduo nico que nunca foi antes e nuncaser novamente. Posso estabelecer essa singularidade apenas medindo-me

    com todos os outros, de modo que meu papel nos assuntos pblicos depen-der, em ltima instncia, da medida com que sou capaz de conquistar oreconhecimento deles. A grande vantagem do governo monrquico que osindivduos, que possuem seu status social e poltico de acordo com a distin-o que conquistaram em suas respectivas esferas de vida, nunca so confron-tados com uma indistinta e indistinguvel massa de todos os outros, ante aqual o homem singular pode convocar apenas uma desesperada minoria deum. O perigo especfico dos governos baseados na igualdade que dentro daestrutura de legalidade em cuja estrutura a igualdade de poder recebe seu

    sentido, direo e restrio os poderes de iguais podem cancelar recipro-camente cada outro poder at que a exausto da impotncia torna cada um

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    pronto a aceitar um governo tirnico. Por boas razes, Montesquieu falhou

    em indicar a base comum para a estrutura da legalidade e do medo comoprincpio das aes em tiranias.

    Governar e ser governado

    Se agora, luz das intuiesde Montesquieu, reconsiderarmos a tradio noa partir do seu fim, mas do seu incio, e nos questionarmos sobre que papel aexperincia de governar desempenhou e em qual domnio da vida estava lo-

    calizada principalmente, devemos lembrar que as formas tradicionais de go-verno enumeradas como o governo de um, de poucos, ou de uma multido,que se segue consistentemente da diviso entre governantes e sditos, assimcomo suas perverses estavam sempre acompanhados por uma taxonomiacompletamente diferente. No lugar de monarquia, ouvimos reinado [kingship](basileia), e o termo monarquia, nesse contexto, usado alternadamente comtirania, de modo que o governo de um homem, seja monarquia ou tirania,algumas vezes chamado de perverso do reinado. Oligarquia, o governode poucos, ainda a perverso da aristocracia, o governo dos melhores, mas

    em vez do termo democracia, o governo da maioria, encontramos politeia[polity], que originalmente designava a plis ou cidade-Estado e mais tardese tornou repblica, a res publica romana. A democracia vista agora comoa perverso desta politeia, uma oclocracia na qual a ral governa suprema.

    Reinado, aristocracia e politeia so louvados como as melhores formas degoverno, ou recomendada ainda uma mistura das trs formas j muito re-motamente e mais tarde algo reforado especificamente por Ccero. Mas talgoverno misto, supostamente incorporando as melhores caractersticas decada forma de governo, impossvel se levarmos em conta que esses gover-nos so essencialmente diferenciados pelo governo de um, de poucos ou damultido, pois bvio que essas formas se excluem mutuamente. A tirania,ademais, denunciada ainda mais intensamente que nas definies tradicio-nais, nesse contexto, no condenada por sua ilegalidade arbitrria tantoquanto por ser a pior, mas ainda uma forma possvel de viver em conjunto, outanto quanto por ser a menos desejvel, mas ainda uma compreensvel atitu-de humana com relao aos prprios companheiros. O tirano antes expulsoda sociedade humana como um todo; considerado uma besta em forma de

    homem, imprprio para o relacionamento humano e situado alm do limitedo gnero humano. Em outras palavras, reinado, aristocracia e politeia pare-cem no ser simplesmente as boas formas de governo das quais monarquia,

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    oligarquia e democracia so perverses: as primeiras nem mesmo podem ser

    definidas no mbito da mesma estrutura de categorias das ltimas.As descries de reinado, aristocracia e politeia indicam antes experin-

    cias polticas reais cristalizadas em diferentes formas de as pessoas viveremjuntas e que nelas so corporificadas, experincias que so anteriores quelasque deram origem aos conceitos de governo conformes lei e ao poder, eno so necessariamente idnticas a elas. Se essas experincias, que aindaavultam nas tradicionais definies e descries de governos, foram conceitu-alizadas anteriormente, outra questo. O fato de que Tucdides j mencioneo que foi mais tarde chamado de governo misto (Livro VIII, 97), e que

    Aristteles aluda a teorias similares em sua Poltica (1265b33), parece indicarque uma trilha anterior do pensamento poltico foi suplantada, absorvida eparcialmente eliminada com o surgimento de nossa tradio. O ponto quenem a diviso entre governantes e sditos nem os padres de lei e de poderfazem muito sentido quando aplicados s boas formas, as quais, ao contr-rio, convertem-se imediatamente em suas formas pervertidas se tentarmosdefini-las de acordo com essa diviso e esses padres.

