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1
Die Nacht
Aus dem Walde tritt die Nacht,
Aus den Bäumen schleicht sie leise,
Schaut sich um in weitem Kreise,
Nun gib acht.
Alle Lichter dieser Welt,
Alle Blumen, alle Farben
Löscht sie aus, und stiehlt die Garben
Weg vom Feld;
Alles nimmt sie, was nur hold,
Nimmt das Silber weg des Stroms,
Nimmt vom Kupferdach des Doms
Weg das Gold.
Ausgeplündert steht der Strauch,
Rücke näher, Seel‟ an Seele;
O die Nacht, mir bangt, sie stehle
Dirch mir auch.
TRADUÇÃO
Do arvoredo a noite vem,
Sobre o bosque desce quieta,
Envolvendo toda a mata,
Olhe bem.
2
Toda luz ela esmaece,
E das flores e das cores,
Rouba o tom, e rouba os feixes,
Desfalece.
Leva tudo que é bom,
Tira d‟ água o prateado
Leva do domo o dourado
rouba o tom
desfalece o alecrim
aproxima alma de alma
oh, a noite, rouba, calma
tu, de, mim
TEXTO – DIE NACHT
No Romantismo as respostas para as questões do mundo residiam não na
racionalidade, mas na imaginação. O espírito romântico coloca ênfase nas manifestações
dos impulsos emocionais e nas sensações nervosas. Os temas principais do romantismo se
referem à expansão – à exploração do desconhecido, tanto no mundo físico como das
sutilezas psicológicas. Entre estes temas, a escuridão da noite tem um lugar privilegiado,
atraindo os poetas românticos pelo seu mistério.
Em Die Nacht encontramos o paradoxo de que fala Deborah Stein, quando o poeta
procede à intensificação da realidade com a imaginação. Um fenômeno cotidiano como a
noite se transforma, aos olhos do poeta, em uma ameaça aos encantos da natureza e da
cidade, bem como à própria vida afetiva do poeta, que teme perder o seu amor. Die Nacht é
um poema onde se expressa medo e tristeza perante a inevitabilidade da perda da beleza do
dia e do amor. O poeta revela também uma ambivalência temporal em Die Nacht: perante
o espetáculo do poente o poeta não pensa na beleza das estrelas ou no brilho da lua, que
acontecem durante a noite, mas apenas sofre a melancolia do dia que perece – o passado
feliz é comparado a um presente conturbado, sob as cores da percepção emocional.
3
A ambigüidade do poeta frente às forças naturais é forte. Rendendo homenagem às
imagens visuais, Hermann von Gilm fala das luzes que dão cor, brilho e forma às coisas do
mundo; e da escuridão que rouba e fenece estas mesmas qualidades. Há uma oposição entre
a luz e a escuridão, o dia e a noite, a alegria e a tristeza, a posse e a perda. Pode-se mesmo
inferir que a luz tem uma conotação de vida, enquanto a noite se refere mais internamente à
própria morte. O mundo se mostra em transformação, de uma perspectiva extremamente
individual e interna.
1 - CONTEÚDO POÉTICO
A personificação encontra-se presente em Die Nacht. A noite, que transforma a
percepção do mundo em que vive o poeta, personifica a morte, em oposição ao dia – a
própria vida. Da mesma forma que o ciclo diário, a morte transforma tudo quanto atinge, de
forma misteriosa do ângulo de quem continua vivo.
As três primeiras estrofes do poema falam da observação do cair da noite sobre o
campo e a cidade. Na estância inicial o fenômeno geral da noite é descrito, enfatizando-se
que ela desce calma e quieta, um fenômeno inexorável. Na segunda estrofe dá-se realce a
detalhes específicos do efeito da diminuição da luz, enquanto na terceira há um certo
julgamento do fenômeno quando o poeta diz “leva tudo que é bom“. O poema caminha do
geral para o específico, fazendo muitas alusões à percepção visual. Percebe-se a valorização
das perdas em relação ao dia que termina, num clima de melancolia.
Na última estrofe, após divagar sobre o perfume das flores, o poeta muda
dramaticamente a direção de suas observações. Em analogia com o efeito da noite sobre as
coisas, dirige sua imaginação para a possiblidade de que também o ser amado possa ser
envolto e roubado. Exibe, então, medo. Da melancolia inicial ao medo com que se termina
o poema percebemos um movimento psicológico e emocional, com um pano de fundo
configurado pela impotência do poeta face as forças naturais.
A progressão poética de Die Nacht exibe portanto, essa mudança da melancolia
inicial à ansiedade e medo com que se termina o poema. Há um mergulho brusco nas
relações psicológicas do ser que reage em ressonância às transformações da natureza.
A poesia é confeccionada em terceira pessoa até os dois ultimos versos onde se
passa para a primeira pessoa, identificando então quem fala: eu. Enquanto usa a terceira
pessoa, o poeta projeta sua própria voz na do protagonista. Parece passear observando a
4
caída da noite, falando consigo mesmo. Quando a indicação de eu aparece, o poeta parece
falar para a pessoa amada, identificada pelo pronome tu. Isso é feito, porém, de forma
íntima, deixando implícito que o poeta continua a conversar consigo mesmo.
