A Fogueira Das Vaidades - Tom Wolfe

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  • 8/18/2019 A Fogueira Das Vaidades - Tom Wolfe

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    A FOGUEIRA DAS

    VAIDADES.

    TOM WOLFE.Romance.Esta obra foi revista sem fins comerciais e destina-se unicamente à leiturade pessoas portadoras de deficiência visual. Por força da lei de direitosde autor, este ficheiro não pode ser distribuído para outros fins, no todoou em parte, ainda que gratuitamente.Revisão:Ana Medeiros.

    Nota: A paginação surge no rodapé.

    A FOGUEIRA DAS VAIDADES Há, pelo menos, um aspecto desta obra que sai inevitavelmente empobrecido da tradução: o dasnotações de pronúncia que, para certas personagens são quase sistemáticas, fazendo o Autorseguir as suas falas de transcrições fonéticas dos sotaques sulistas, negro ou popular de NovaIorque. Estas notações foram, as mais das vezes, suprimidas (excepto no caso dos nomes de pessoas e lugares) e substituídas, quando o contexto o reclamava, por comentários acerca dosotaque cerrado desta ou daquela figura. Procedemos assim por nos parecer artificioso adoptar aoutra solução possível, que consistiria em tentar encontrar correspondentes portugueses para osfalares que o Autor reproduz.

    Tirando-lhe o chapéu, o autor dedica este livro ao Dr. EDDIE HA YES, que atravessou as chamas, apontando as luzes mais débeis. E deseja exprimir o seu profundo reconhecimento a BURT ROBERTS, que foi o primeiro a mostrar-lhe o caminho.

    ÍNDICEPrólogo - Lançado às Feras................................................... 13 1. O Senhor do Universo.......................................................... 21 2. Gibraltar..................................................................... 39 3. O Quinquagésimo Andar............................................... 59 4. O Rei da Selva............................................................. 87 5. A Rapariga do Bâton Castanho......................................... 117 6. Um Condutor de Massas................................................... 153 7. O Peixe na Rede............................................................... 179 8. O Caso............................................................................ 211 9. Um Inglês Chamado Fallow............................................. 229 10. O Triste Almoço de Sábado.............................................. 253 11. As Palavras no Chão........................................................ 271 12. O Último dos Grandes Fumadores.................................... 307 13. A Enguia Eléctrica........................................................... 323 14. Eu Não Sei Mentir............................................................ 349 15. A Máscara da Morte Vermelha.......................................... 375 16. Coisas de Irlandeses......................................................... 409 17. O Banco dos Favores........................................................ 427

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    18. «Shaman»........................................................................ 449 19. Lealdade Irlandesa........................................................... 465 20. Chamadas do Alto............................................................ 473 21. O Fabuloso Koala............................................................ 487 22. Amendoins de Esferovite.................................................. 503 23. No Interior da Cavidade................................................... 547 24. Os Informadores.............................................................. 569 25. Nós, o Júri....................................................................... 585 26. Morte ao Estilo de Nova Iorque........................................ 607 27. O Herói da Colmeia......................................................... 625 28. Desta para Melhor............................................................ 645 29. O Encontro...................................................................... 657 30. Uma Boa Aluna .............................................................. 681 31. Em Cheio no Plexo Solar.................................................. 709 Epílogo.................................................................................... 743

    Prólogo Lançado às Feras — E o que é que nos vão dizer a seguir? Vão dizer: «Esqueçam que têm fome,esqueçam que apanharam um tiro nas costas de um chui racista... O Chuck estevecá? Chuck, vamos lá a Harlem...»

    — Não, deixe-me dizer-lhe... — «Chuck, vamos lá a Harlem e...» — Deixe-me que lhe diga... — Estou mesmo a vê-los dizer: «Chuck, vamos lá a Harlem, fazer alguma coisa pela comunidade negra?» E pronto. Heh-heggggggggggggggghhhhhhhhhhhhhhh!

    E uma dessas horríveis gargalhadas em tom de contralto, algures no meio do público. É um som vindo tão lá do fundo, de baixo de um tão grande número decamadas de gordura, que ele imagina logo qual deve ser o aspecto da criatura.Duzentas libras, no mínimo! Um autêntico monte de banha! A gargalhada dá osinal de partida. — E lá estalam os tais sons ventrais que ele tanto detesta. Começam: — Hehhehheh... annnnhhh — hanhhh... Isso mesmo... Diz-lhes comoé, meu... Rua! Chuck!O insolente — está ali, ali mesmo, na fila da frente — e acaba de lhechamar Charlie! Chuck é o diminutivo de Charlie, e Charlie é o velho nome decódigo para um labrego branco estreito de vistas. Que insolência! Quedescaramento! O calor e o brilho da luz são terríveis. Obrigam omayora semicerrar osolhos. São os projectores da televisão. Ele está no meio de uma névoa ofuscante. Malconsegue distinguir a cara do provocador. Vê uma silhueta muito alta e os ângulos bizarros, ossudos, que os cotovelos do homem desenham quando ele agita as mãos no ar.E um brinco. O homem tem um grande brinco de ouro numa das orelhas. Omayorinclina-se para o microfone e diz:

    — Não, agora quem fala soueu. O.K.?Eu dou-vos os números todos.O.K.? — Nós não queremos os teus números, meu! Meu,diz ele! Que insolência! — Foi você que puxou o assunto, meu amigo. Por issoagora vai ter que ouvir os meus números.O.K.?