    Se o reinado fosse o governo de um homem, seria claramente o mesmo

    que uma monarquia; uma monarquia constitucional, como diramos hoje, sede acordo com as leis, e uma tirania, se em oposio a elas. O fato, no entan-to, que um rei (basileus) no tinha o poder absoluto do monarca, que seuposto no era hereditrio, mas que ele era eleito e muito claramente nuncaera permitido ser mais que primus inter pares (o primeiro entre iguais). Nomomento em que definido em termos de governo como o detentor de todosos poderes ele j se transformou em um tirano. Se a aristocracia o governode poucos, que so os melhores, ento a questo que invariavelmente surge quem so os melhores e como eles pode ser descobertos certamente no

    mediante autoeleio , e se algum pode garantir que durante seu governoos melhores permanecero os melhores. No momento em que os poucos soidentificados de acordo com padres objetivos, eles podem apenas ser ricosou de nobreza hereditria, cujo governo Aristteles definiu como oligarquia,uma aristocracia pervertida. Ou, se os poucos so os mais sbios, ento elesso, segundo Plato, aqueles que no podem persuadir a multido e devemgovernar por meio da violncia os sditos relutantes, o que novamente seriauma tirania. Muito menos possvel que tudo era definir politeia ou repblicaem termos de governar e ser governado. Aristteles, aps ter estabelecido

    axiomaticamente que cada comunidade-em-plis [polis-community] com-posta de governantes e governados, continua imediatamente a dizer que

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    nessa forma de governo necessrio que todos compartilhem igualmente o

    governar e o ser governado e que a prpria natureza, pela composio dascidades com jovens e velhos, indicou a quem condiz governar e a quem con-diz ser governado (Poltica, VII, 14, 1332b12-36). Obviamente, a distinoentre governante e sditos desaparece aqui em uma distino entre profes-sores e pupilos, ou entre pais e filhos. Que toda organizao da vida na plis[polis-life] no permitia a distino entre governante e sditos bastante ma-nifesto na famosa discusso das formas de governo por Herdoto, na qual odefensor daplis grega finalmente, aps ser derrotado em um debate, solicitapermisso para se retirar completamente da vida poltica, pois no quer go-vernar nem ser governado. O fato era, naturalmente, que a vida grega emplisdesconhecia tal diviso entre seus cidados. A relao de governo na qual sebaseava, como indicado mais de uma vez em Aristteles, no era experien-ciada primeiramente no domnio pblico-poltico, mas na esfera estritamenteprivada do lar, cujo chefe governava sua famlia e seus escravos.

    Esse domnio privado da famlia e do lar era constitudo pelas necessida-des da vida, a necessidade do sustento da vida individual por meio do traba-lho [labor] e da garantia da sobrevivncia da espcie por meio da procriao

    e do nascimento. Definir a condio para a vida humana em termos da dupladificuldade do trabalho e do nascimento (no apenas no idioma ingls, masem aproximadamente todos os idiomas europeus a mesma palavra, trabalho, usada para a labuta e para as dores do parto) e compreender as duas comointerconectadas, correspondendo uma outra seja porque, aps o pecado dohomem no paraso, Deus decidiu tonar a vida dura para os seres humanos, ouseja porque essa necessidade coativa vista em contraste com a vida fcil dosdeuses , tem sido um dos poucos traos marcantes em que as duas vertentesdo nosso passado, a hebraica e a grega, esto em acordo. indicativo da posio

    do pensamento de Marx o fato de que ele, em uma poca em que essa conexofundamental foi quase esquecida, a restabeleceu pela compreenso do trabalhoe da procriao (begetting) como as duas principais formas de produo davida, a prpria vida por meio do trabalho, isto , o meio de subsistncia, e anova vida por meio da procriao (Deutsche Ideologie, 17). Mas enquanto Marxsitua essa produo da vida por meio do trabalho no centro de sua filosofiapoltica, toda a tradio, em completo acordo com o passado pr-tradicional,situa o trabalho fora do domnio poltico, fazendo dele a mera preocupaoprivada de cada indivduo sobre como resolver o problema de permanecer vivo,

    e mantm toda essa esfera em desprezo, no primeiramente por ser privada,mas por estar sujeita s necessidades inerentes ao estar e se manter vivo. Quem