Na canção a linha vocal apresenta a poesia, enquanto o acompanhamento pelo piano
cria um clima compatível com a atmosfera psicológica do poema. A mudança na direção do
poema na última estrofe encontra expressão no piano, que começa com algumas linhas
contrapontísticas e vai se tornando mais homofônico. Um elemento que traz unidade à
canção é a seqüência inipterruta de colcheias, que embora apoiem harmonicamente a
melodia, tem uma vida própria, levando a um clima de movimento, expectativa e suspense.
As colcheias só são interrompidas quando o medo do poeta é expresso, ao final do poema.
Somente o póslúdio apresenta figuras maiores do que a colcheia em todas as vozes, como
se a catarse do autoconhecimento liberasse o poeta de suas preocupações.
2 - FORMA POÉTICA
Esquemas Rítmicos
O poema Die Nacht foi construído em quatro estrofes, sendo que o último verso é sempre o
mais curto em cada estância. O padrão de rima final usado é abba, onde o primeiro verso
rima com o quarto, e segundo com o terceiro verso, como se observa na primeira estrofe do
poema em estudo:
Aus dem Walde tritt die Nacht,
Aus den Bäumen schleicht sie leise,
Schaut sich um in weitem Kreise,
Nun gib acht.
Rimas internas que criam conexões ainda mais fortes no poema estão presentes em
grande número. Aquelas que usam o mesmo som vogal, as assonâncias, são presentes em
muitos dos versos de Die Nacht. Por ex., no primeiro verso, Aus dem Walde tritt die Nacht,
Walde rima com Nacht, e tritt com die. No segundo verso schleicht rima com leise, e no
terceiro weitem com Kreise. Aliterações também ocorrem no poema de Gilm, mas com
menor freqüência. No terceiro verso da terceira estrofe, Nimmt vom Kupferdach des Doms„
observa-se que dach des Doms a repetição de `d´ configura um destes casos.
5
Metro Poético
Die Nacht tem um padrão de acentuação binário das sílabas. Todos os versos
começam com sílabas tônicas, sendo que a maioria deles acaba com a sílaba fraca. Com
exceção dos monossílabos finais acentuados que consistem do metro poético espondaico,
todo o poema é regido pelo metro trocaico. Estes monossílabos finais fazem uma espécie de
substituição, uma quebra do padrão corrente, bastante quadrado. Contra essa grande
regularização, o poeta também propõe o quarto verso sempre mais curto, o que ajuda na
fluidez do poema.
A primeira, a Segunda e a Quarta estrofe apresentam um padrão de acentuação
semelhante: o primeiro e último verso acabam em monossílabos acentuados, enquanto os
versos do meio da estrofe acabam em sílaba não acentuada. Este padrão é quebrado na
terceira estrofe, onde todas as linhas acabam em monossílabos acentuados. Este artifício
provê certa aceleração na leitura do poema. O uso de frases paralelas - Nimmt das Silber
weg des Stroms / Nimmt vom Kupferdach des Doms auxilia o procedimento. Isso ajuda na
sensação de movimento do poema como um todo. Strauss, porém, usou estes monossílabos
em notas longas, onde o caráter da acentuação breve e pesada fica perdido, mas balanceia a
compressão rítmica observada na primeira metade destas frases.
Gráfico demonstrativo do número de pés de cada verso de Die Nacht
1º verso 2
º verso 3
º verso 4
º verso
1. estrofe 7 8 8 3
2ª estrofe 7 8 8 3
3ª estrofe 7 7 7 3
4ª estrofe 7 8 8 3
A análise que permitiu as conclusões acima foi baseada no procedimento de escansão que
se segue. O sinal / indica sílabas fortes e ˘ sílabas sem acento:
6
Aus dem Wal-de tritt die Nacht, [4]
/ ˘ / ˘ / ˘ /
Aus den Bäu-men schleicht sie lei-se, [4]
/ ˘ / ˘ / ˘ / ˘
Schaut sich um in wei-tem Krei-se, [4]
/ ˘ / ˘ / ˘ / ˘
Nun gib acht. [2]
/ ˘ /
Al- le Lich-ter die-ser Welt, [4]
/ ˘ / ˘ / ˘ /
Al- le Blu-men, al- le Far-bem [4]
/ ˘ / ˘ / ˘ / ˘
Löscht sie aus, und stiehlt die Gar-bem [4]
/ ˘ / ˘ / ˘ / ˘
Weg vom Feld; [2]
/ ˘ /
Al-les nimmt sie, was nur hold, [4]
/ ˘ / ˘ / ˘ /
Nimmt das Sil-ber weg des Stroms, [4]
/ ˘ / ˘ / ˘ /
Nimmt vom Kup-fer-dach des Doms [4]
/ ˘ / ˘ / ˘ /
Weg das Gold. [2]
/ ˘ /
Aus-ge-plün-dert steht der Strauch, [4]
/ ˘ / ˘ / ˘ /
Rük-ke nä-her, Seel‟ an See-le; [4]
/ ˘ / ˘ / ˘ / ˘
O die Nacht, mir bangt, sie steh-le [4]
/ ˘ / ˘ / ˘ / ˘
Dirch mir auch. [2]
/ ˘ /
7
FORMA
A maneira como os elementos musicais se combinam em Die Nacht, explorando
similaridades e contrastes à procura de um todo coerente tem tudo a ver com a forma do
poema. Julio Bas comenta em seu livro “Tratado de la Forma Musical”, que na música
vocal o texto é um guia, um precioso coeficiente, seja de unidade ou de variedade. Os
compositores românticos mostraram sempre muita sensibilidade à progressão do conteúdo
poético. O poema de Gilm traz uma grande diferenciação na quarta e última estrofe, quando
o mundo interno do poeta começa a ser desvelado. Isso trouxe a Strauss um certo
desequilíbrio nas proporções: ¾ do poema tem um conteúdo e o ¼ final outro. Que forma
adotar? Tivesse o poema continuado no mesmo sentido de descrever o cair da noite e a
forma estrófica modificada teria sido ideal.