    — Não nos venhas chatear mais com os teus números! Nova explosão da turba, desta vezainda mais ruidosa:

    — Annnh — annnh — annnh... Diz-lhes, meu... É assim mesmo... Toma lá, Gober!

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    — Na minha administração (e isto é do conhecimento público) a percentagem deorçamento anual para a cidade de Nova Iorque...

    — Caramba, hooomem — berra o provocador — não te ponhas para aí a aldrabar-noscom os teus números e a tua retórica burocrática! Eles adoram. Aquela insolência! A insolência desencadeia uma nova explosão. Omayor

    espreita através do brilho escaldante das luzes da televisão. Continua a semicerrar osolhos. Apercebe-se de que tem à sua frente uma grande massa de silhuetas. A multidãoavoluma-se. O tecto começa a descer. Está revestido de placas de cor bege. Toda asuperfície das placas está coberta de incisões sinuosas. As bordas estão a desfazer-se.Amianto! É um material que ele reconhece à légua! Os rostos — os rostos estão à esperada festa, à espera da luta. Narizes esmurrados! — a ideia é essa. O instante seguinte écrucial. Ele está à altura da situação! Ele pode bem com provocadores! Só tem cinco pés esete polegadas, mas ainda é melhor naquilo do que o Koch! É omayorda maior cidade doMundo — Nova Iorque! Sim, ele!

    — Muito bem!Já se divertiu bastante, e agora vai estar um minutocalado! Aquilo desconcerta o provocador, que embatuca. Era só isso que omayorqueria. Ele sabecomo actuar.

    — Vocêêêfez-me uma pergunta, não é verdade, e já conseguiu umas boas gargalhadas dasua claque. Portanto agora vai ficarcaladinhoe ouviiira resposta.O.K? 14

    — O que é isso de claque? — O homem perdeu o fôlego, mas continua de pé. — O.K.?Ora aqui tem as estatísticas da sua comunidade, daqui mesmo, de Harlem. — O que é isso de claque? — O sacana agarrou-se à palavraclaquecomo a um osso. — Ninguém come estatísticas, homem. — Diz-lhe, meu... Rua... Rua, Gober! — Deixe-me acabar. Será que vocêêê julga... — Não venha para cá com percentagens do orçamento anual, homem! Nós queremos éemprego! A multidão explode de novo. E pior do que antes. Há muita coisa que ele não percebe — interjeições que não chegam à superfície. Mas há também aquela história do Rua.É umsacana lá ao fundo, com uma voz que se sobrepõe a tudo o resto.

    — Rua, Gober! Rua, Gober! Rua, Gober! Mas não é Gober que ele diz. ÉGoldberg. — Rua, Goldberg! Rua, Goldberg! Rua, Goldberg! Aquilo atordoa-o. Naquele lugar, em Harlem! Goldberg é a alcunha que em Harlem se dáaos judeus. É inconcebível! — vergonhoso! — que alguém lance semelhante grosseria àcara domayorde Nova Iorque! Vaias, assobios, grunhidos, gargalhadas sonoras, gritos. Eles querem ver dentes partidos.

    A situação descontrolou-se.

    — Será que... Não vale a pena. Ele não consegue fazer-se ouvir, nem mesmo com o microfone. O ódionaqueles rostos! Veneno puro! É paralisante.

    — Rua, Goldberg! Rua, Goldberg! Rua, Hymie! Hymie!Que coisa! Agora um berraGoldberg e outro berra Hymie. Então faz-se luz no seu espírito. O Reverendo Bacon! Aquilo é a gente doBacon. Não há dúvida. As pessoas imbuídas de espírito cívico que vêm aos comícios emHarlem — as pessoas com que Sheldon estava encarregado de encher aquela sala — nãoestariam ali a berrar aqueles insultos. Foi Bacon quem fez isto! Bacon mandou para aqui agente dele!