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    A grande tradio

    quer que estivesse sujeito a essas necessidades, como os trabalhadores e as mu-

    lheres, no poderiam ser livres; liberdade significa antes de tudo ter se tornadoindependente de quaisquer atividades necessrias vida enquanto tal.

    A diviso entre governar e ser governado foi experienciada primeiro nocampo privado, que separou aqueles que governam daqueles que so sujei-tos necessidade. A vida pblico-poltica funda-se nessa diviso como suacondio pr-poltica, mas o prprio conceito de governo originalmente nodesempenhava papel algum nela. Isso se tornou enfaticamente verdadeiropara a cidade-Estado e seu conceito da igualdade entre os cidados, para osquais a liberdade uma condio pr-poltica e no o contedo da polticanem um ideal poltico mas j verdadeiro para uma poca anterior. Agame-mnon era um rei dos reis, e mesmo na aparente glorificao do trabalho porHesodo encontramos sempre presentes o escravo ou o servo, que executamo comando de seus senhores.

    No pensamento poltico tradicional, essa liberdade elementar da neces-sidade, que pode ser alcanada apenas mediante o governo sobre os outros, refletida ento nas sempre repetidas asseveraes de que apenas uma vidaque aspira a algo mais elevado que a vida enquanto tal vale a pena ser vivida,

    e apenas em uma atividade cujo fim algo alm da prpria atividade vale apena se engajar. Mesmo a diferena mais notvel entre a vida dos homens li-vres na Antiguidade e na era moderna a enorme quantidade de facilidades,sem as quais a atividade poltica no sentido grego e romano, o bios politikos,seria completamente impossvel, e que se baseava completamente no fato dotrabalho escravo , para a efetiva experincia de liberdade dessas pessoas,menos relevante que sua contraparte aparentemente negativa: a liberdade daanagkaia, as meras necessidades da vida.

    Em outras palavras, a distino entre governar e ser governado, entre go-

    vernantes e sditos, a qual as tradicionais definies de formas de governoassumem ser a essncia de toda organizao poltica, era originalmente umadistino vlida apenas na vida privada e, portanto, apenas uma condioe nunca o contedo da poltica. As razes pelas quais os filsofos a sobre-puseram s experincias polticas reais, quando comearam a formaliz-lase conceitualiz-las, tm muito mais a ver com a atitude dos filsofos comrelao poltica uma atitude que, certamente, tambm tem suas razes eimplicaes polticas que com quaisquer traos presumivelmente imutveisdo domnio pblico-poltico enquanto tal.

    Reinado, aristocracia e politeia ou repblica so baseados nessa liberdadeem relao necessidade, que se manifesta no governo sobre mulheres e

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    escravos, e sua diferenciao no se baseia na questo sobre quantos detm

    o poder ou sobre quem governa quem. Sua diferenciao se baseia no que compreendido como de interesse pblico enquanto tal e na relao entreaqueles que esto concernidos com o domnio pblico. Do interesse pblicoem um reinado antes de tudo um empreendimento comum que no umaocorrncia cotidiana, mas tem o significado marcante de um evento que in-terrompe o curso normal da vida cotidiana. A fim de participar dos assuntospblicos, de qualquer modo, os governantes privados que seguem seu lderescolhido, o basileus, tm de deixar no apenas a privacidade de suas vidas,mas de se retirar de seu ritmo dirio completamente.