A solução de Strauss foi reconhecer o conteúdo descritivo contínuo das três
primeiras estrofes por algum tipo de similaridade, e identificar a mudança no conteúdo
poético por uma mudança musical compatível. A meu ver, ele adota a forma estrófica
modificada até o compasso 27, o que corresponde às três primeiras partes da música. Para
defender essa opinião pode-se apontar as seguintes características deste trecho:
a) um gesto vocal inicial idêntico ou semelhante: a subida por graus conjuntos até a
5ª da tônica de Ré Maior, partindo da 3
ª maior cria uma forte unidade entre
estas partes.
b) há um tamanho médio aproximado das frases vocais: 7 compassos na primeira e
na terceira parte, 6 compassos na segunda parte.
c) contorno melódico semelhante, caracterizado por saltos que alteram a direção da
melodia e pequenos trechos de subidas ou descidas em graus conjuntos.
c) o uso de padrões harmônicos semelhantes nas cadências nos três trechos.
d) Uso de tonalidades vizinhas: Re Maior e Si menor
e) recorrência do motivo rítmico do compasso 3, visto na figura 1:
8
f) persistência de uma textura com linhas contrapontísticas no acompanhamento
g) persistência do acento no segundo tempo em todo o trecho, quer por uso de notas
mais longas, quer pela mudança de registro no segundo tempo do compasso
Para a última parte, entretanto, Strauss concebe uma música que se afasta destas
características:
a) embora preserve o gesto vocal inicial, como um elemento de ligação, altera o
fa# para fa natural, provocando surpresa na mudança do modo M para menor;
b) expande o tamanho desta seção para 13 compassos somente na parte vocal;
c) usa um padrão melódico novo que consiste em notas repetidas sobre a tônica de
Re Maior, que se afasta muito dos constantes movimentos por saltos e graus conjuntos das
três partes anteriores;
d) usa uma harmonia dúbia, ao interpolar acordes de rem com Re maior, até mesmo
antes do acorde final.
e) muda a textura do acompanhamento para um tipo acordal e progressivamente se
dirige à regiões mais graves, passando os acordes para a mão esquerda do piano;
f) o acento do segundo tempo só acontece nos dois compassos iniciais da linha
vocal, passando depois a acontecer somente no acompanhamento. A partir do compasso 30
o primeiro tempo se torna a referência métrica na parte vocal.
Todas essas características contrastantes falam a favor de uma parte B.
Defendemos portanto um tipo de organização formal que se caracteriza por uma
apropriação das formas musicais comuns na literatura dos Lieder e sua adequação ao
poema sendo musicado:
A A‟ A‟‟ B
A A‟ A‟‟ B
Cp 1-9 Cp. 10-17 Cp. 18-27 Cp. 28-45
Re M Re M – Si m Si m Re M ( + rem)
9
Isso concorda com A. B. Marx, teorista do século dezenove quando diz que “há
tantas formas quanto peças artísticas”. A liberdade formal foi uma das características do
Romantismo e para adequar música ao poema Strauss parece ter feito uma parceria entre a
forma estrófica modificada e a forma AB, resultando em uma forma híbrida.
TEXTURA
A linha vocal é silábica, em estilo legato, caracterizado aqui pela alternância de notas de
valor mais longo com outras de valor mais curto. A linha melódica vocal se mantém em
constante mudança de direção nas três primeiras partes, o que também fala a favor de um
estilo legato neste trecho.
Figura 2: melodia, cps 6-8
A última parte da canção traz uma novidade que são as notas repetidas a partir do compasso
30. A textura continua silábica mas deixa de ser completamente legato para realçar um
caráter mais articulado. Concorda com isso o fato de que até o compasso 27 Strauss se
mantém constante ao escrever ligaduras de fraseado, e que elas estão ausentes a partir do
compasso 30, onde se inicia o trecho em notas repetidas que vestem musicalmente a
mudança de direção do poema.
O acompanhamento tem textura variável, desde compassos em estilo homofônico,
providenciando uma base harmônica para a melodia, até outros onde melodias
contrapontísticas são adicionadas à base homofônica. Essas melodias ficam
predominantemente na região grave na parte AA‟A‟‟, e migram para a região aguda na
parte B da música. No piano, uma sucessão de acordes em colcheias percorre praticamente
toda a peça, ora na mão direita, ora na esquerda. A anotação destes acordes se dá com
estacattos e ligaduras que ficam restritas ao interior de cada compasso. Essa articulação non
legato dos acordes é contraposta à marcação das melodias de caráter contrapontístico que
aparecem no acompanhamento, e que são notadas com ligaduras.