    O que Hesodo glorifica mais que Homero no o trabalho enquanto tal,mas a dignidade da vida cotidiana. Como o ttulo Os trabalhos e os dias indica,e como fica ainda mais claro nas admoestaes ao companheiro de bordo,Hesodo louva o ficar em casa, em oposio ao empreendimento e aventurade todo tipo. Ele defende a beleza tranquila da vida cotidiana, caracterizadano menos pela configurao recorrente dos dias do ano que pelo trabalho[work] no lar e no campo, o qual tambm em Hesodo executado por es-cravos e apenas supervisionado pelo chefe do lar. A importncia de Hesodo

    deve-se a seu louvor da vida que se mantm completamente afastada do do-mnio pblico comum; para ele, as possibilidades de glria e de grandes feitosno contam para nada. Ele o nico grego que louvou sem pudores a vidaprivada, cuja principal caracterstica para os outros gregos era no ofereceraquele espao ou esfera de um mundo comum, o nico no qual algum podeaparecer e ser visto e, portanto, se tornar o que potencialmente. A razo pelaqual o esprito grego, distintamente do romano, no podia ver na vida privadamuito mais que uma inevitvel condio para a constituio de um mundocomum, pblico, era que a privacidade no oferecia qualquer possibilidade

    para a doxa em seus principais sentidos: aparncia e iluso, fama e opinio. Euma vez que s aquilo que aparece e visto, a ideia platnica mais elevadado bem, em toda sua abrangente e ofuscante realidade, phanotaton isto ,brilha mais adiante, tem a aparncia mais brilhante (Repblica, 518 C).

    O domnio privado, mesmo que as necessidades da vida fossem governa-das e cuidadas com sucesso, permanecia um domnio das questes sombrias,desarticuladas e obscuras; a vida privada era desprovida de realidade, poisno poderia se mostrar e no poderia ser vista por outros. A convico deque apenas o que aparece e visto por outros adquire completa realidade e

    sentido autntico para o homem est na base de toda a vida poltica grega. Oprincipal objetivo do tirano condenar os homens aos seus lares privados, o

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    que equivale a priv-los da possibilidade da sua humanidade. O agon, a luta

    por aristeuein, por ser melhor que seus pares e, se possvel, o melhor de to-dos, no a competio de oleiro com oleiro, arteso com arteso, mendigocom mendigo, como Hesodo em seu louvor a ris teria nos feito crer (Ostrabalhos e os dias, 24); , pelo contrrio, a equao poltica entre realidade eaparecer a outros. Apenas onde outros estavam presentes, uma vida especi-ficamente humana poderia comear. Apenas onde era percebido por outrosalgum podia, ao distinguir-se, assenhorar-se de sua prpria humanidade.

    Portanto, no apenas a vida poltica e a experincia poltica no sentidoestrito da palavra, mas a vida humana e a experincia humana enquanto taiscomeam onde quer que o lar privado e o governo sobre ele chegam ao fim; omundo comum, visto por todos os outros em sua luz pblica a brilhar livre-mente, tem incio a. Isso igualmente verdade para o reinado e para aplis,mas a vantagem da ltima, nesse aspecto, que ela oferece um mundo co-mum para a vida diria de seus cidados e no apenas para empreendimentosespordicos. Pelo mesmo motivo, a vida naplis perde oportunidades para overdadeiramente extraordinrio, e sua doxa torna-se, portanto, cada vez maisuma opinio mediante a qual os cidados se distinguem na constante ativida-

    de dapoliteuesthai,e menos a brilhante glria da fama imortal que acompanhaos grandes feitos. O que distingue o reinado da politeia e da repblica no a relao entre governantes e sditos, e nem mesmo primeiramente o rela-cionamento diferente entre os cidados, isto , aqueles que vivem e se movi-mentam em conjunto em um mundo comum. A diferena histrica principalencontra-se no papel que a ao mesma desempenha nessas diferentes formasde organizao pblica.

    O reinado, provavelmente a mais antiga e talvez a mais elementar formapoltica de organizao, baseia-se na experincia da ao no sentido geral de

    comear algo novo, de homens iniciando juntos um novo empreendimento.A ao o elemento aglutinador da vinda e da permanncia conjunta doschefes de lares privados que haviam decidido deixar para trs seus interessesprivados e formam um corpo poltico enquanto o empreendimento perma-nece. O que os impele em conjunto o apetite por ao, que nunca podeser satisfeito por um homem sozinho, pois, distintamente das atividades detrabalhar [laboring] e de fabricar [fabricating], que podem ser exercidas em de-samparo [loneliness] ou no isolamento, a ao possvel apenas onde homensse unem e agem em concerto. Esse concerto da ao exige e, por assim dizer,

    cria o rei, o qual, comoprimus inter pares,torna-se um lder eleito, a quem osdemais seguem por sua prpria escolha livre, no esprito de lealdade. Onde

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    o elemento do engajamento livre est ausente, o reinado se torna uma mo-

    narquia e, segundo Plato, uma tirania, quando a obedincia no concedidavoluntariamente. Os governantes soberanos de famlias reais que seguiram orei Agamemnon para iniciar o empreendimento de Troia ajudaram a ele e aMenelau porque esperavam ganhar para si prprios a glria eterna, a saber,a doxa da aparncia gloriosa no mundo dos mortais que sobreviver s suasmortes. Apenas nesse mundo comum, onde eles mesmos e cada coisa quefazem so vistos e notados por outros, eles podem esperar superar seu destinoprivado de mortalidade, isto , nascer, viver e morrer como uma pessoa nicae insubstituvel que na privacidade de seus prprios interesses no poderiaesperar deixar qualquer trao de sua existncia terrena atrs de si. por suaabsoluta futilidade que a existncia privada o idion dos gregos e, embora emmenor grau devido integrao da vida familiar no domnio pblico-poltico,a res privata dos romanos sempre tinha a conotao de uma vida privada dasmais essenciais possibilidades humanas. Algo dessa futilidade ainda tam-bm inerente aos grandes empreendimentos da to chamada era heroica. Oprprio domnio comum, constitudo apenas em vista das exigncias da ao,desaparece no momento em que o empreendimento chega ao fim quando

    Troia destruda e seu povo assassinado ou distribudo como escravos noslares dos heris. Em certo sentido, o reinado e seus empreendimentos, inspi-rados pela coragem de fazer e de padecer poiein epathein tm uma relaomais prxima no grego que em qualquer outro idioma; so como dois ladosde uma mesmapragmata na medida em que significam as sempre cambiantese flutuantes fortunas dos homens , comeam o que emerge finalmente na

    plis como um mais estvel mundo comum dos assuntos humanos (ta tnanthrpn pragmata). Esse ltimo mundo comum compreende e assegura so-brevivncia para tudo o que os homens fazem a, e sofrem de, cada outro, por

    meio do que se compreende que a grandeza humana no restrita ao feito ea seu realizador, no sentido estrito da palavra, mas pode igualmente ser par-tilhada pelo padecedor e sofredor.

    Nem para a politeia grega nem para a repblica romana a ao foi sem-pre a experincia poltica central. a base da cidade-Estado que as pesso-as possam viver permanentemente juntas e que no se unam meramentepara grandes empreendimentos. entre cidados que surgem os assuntospolticos, no sentido mais estrito e familiar, e as experincias centrais doscidados derivam desta vida conjunta muito mais que da ao conjunta.

    No momento em que a ao requerida, aplis reverter para a mais antigaforma de organizao em reino e os cidados seguiro novamente seu lder

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    escolhido, o stratgos, para conduzi-los na guerra, seja na conquista ou na

    defesa. Mas ento essas aes, que tipicamente ocorrem fora dos muros dacidade, esto tambm fora da atividade poltica, estritamente falando; elas jno constituem, como ocorria no reinado antigo, o nico domnio no qualos homens livres ingressavam e viviam em conjunto. Quando a ao militarnovamente se torna a fundao de uma forma de governo, no testemunha-mos a restaurao do velho reinado, mas o estabelecimento da monarquia,como quando imperadores romanos eram eleitos como soldados profissio-nais. A transformao do stratgos em monarca, ou antes no rex romano ea palavra rex no sculo V a. C fora to repugnante aos ouvidos romanosrepublicanos como a palavra monarca fora aos antigos ouvidos gregos ,ocorre quando as guerras se tornaram um negcio cotidiano e a ao militarganhou predominncia sobre qualquer assunto civil. Apenas ento o gover-no de um homem, ou monarquia, adquire um status diferente da tirania.Contudo, a plis grega e a repblica romana so igualmente removidas daantiga experincia da ao como o incio de um empreendimento, por umlado, e da mais recente perspectiva do soldado profissional sobre a guerracomo seu negcio dirio, por outro.