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A superposição destas texturas cria um clima pictórico para a peça. A sucessão de
acordes parece se referir ao tempo que passa e é sentido de maneira clara quando se observa
ou se reflete sobre o poente, criando também um conflito psicológico de ansiedade perante
o inexorável. As linhas contrapontísticas nas três primeiras partes parecem descrever a
descida da noite, com grandes arcos descendentes. Já na última parte ao desenhar um
movimento ascendente, que caminha contrário à direção descendente dos acordes, parecem
descrever uma força que brota do sentir do poeta e precisa emergir à superfície, o que
ocorre através de uma grande exclamação no compasso 35: „a noite rouba você de mim‟.
Figura 3: linhas contrapontísticas
Duas exceções ao continuum de colcheias em acordes no piano ocorrem em
momentos em que a voz cessa: o interlúdio entre a terceira e quarta estrofes, e o poslúdio.
A sua ausência é eloqüente: o primeiro caso prenuncia a virada na direção emocional do
poema e o segundo ilustra a liberação do poeta dos seus problemas, uma vez que eles foram
enunciados.
As notas da melodia se repetem no acompanhamento, mas de maneira desordenada;
ora no soprano, ora no contralto ou em outras vozes, sem que essa ordem pareça ter maior
significado.
TEMPORALIDADE
Strauss enfatiza as palavras mais importantes do poema através do uso de durações maiores
e de mudanças de registro, por intervalos ascendentes ou descendentes.
Figura 4: exemplos de palavras enfatizadas no primeiro verso ( Walde e Nacht)
11
O compositor anotou o andamento „andantino‟ como indicação do tempo. Não há
mudanças no andamento indicado durante toda a peça. Andantino é conceituado no
Dicionário The New Harvard como um andamento um pouco mais rápido que o andante.
O termo é ambíguo já que Andante é um tempo entre Adágio e Allegro, abrangendo um
leque entre 76 e 108 batidas por minutos no metrônomo Wittner. Um pouco mais rápido
que Andante seria então a faixa superior de andamento, cerca de 100 a 108 batidas por
minuto? Um complicador da questão é para qual figura estaria esse pulso sendo
determinado? A semínima ou a colcheia? A autorizada performance de Elisabeth
Schwarzkopf no CD Lieder é feita na velocidade de cerca de 56 por semínima, ou seja 112
por colcheia, que cai na categoria Moderato, também um andamento entre Andante e
Allegro. Aqui resta uma dificuldade que certamente será resolvida pela visão geral da peça:
o contexto de tristeza do texto, o pedido formal de sotto voce e una corda, a sutileza das
dinâmicas – tudo fala a favor de um andamento lento.
Além disso, um fator de performance que pode auxiliar na escolha de um
andamento em Die Nacht é a habilidade do cantor em sustentar a frase dos compassos 22 a
23, com sua configuração ascendente que culmina em nota aguda e longa. Há também um
problema no acompanhamento do piano: as notas em non-legato, usualmente sem
sustentação do pedal, correm o risco de ficarem muito separadas caso se escolha um
andamento muito lento.
ELEMENTOS DE INTERPRETAÇÂO
A dinâmica marcada fica entre pianíssimo e piano. Isso sugere uma canção
altamente intimista. Essa perseverança em um nível de dinâmica baixo chama a atenção
para a tentativa de reproduzir também a quietude do poente, onde os estímulos sensoriais
vão certamente diminuindo – a luz esmaece, os sons diminuem, os cheiros do dia se
apagam. Strauss não indica uma dinâmica especial para a parte vocal, donde se conclui que
a mesma dinâmica escrita para o piano serve ao dueto como um todo. Há uma
predominância de pp enquanto a voz canta durante as três primeiras estrofes, sendo que
12
quando o piano intercala melodias com a voz, como no compasso 5, 13-14, 25-26, há
indicação de p. Isso certamente aponta que estas melodias no piano interagem e tem o
mesmo peso de informação que a melodia vocal.
As variações na dinâmica ficam por conta de crescendos e diminuendos,
aparentemente sempre em pequena escala de variação de intensidade. A Quarta estrofe
sobressai neste sentido, como o clímax textual e musical da peça. No compasso 29 Strauss
faz uma das três indicações formais de variação de dinâmica na peça, ao escrever um
crescendo que dura até o compasso 33, quando ele adverte o cantor a diminuir de
intensidade progressivamente até voltar ao nível de pp no compasso 36. Uma outra
indicação de diminuindo acontece no compasso 39. O contexto textual explica facilmente
esta questão. Nas três primeiras estrofes, o poema descreve a entrada da noite e seus efeitos
sobre as coisas. No segundo verso da quarta estrofes há uma guinada para a percepção dos
medos próprios do coração do poeta em relação à noite. O crescendo, sobre a linha „rükke
näher, Seel na Seele’ „aproximando alma de alma‟, serve para chamar a atenção e valoriza
ainda mais a revelação do tormento íntimo do poeta quando se volta `a dinâmica pp
anterior, para então revelar „oh, a noite roubará você de mim‟, em ‘ o die nacht, mir bangt,
sie stehle dich mir auch’.
Figura 4: parte B da canção
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2- TIMBRE
A indicação de sotto voce na linha vocal, e una corda para o piano pressupõe um
timbre geral contido nesta canção. Isso reforça o caráter intimista tanto do texto de Gilm,
quanto das dinâmicas concebidas por Strauss.