    O que determina a noo de essncia da poltica de Plato e de Aristteles a convivncia diria de muitas pessoas entre os muros de um espao limita-do. O que relaciona esses muitos entre si so duas experincias: igualdade e di-

    ferena. O sentido de igualdade, contudo, como ela apareceu com a fundaodaplis, era muito diferente da nossa prpria crena na igualdade universal.Primeiro, no era universal, mas pertencia apenas queles que efetivamenteeram iguais; excludos dela, estavam obviamente os no livres, a saber: es-cravos, mulheres e brbaros. No incio, portanto, liberdade e igualdade eramnoes correspondentes e no se percebia conflito algum entre ambas. Uma

    vez que a igualdade no se estendia a todos os homens, ela no era vistacontra o pano de fundo de um destino humano comum, como a igualdadede todos os homens ante a morte; nem era medida contra a esmagadora rea-lidade de um ser supra-humano, como a igualdade perante Deus. Nenhumdesses sentidos de igualdade adentrou a esfera poltica antes dos sculos dedeclnio do Imprio Romano. O que a igualdade significava originalmente,em um sentido positivo, era no estar sozinho ou em desamparo [lonely], poiso desamparo [loneliness] significa estar sem iguais, e o governante de um larrural no possua iguais a menos que fosse para guerra. A gratido pelo fato

    de que no um homem, mas homens habitam a Terra encontra sua primeiraexpresso poltica no corpo poltico da cidade-Estado.

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    Ali, entre iguais, no na supremacia solitria [solitary] de um lar rural, a

    grande paixo grega pela aei aristeuein, de sempre se esforar por distinguira si mesmo como o melhor de todos, pde se desenvolver em um modo devida e esperar trazer tona uma aristocracia, no do sentido do governo dosmelhores, mas de uma predominncia constante dos melhores na vida dap-lis. Em um famoso fragmento Herclito nos diz quem so os melhores e comose distinguem dos cidados ordinrios: Os melhores preferem uma coisa, afama imortal, a todas as coisas mortais; mas a multido se satisfaz empantur-rando-se como gado (B 29). A necessidade de medir-se com os outros a fimde assenhorear-se de si prprio e mostrar a singularidade irrevogvel e imper-mutvel de cada homem que, por ser mortal, tem de encontrar e demarcarpara si uma morada permanente que sobreviver tanto futilidade perecveldos seus feitos quanto mortalidade de sua pessoa era certamente um dosmotivos mais fortes para os grandes empreendimentos da antiga poca doreinado. A grande vantagem daplis sobre o reinado que o mundo pblicocomum, o nico no qual os feitos dos homens so vistos e relembrados, noest confinado ao tempo limitado de um empreendimento com seu incio efim, mas ele prprio permanente, a morada permanente da posteridade.

    Ademais, a atividade de se distinguir, o prprio aristeuein, pode agora se tonaruma realizao diria e permear todo o corpo poltico. Enquanto aplis gregafoi inspirada pelo esprito agonstico, manteve-se aristocrtica, no importase uma oligarquia, como no incio, ou a multido, na poca clssica, deteve opoder do governo. Seus traos aristocrticos, o individualismo temerrio doaristeuein a qualquer preo, conduziram finalmente a plis a sua runa, poisela fez alianas quase impossveis entre as pleis.

    Sua exata contrapartida a repblica romana, baseada desde o incio naconcluso de alianas com inimigos derrotados, onde a salus rei publicae, o

    bem-estar do que todos tm em comum, era colocado sempre e consciente-mente acima da glria individual, com o resultado de que ningum poderia

    jamais se tornar inteiramente si mesmo. Diferena e distino eram secund-rias com relao igualdade, que apenas l se tornou um princpio operativo,um modo de vida, e no, como em Atenas, uma espcie de trampolim a partirdo qual comear a distinguir-se acima de todos os outros. O que ambas,Roma e Atenas, tm em comum que o antigo conceito de ao como centralpara a vida poltica e intimamente conectado com a noo de grandes empre-endimentos, cedeu lugar noo de uma vida ativa consistindo no trato dos

    assuntos pblicos por todos os cidados a todo momento. O contedo dessaatividade em Roma e Atenas era to diferente quanto o termo latino agere do

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    termo gregopolitheuesthai. O primeiro consistia principalmente no incessante

    zelo vigilante que a fundao de Roma e suas leis, o zelo com a preservaoe o crescimento, atriburam aos cidados como um fardo de eterna responsa-bilidade; enquanto o outro consistia na constante deliberao e consideraocomum de todas as coisas humanas, pois cada coisa essencialmente humana,segundo o esprito da vida daplis, era fadada a aparecer e mostrar sua verda-deira face no domnio pblico-poltico. Mas, em ambos os casos, os cidadosque queriam viver uma vida ativa, e tomar parte nas mais elevadas possibi-lidades que seus mundos estenderam a eles, tinham de passar tanto tempoquanto possvel entre iguais no ginsio ou no teatro, nas cortes ou na praapblica, em encontros populares ou no senado e o menor tempo possvelem casa como chefe ou o governante de uma casa. Seus negcios privados,conduzindo suas casas, supervisionando seus artesos ou guardando seus do-mnios eram, por assim dizer, comprimidos entre os assuntos muito maisimportantes aos quais se dedicavam diariamente em pblico. A verdadeiranoo de tempo livre, portanto, seja ela schol ou otium, significa especfica eexclusivamente o tempo livre dos assuntos pblico-polticos, e no o tempolivre do trabalho [work] indicando, mesmo antes de os filsofos demanda-

    rem isso como o pr-requisito do no ativo modo de vida contemplativo, umtipo de solitude [solitude] que nem aplis nem a repblica, mediante a presen-a junto aos concidados, estavam dispostas ou aptas a assegurar.

    Vistas luz de experincias polticas reais, as trs formas de governo de-saparecem em trs diferentes, mas no mutuamente exclusivos, modos devida em conjunto. O reinado primeiramente fundado na ao, no sentidode iniciar, percebida mediante empreendimentos grandiosos e singulares; en-quanto tal, foi concebida para ocasies nicas, no para a vida cotidiana. Oreinado ocorre na histria grega, mas no na romana, que at o fim abominou

    o Rex, pois a nica experincia do governo de um homem que j tiveram foia da tirania. Desde que a vida poltica romana comeou, depois da fundaode Roma, o maior de todos os empreendimentos, ela no teve experinciasde empreendimentos como possveis pontos de encontro para os homens, aconstituir seu prprio mundo comum. A histria romana continha a res ges-tae, as coisas que Roma havia atribudo a seus cidados e que seus cidadoshaviam sustentado (gerere significa originalmente sustentar) e manejado emum esprito grandioso e justo.

    A aristocracia, mais uma vez, fundamentalmente uma experincia grega e

    consiste na convivncia maneira do aristeuein,do alcanar distino e medira si mesmo constantemente com seus iguais. Em contraste com isso, e no

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    necessariamente em uma forma diferente de governo, encontra-se o esprito

    da politeia, que floresceu em Roma mais que em Atenas. O esprito romanoincorpora e exalta a um grau que difcil para ns recapturar a grande ale-gria transbordante do companheirismo entre iguais, o tremendo alvio do estarsozinho que deve ter caracterizado a primeira fundao dos centros urbanos ea aglomerao da multido proveniente das ocupaes rurais no campo. Aqui,a possibilidade de um governo misto autoevidente; ela significa no maisque integrar as trs experincias fundamentais que caracterizam os homens namedida em que vivem uns com os outros e existem em pluralidade a com-binao de amor igualdade com amor pela distino (como Montesquieuformulou mais tarde), e a integrao de ambos na faculdade rgia da ao, aexperincia de que a ao um incio e que ningum pode agir sozinho.