Com essa característica de pouca diferenciação de intensidade e de um timbre
contido, a melodia, com suas variações de altura, acaba sendo um fator marcante na peça.
O uso do registro agudo é explorado por Strauss, especialmente na terceira e quarta
estrofes.
Na terceira parte, Strauss cria uma seqüência de notas agudas sobre as rimas finais
„hold’, ‘stroms’, ‘doms’ e ‘gold’, todas elas com o som fonético do ó aberto. O caráter da
cor destas vogais, abertas, contrastam com as notas agudas da última estrofes, onde a
maioria das vogais são de caráter mais escuro: „näher, Seel, Seele, Nacht, mir bangt, sie
stehle, e auch’. Se Gilm já confeccionou assim o poema, escolhendo as palavras também
pela cor das vogais, Strauss evidencia ainda mais a transformação da última estrofe do
poema ao esticar o texto dando a cada sílaba notas longas, permanecendo por 8 compassos
no registro agudo da canção, numa parte da peça que tem 13 compassos no total.
No acompanhamento há indicação de una corda, que permanece por toda a peça.
Algumas marcações de pedal permeiam a peça, especialmente nos pontos onde o
acompanhamento exibe linhas melódicas. A partir do compasso 30, com o crescendo, o
pedal é requisitado a cada compasso. Trata-se do trecho onde o acompanhamento é mais
acordal, o ritmo harmônico é lento e o uso do pedal não gera confusão. Enquanto o poeta
articula seu medo, o compositor simplifica a estrutura horizontal da música, concentrando-
se na linha vertical, como se mergulhasse fundo nas emoções do enunciador. Também abre
a tessitura deste trecho: a voz explora o registro agudo, e o acompanhamento acordal vai se
tornando cada vez mais grave.
Há uma diferenciação entre a articulação legato do canto e a non legato do piano
durante toda a peça. Penso que as linhas melódicas do piano devem ser levemente
realçadas. O clima geral é de calma, aquietamento, e as colcheias repetidas falam do tempo
passando, inexorável, trazendo a noite e os medos que ela é capaz de suscitar.
14
MELODIA E MOTIVO
O poema tem quatro estrofes, que delimitam as quatro partes da canção. O tamanho
de cada uma destas seções não é uniforme. A primeira parte tem 9 compassos, a Segunda
apresenta 8 compassos, seguido da terceira com 10 e a maior seção de todas, a última, com
18 compassos. O piano faz a separação entre as partes.
As diferenças no número de pés dos versos internos da terceira estrofe não afeta a
maneira como Strauss vestiu sua canção. Na quarta estrofe o compositor procede a uma
expansão musical do texto, marcando através de uma série de mudanças, a nova direção
emocional do poema. O acompanhamento se torna mais acordal, o registro do
acompanhamento vai progressivamente para a região mais grave, o canto explora a região
aguda, e há um uso insistente de notas longas. A variação de dinâmica no trecho só torna a
música mais intensa e interessante.
Contexto tonal e harmônico
A melodia segue o padrão tonal da peça, que apresenta um movimento harmônico
que começa em Re maior, explora a relativa menor, Si menor, e na última parte interpola
acordes do modo de re menor em um trecho de Re maior.
1ª Parte - Re Maior – semi cadência em cp. 3, cadência autêntica em cp. 5,
semicadência em cp. 9.
2ª Parte – Começa em Re Maior, modulando para Si menor no cp. 13. Pontuada por
semi cadências nos compassos 13 e 17.
3ª Parte – Começa em Re maior, modulando de volta para si menor no cp.25.
4ª Parte – Permanece em Re Maior, emprestando acordes do tom de Re menor nos
compassos 28-32 e 35-36. Apresenta o movimento harmônico II – V11- V7 – bVI –I no
trecho final.
O uso da tônica e sua relativa menor nas três primeiras partes dá unidade à peça e o
movimento fica por conta das muitas semi cadências, que impulsionam a música para a
frente. Esse paralelo entre Re Maior e Si menor serve ao texto enquanto se fala da natureza.
Já a interpolação do modo de Re menor em Re Maior cria uma ambigüidade harmônica que
representa muito bem sonoramente a ansiedade e a imersão do poeta nos seus próprios
15
sentimentos: continuar na observação do mundo, ou admitir a ansiedade e o medo sentidos
no interior de si?
A melodia vocal usa tanto intervalos conjuntos quanto disjuntos. À frases que
sobem em graus conjuntos, Strauss interpõe a descida em saltos maiores e vice versa.
Melodia angulosa, especialmente nas três primeiras partes da peça, onde a descrição da
caída da noite é a inspiração de Strauss. No trecho final a melodia muda de característica: o
compositor persiste no registro agudo, com notas longas e repetidas, em resposta à
mudança no texto.
Enquanto o poema segue descrevendo a caída da noite, a melodia é de certa forma
circular como o próprio texto: volta-se sobre si mesmo, permanecendo na tonalidade
original ou na relativa menor. Vai sendo alterada mas mantém as características do início.
A grande mudança atende ao texto: na última parte a melodia se expande nas durações,
explora a novidade das notas repetidas e a perca da motricidade característica da primeira
parte. É como se o poeta dissesse em som: o mundo lá fora é cheio de altos e baixos, mas
quando reflito sobre meu mundo interior, não há tempo, não há alturas – tudo cessa na
percepção sensorial.