    A excluso da tirania como um modo de viver em conjunto enquantodistinta do governo de um homem ou da monarquia como a pior entre as pos-sveis formas de governo no menos manifesta. O tirano peca igualmentecontra todos os traos fundamentais da condio humana em seu aspectopoltico: pretende ser capaz de agir completamente sozinho; isola os homensuns dos outros por semear medo e desconfiana entre eles, destruindo des-

    se modo a igualdade junto com a capacidade de agir do homem; no podepermitir a qualquer um distinguir a si mesmo e, portanto, inicia seu governocom o estabelecimento da uniformidade, que a perverso da igualdade.

    esse passado e suas proeminentes experincias polticas que a tradioconceitualizou quando definiu as formas de governo no arcabouo do gover-nar e ser governado, da lei e do poder. Nada, como apontamos antes, pode-ria ser mais estranho a essas experincias que a diviso entre governantes esditos, uma vez que o governo era precisamente uma condio pr-polticado viver junto e, portanto, nos termos da Antiguidade, isso apenas poderia

    significar que uma categoria da vida privada foi aplicada ao domnio pblico-poltico. Na verdade, nada to caracterstico dos aspectos negativos da his-tria grega quanto a incapacidade dos gregos para governar, que se mostra detodas as formas desde o grande empreendimento troiano, que terminou coma destruio de Troia, o massacre de seus homens e a escravizao de suasmulheres e crianas, at o malfadado comportamento ateniense na Guerrado Peloponeso com relao aos mlios, e em geral com relao a todos osaliados. Em lugar algum os gregos jamais foram aptos a governar povos con-quistados, isto , a estabelecer o governo como um princpio politicamente

    vlido contra a destruio, por um lado, e a escravido, por outro. Conquistae destruio poderiam enriquecer o domnio privado dos cidados; eles nun-

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    ca puderam estabelecer um domnio pblico no qual os cidados enquanto

    cidados governariam outro povo, como os chefes dos lares governavam seusescravos e mulheres. precisamente a ausncia de governo no domnio p-blico que caracteriza a crueldade especfica da histria grega.

    Roma, claro, teve a grandeza de resolver esse problema. Mas sua soluotampouco posta em termos de governo. Dominium, assim como imperium,estava baseado na capacidade romana de estabelecer societates, alianas comex-inimigos. O poder romano se expressava no estabelecimento de dom-nios pblicos especficos entre Roma e seus vizinhos, sejam esses inimigosou amigos, de modo que passa a existir um mundo comum que no nemidntico prpria Roma nem ao antigo estatuto poltico do conquistado. muito especificamente um mundo do prprio entre ambos, fundado na leiromana mas novamente no na lei vlida para cidados romanos e sim umalei concebida para operar especificamente no entre, o ius gentium,um tipode mediador entre leis, diferentes e discrepantes, das cidades. Foi apenas emseu declnio que Roma se tornou o senhor universal e ento ela destruiuo mundo comum, a primeira grande comunidade [commonwealth], que elaprpria havia construdo, o Imperium romanum no qual o poder (imperium)

    sustentado pelagloria et benevolentia sociorum, como diz Ccero (De off. III,88), pela glria de Roma e pela boa vontade de seus aliados.Assim, foi apenas durante o declnio e depois da queda do Imprio Roma-

    no que a tradicional diviso entre governar e ser governado, como uma ne-cessidade elementar para todas as comunidades organizadas, pde se basearem uma experincia igualmente elementar no domnio poltico. Durante estemesmo perodo de expirao da Antiguidade, a distino mais fundamental,sobre a qual toda vida poltica havia se apoiado no mundo antigo a distin-o entre um mundo dos livres, o nico que era poltico, e o governo doms-

    tico sobre escravos, que permaneceu privado se tornou cada vez mais em-baada. Isso se deveu parcialmente ao fato de o domnio pblico dos homenslivres estar desmoronando de tal modo que o domnio privado de cada umdeles recebeu quase automaticamente uma nova nfase, e em parte porquetantos antigos escravos haviam sido libertados que a distino mesma j noera de to grande importncia. Mas desde ento a diviso tradicional entreaqueles que governam e aqueles que so governados continuou crescendo emimportncia durante toda a Idade Mdia e os primeiros sculos da Idade mo-derna. A suposio de que todo o domnio da vida pblico-poltica e do mun-

    do comum no qual ela se passa essencialmente estruturado por essa divisotornou-se finalmente a suposio bsica da tradio do pensamento poltico

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    ocidental. Onde quer que esta diviso esteja ausente, como, por exemplo, nas

    expectativas utpicas de uma sociedade futura funcionando sem a interfern-cia de um poder de Estado claramente definido, a concluso inevitvel a deque todo o domnio da poltica, e no apenas o Estado, definhar.