A melodia possui uma extensão de uma oitava e meia. Três registros são claros, e
dois são mais usados. O registro grave só acontece no final da Segunda parte, e ele tende a
balancear a exploração dos agudos na primeira parte da peça. O registro médio sempre
inicia as seções de Die Nacht, e interage em regime de continuidade com o registro agudo,
onde ocorrem os pontos culminantes da música.
O clímax da peça acontece no compasso 36, com o prolongamento da nota mais
aguda da peça em um pp logo após um crescendo e diminuindo. É o momento em que o
texto finalmente revela o temor interior do poeta.
Alguns motivos acontecem durante toda a música, como o pontuado que aparece no
compasso3, com o texto tritt die nacht, e que são aproveitados por Strauss tanto como um
modelo rítmico quanto como um modelo melódico.
16
RITMO
Die Nacht foi escrita no compasso ¾. Há um acento métrico recorrente no segundo tempo,
causado principalmente por dois procedimentos:
1. uso de notas de maior duração no segundo tempo. Isso se observa na linha vocal, nos
compassos 2,3,6,7,8,10,11,13,16,18,19,24,28. No acompanhamento acontece o mesmo
nos compassos 4,7,12,13,14,15,16,19, 24,30,31 e 35.
2. O segundo tempo é acentuado pelas mudanças bruscas de registro na linha vocal, como
ocorre nos compassos 4,7,8,12,19.
Esse acento do segundo tempo aparece muito mais nas três primeiras estrofes. Esta
instabilidade métrica parece refletir o fato de que na observação da natureza, alguma coisa
perturba o poeta. O próprio compasso ¾ não parece muito apropriado para um texto que em
síntese descreve uma caminhada. É como se a percepção do mundo fosse perturbada pelo
estado interior. Quando se entra na quarta estrofe, e o poeta encara seu mundo interior,
essa perturbação métrica diminui consideravelmente na concepção musical de Strauss.
Quando se observa a linha vocal, percebe-se que a peça é estruturada
predominantemente em frases de dois compassos. É o caso da primeira e terceira estrofes.
Os três primeiros versos são musicados em frases de dois compassos, e o último, que tem
apenas 3 pés, fica com a menor frase, de um compasso. Na primeira parte esse compasso se
completa com a resposta do motivo rítmico no acompanhamento, que dura também um
compasso. Na terceira estrofe ele se liga a um interlúdio de três compassos, com uma das
poucas melodias independentes da mão direita do piano, que une melodicamente a terceira
e a quarta parte da canção.
Na segunda parte a estrutura de dois compassos é mantida através de uma alteração
na distribuição do texto. Nos cps 12/13, Strauss usa o segundo verso e parte do terceiro
(alle Blumen, alle Farben löscht sie aus) para confeccionar a segunda frase musical. Isso
assegura o entendimento (as flores, as cores ela extingue) A terceira frase termina o
terceiro verso unido ao quarto, (e rouba os feixes do campo). Um interlúdio de 1 compasso
une a segunda e a terceira frases, com uma melodia que segue o padrão vocal.
A partir do compasso 28, quando o compositor passa a musicar a última parte, o
padrão de frases de dois compassos é alterado. A primeira frase dura um compasso e meio,
com as mesmas características das partes anteriores. Mas daí para a frente há uma expansão
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das frases, e grande mudança em seu contorno melódico. O trecho “rükke näher, Seel an
Seele” dura 4 compassos; “o die Nacht, mir bangt’, dura dois compassos , e o
complemento do verso, sie stehle”, dois compassos e meio. O último verso foi distribuído
em 3 compassos. Essa expansão já foi explicada acima, é a diferença que é significativa.
O motivo rítmico mais interessante aparece no compasso 3, e é repetido 14 vezes
durante a peça, que tem 46 compassos. Consiste de uma colcheia pontuada, uma
semicolcheia e uma semínima, motivo concebido inicialmente para as palavras “tritt die
Nacht”, (desce a noite). Bastante emblemático e descritivo, ele traz um elemento cromático
no acompanhamento que provoca uma dissonância aguda no terceiro compasso de uma
peça que havia permanecido até então na harmonia da fundamental, como se falasse da dor
da noite, dos problemas que ela causa. Este motivo é usado tanto na linha vocal quanto no
piano e parece relembrar constantemente que a noite vem, vem vindo... Ele é repetido uma
vez no início da segunda parte, e aparece em inversão intervalar nos compassos 6, 9 e 17.
As outras repetições são rítmicas apenas. No compasso 29 dois motivos rítmicos se
sucedem e criam grande momentum para a expansão rítmica que se segue. .Este motivo
permeia toda a peça e é um elemento de impulso. Funciona como um eco das palavras „a
noite cai‟ um leitmotiv que causa não só unidade, mas também certa ansiedade.
Obviamente quando se revela o medo do poeta, este motivo rítmico desaparece, e surge um
novo tipo de desestruturação rítmica a medida que a hemiola da coda termina a peça.
INTERPRETAÇÂO
Uma vez feita a análise da partitura, o que demandou seu estudo desmembrado em
diversas categorias (análise do texto, análise harmônica, melódica e rítmica, entre outras),
o cantor deve transportar a compreensão obtida para a performance da canção. Toda a
bagagem intelectual e emocional evocada pela análise tem de ser transferida para o domínio
corporal, e transformada em sinais sonoros. Uma dicção cuidadosa, uma emissão produto
de reflexão são desejáveis. E como faz o cantor para transformar as emoções percebidas no
poema em música? A discussão que se segue é um levantamento de literatura na tentativa
de discutir esse processo de transferência do conteúdo emocional de uma canção em som.
Em seu livro More Than Singing, Lotte Lehmann adverte o cantor iniciante de que
só deve cantar depois que aprendeu a sentir o que está cantando dentro de seu próprio
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corpo. Recomenda que o cantor gaste alguns instantes por dia para imaginar situações e
observar como sente as emoções em seu corpo, sem verbalizar nada. Ela considera que
depois disso pode ser mais fácil transferir essas emoções para o canto. A autora
veementemente defende vozes capazes de alterar seus timbres à serviço do texto e da
música associada a ele. Aksel Schiǿtz concorda com Lehmann, ao dizer que a verdadeira
interpretação vem de dentro, e que somente através das suas experiências de vida o cantor
pode ter um suporte forte para refletir sobre o conteúdo da canção, e que se deve evitar
expressões faciais e corporais „ensinadas‟. As duas autoras concordam que o cantor deve
vivenciar internamente estados emocionais evocados pela canção de forma a construir uma
performance autêntica e individual.
Também mostra o mesmo ponto de vista a cantora Cathy Berberian quando diz: “a
palavra sugere ao pensamento uma emoção que age sobre o corpo. E o corpo ajuda a voz a
encontrar a cor do som...” Sugerindo que o texto da música traz uma emoção que deve ser
respeitada, Berberian considera que de modo automática o corpo encontrará a cor do som
adequada para a caracterização do estado emocional. Na tentativa de mostrar caminhos
mais claros para se chegar a uma performance artística, David Alt sugere alguns exercícios
para que o cantor aprenda a desenvolver reações emocionais às palavras e música e seja
apto a projetar estas reações para a audiência. Ele recomenda o estudo separado do texto e a
criação de imagens específicas e até mesmo histórias pessoais a respeito do poema. Só
aconselha o estudo da melodia depois que o estudante já criou um personagem claro e
visualizou uma situação concreta para o texto. Algumas práticas para desenvolver a
expressão facial e o olhar são sugeridas, no sentido de instrumentalizar o cantor com várias
possibilidades disponíveis para uma dada situação. Os autores acima descritos falam todos
em emoção e sua tradução no corpo. Mas o que é realmente uma emoção?
Filósofos têm interpretado as emoções ao sabor dos conhecimentos de sua época.
Descartes, Espinosa e outros falam das emoções em seus tratados. Mais recentemente, a
neuropsicologia tem reunido esforços para desvendar os fenômenos da emoção. Antonio
Damasio1 é um destes pesquisadores e uma citação sua pode esclarecer o atual estado das
pesquisas sobre a emoção:
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A maquinaria da emoção: As emoções ocorrem no teatro do corpo. ...são ações ou
movimentos, que ocorrem no rosto, na voz ou em comportamentos específicos do corpo.
Foram construídas a partir de reações simples que promovem a sobrevida de um
organismo...essas ações, por vezes sutis, por vezes óbvias tentam restabelecer o equilíbrio
biológico de forma automática...Os nossos organismos gravitam naturalmente para um
resultado “bom”, por vezes diretamente, como numa resposta de alegria, por vezes
indiretamente, como numa resposta de medo que começa por evitar o “mal” e leva
subseqüentemente a um bom resultado... Essas ações são inatas ou sujeitas a aprendizagem.
As pesquisas apontam, pois, que as emoções são desencadeadas por um estímulo
que pode estar presente ou ser imagético (o que corresponde ao caso do intérprete cantor), e
que é capaz de desencadear respostas corporais químicas e neurais que apresentam um
padrão específico. O corpo se altera, a partir de uma resposta cerebral, tentando a melhor
possibilidade para devolver o sistema ao estado original, de forma a garantir a
sobrevivência. O estímulo que desenvolve a emoção pode ser geral para uma coletividade
ou específico para uma pessoa. Uma vez captado, ele navega pelas vias neurais e deve
atingir os locais que funcionam como desencadeadores de emoção, que impulsionam o
processo aos órgãos efetuadores. No caso do medo, por exemplo, o corpo vai responder
fazendo movimentos de olhos e boca abertos, sobrancelhas elevadas, arrepios na pele, boca
seca e aberta, voz rouca ou falha, pele fria , pálida e suada, elevação do ritmo cardíaco,
etc...
Se o corpo inteiro participa de uma dada emoção, é lícito procurar suas
manifestações no sistema fonador. Ora, sabe-se que os órgãos usados na fonação são em
sua maioria estruturas musculares, flexíveis. Estas estruturas vivem em constante
ajustamento a serviço das intenções do cantor. Como elas se ajustam à fonação sob o
impacto de uma emoção? Segundo Sundberg, a maioria das atividades musculares costuma
estar minimizada na tristeza e depressão. Isso aparece no ritmo diminuído da fala, no baixo
número de harmônicos na voz, o que indica uma baixa atividade dos músculos expiratórios.
Há uma conexão entre a qualidade sonora da voz e a atividade corporal geral dos
indivíduos, com a diferença que os gestos vocais são invisíveis, se revelam muito mais
pela percepção de suas características sonoras.
1 Damasio, Antonio. Em busca de Espinosa: prazer e dor na ciência dos sentimentos. São Paulo: Companhia
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A pergunta que se impõe é: o cantor deve chamar para seu corpo a configuração de
determinada emoção, como parecem indicar Lehmann, Schiǿtz e Berberian e atuar sob o
impacto dela; ou deve apenas evocá-la, tê-la em mente, fazendo uma espécie de falsa
emoção? Damasio mostra interesse em esclarecer esse ponto, e comenta em seu livro O
Erro de Descartes, que perguntou à cantora lírica Regina Resnik, veterana de muitas noites
de cólera e loucura em papéis operísticos, se era difícil separar-se das emoções fortes de
seus personagens. Ela respondeu: “Nada difícil, depois de ter aprendido os segredos da
técnica”. Ela aprendeu a retratar fisicamente uma emoção, dado que estudou o que se vê,
do ponto de vista do outro, quando se observa alguém sob o impacto da raiva, medo,
tristeza, etc...
Dado que as diversas fontes indicam procedimentos diversos, a conclusão é que
ambas as coisas são possíveis: para alguns cantores o aprendizado do corpo que acompanha
uma emoção; para outros, a evocação verdadeira da reação corporal. Neste ponto da
discussão é possível voltar a Die Nacht. A análise apontou o medo como a emoção
principal da canção. Seria possível cantar com proficiência e controle sob a égide das
reações descritas acima (olhos e boca abertos, sobrancelhas elevadas, pele fria e pálida,
arrepios, boca seca, voz falha ou rouca)?
O senso comum diz que não. Mas outras opiniões e caminhos existem. Thomas
Hemsley, no livro Singing and Imagination fala de três exclamações emocionais primitivas,
correspondentes à ajustes da laringe a sentimentos fortes e universais. A primeira refere-se
a emoções de ataque, que acontecem em situações de agressão, desgosto e determinação
(vogal I). A segunda tem a ver com um clima de alegria, repouso e contentamento (vogal
A). A última é o ajuste laríngeo para situações de retirada – medo, apreensão ou
deslumbramento (vogal U). Seguindo o raciocínio do autor, para interpretar Die Nacht, o
cantor deve escolher o posicionamento laringeano da vogal U, que corresponde à
conformação vocal quando se produz um glissando descendente em U, sem o auxílio da
articulação bucal do U. Mantendo esse ajuste nos órgãos vocais, canta-se normalmente, e
se conseguirá, segundo ele, uma qualidade sonora compatível com uma canção cujo clima
emocional começa em melancolia e termina em medo: um timbre comovente, com mais
harmônicos graves, que ajuda no uso da voz de cabeça.
das Letras, 2004.
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Em suma, para interpretar bem Die Nacht, não bastam notas e ritmo corretos, dicção
adequada. Espera-se uma característica na cor da voz que indique o teor de melancolia e
medo observados no poema. O processo usado pelo cantor para conseguir seu objetivo pode
ser ajudado em parte pelo professor que conhece as conformações corporais daquela
emoção. Vários caminhos parecem levar à esse uso: a intuição passiva, a imaginação ativa
ou a construção metódica. Cabe a cada intérprete a reflexão e o autoconhecimento que lhe
auxiliem no melhor caminho.
INFORMAÇÕES GERAIS
Richard Strauss – 1864-1949
Strauss escreveu os Lieder opus 10 em 1885, aos 21 anos, quando era aluno da
Universidade de Munique. Foi apresentado aos versos de Hermann von Gilm por um
amigo.
Hermann von Gilm viveu entre 1812 e 1864. Casou-se pela primeira vez aos 49 anos, tendo
tido um filho aos 50 anos. Morreu alguns anos depois, em 1864, no ano que Strauss nasceu.
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BIBLIOGRAFIA
Alt, David. First the Words, Then the Music: Basic Acting Skills to Enhance the Projection
of song Texts for Beginning Singers. In: The NATS Journal, January/February, 1994.
Bas, Julio. Tratado de la Forma Musical. Buenos Aires: Ricordi Americana, 1947.
Cadwallader, Allen. Agné, David. Analysis of Tonal Music – a Schenkerian Approach.
New York: Oxford University Press, 1998.
Damasio, Antonio R. O erro de Descartes. Emoção, razão e o cérebro humano. São
Paulo: Companhia das Letras, 1996.
________________. Em busca de Espinosa: prazer e dor na ciência dos sentimentos.
São Paulo: Companhia das Letras, 2004.
Gauldin, Robert. Harmonic Practice in Tonal Music. New York: W.W. Norton, 1997.
Lehmann, Lotte. More Than Singing. The Interpretation of songs. New York: Dover,
1985.
Randel, Don Michael, ed.. The New Harvard Dictionary of Music. Londres: Harvard
University Press, 1986.
Sundberg, Johan. The Science of the Singing Voice. Dekalb, Illinois: Northern Illinois
University Press, 1987.
Whittall, Arnold. Form In: Sadie, Stanley. Ed.. The New Grove’s Dictionary of Music
and Musicians. New York: Macmillan 6ª ed. 1980. Vol. 6, pg. 709.
Zagonel, Bernadete. Gesto Musical. Coleção Primeiros Passos. Ed. Brasiliense.