    Uma onda da mais pura autocompaixão submerge omayor.Pelo canto do olho vê asequipas de televisão agitarem-se na névoa de luz. As câmaras saem-lhes das cabeças

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    como chifres. Rodopiam para cá e para lá. Estão a engolir aquilo tudo! Estão ali paraassistir à zaragata! Seriam incapazes de mexer um dedo. Cobardes! Parasitas! Piolhos davida pública! 15 E no instante seguinte apercebe-se de um facto terrível: — Acabou-se. Não posso

    acreditar. Perdi. — Já chega de... Daqui para fora... Uuuuu... Não queremos cá... Rua, Goldberg! Guliaggi, chefe do corpo de segurança à paisana domayor,aproxima-se dele, vindo deum dos extremos do palco. Omayormanda-o recuar com um aceno da mão, sem olhardirectamente para ele. De qualquer maneira, o que é que ele poderia fazer? Só tinhatrazido quatro homens. Não quisera aparecer ali com um exército. A ideia fora mostrarque podia perfeitamente fazer um comício em Harlem, do mesmo modo que os faria emRiverdale ou Park Slope. Na fila da frente, através da névoa, apercebeu-se da presença de Mrs.Langhorn, a mulherde cabelo curto, presidente da comissão de representantes da comunidade, que oapresentara ao público há... o quê? Há meia-dúzia de minutos. Ela franze os lábios,inclina a cabeça e começa a abaná-la. Aquela expressão quer dizer: «Gostava de o poderajudar, mas o que é que eu posso fazer? Olhe a fúria das pessoas!» Oh, ela tem medo,como todos os outros! Ela sabe que devia opor-se a estes elementos! As próximas vítimasvão ser os negros como ela! E esta gente vai persegui-los com a maior das satisfações! Elasabe disso. Mas as boas pessoas estão intimidadas! Não se atrevem a fazer seja o que for!Voltamos à lei da bala! Eles ou nós!

    — Vai para casa! Uuuuuu! Yaghhhhh! Rua! Tenta de novomicrofone. — E assim que... é assim que... Nada a fazer. É como falar com uma parede. Ele quer é cuspir-lhes na cara. Querdizer-lhes que não tem medo. Quem fica mal visto não sou eu! Vocês estão a permitir queuma meia-dúzia de arruaceiros reunidos nesta sala deixem mal vista Harlem inteira!Permitem que dois provocadores me chamem Goldberg e Hymie e não os vaiam aeles — vaiam-me amim!É inacreditável! Será que vocês julgam — vocês, habitantes de Harlemactivos, respeitáveis, tementes a Deus, vocês, Mrs.Langhorn, vocês, pessoas imbuídas deespírito cívico — julgarão mesmo que eles são vossosirmãos?Quem têm sido os vossosamigos ao longo de todos estes anos? Os judeus! E deixam que estes tipos me chamemCharlie!Eles insultam-me desta maneira, e vocês não dizemnada? A sala inteira parecia dar pulos. Eles agitam os punhos. Têm as bocas abertas. Gritam. Sesaltarem um pouco mais alto, saem pelo tecto. Isto vai aparecer na televisão. A cidade inteira vai ver. E vão todos adorar. Harlemamotina-se! Que espectáculo! Não se dirá: os provocadores, os homens de mão e os

    profissionais da arruaça amotinam-se — mas sim: Harlem amotina-se! Toda a NovaIorque Negra se amotina! Ele só émayor para algumas pessoas! É omayorda NovaIorque Branca! Lancem-no às feras! Os Italianos vão ver isto na televisão, e vão adorar. Eos Irlandeses. Até mesmo os WASPs (1). Esses não vão perceber a que é que estão aassistir. Hão-de estar instalados nos seus apartamentos de luxo da Park Avenue, da QuintaAvenida, da Rua 72 e de Sutton Place, e hão-de estremecer com a violência da cena,gozando o espectáculo. Animais! Cabeças ocas! Meninos mimados!Goyim!Vocês nemsequer sabem, pois não? Acham mesmo que esta cidade ainda évossa?Abram os olhos!A maior cidade do século XX! Acham que odinheiroconseguirá fazer com que continuea ser vossa? Desçam dos vossos belos apartamentos, ó administradores de sociedades anónimas, ó

    advogados das grandes companhias! Isto aqui é o Terceiro Mundo! Porto-rique-nhos,antilhanos, haitianos, dominicanos, cubanos, colombianos, hondurenhos, coreanos,

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    chineses, tailandeses, vietnamitas, equadorianos, panamianos, filipinos, albaneses,senegaleses e afro-americanos! Vão visitar as fronteiras, seus cobardolas! MorningsideHeights, St. Nicholas Park, Washington Heights, Fort Tyron — por quê pagar más!OBronx — o Bronx para vocês acabou! Riverdale não passa de um pequeno porto franco, láem cima! Pelham Parkway — mantenham aberto o corredor para Westchester! Brooklyn

    — a vossaBrooklyn já não existe! Brooklyn Heights, Park Slope — pequenas HongKongs, nada mais! E Queens! Jackson Heights, Elmhurst, Hollis, Jamaica, Ozone Park — de quem são? Sabem? E de que modo é que isso afecta Ridgewood, Bayside e ForestHills? Já alguma vez pensaram nisso? E Staten Island! Será que vocês sejulgam a salvo,seus fanáticos do faça-você-mesmo aos fins de semana? Não lhes parece que o futurosaberá atravessar uma ponte?E vocês, WASPs dos bailes de caridade, repimpados nosvossos montes de dinheiro herdado, nos vossos apartamentos de luxo com tectos altos eduas alas, uma para vocês, outra para os criados, estão mesmo convencidos de que ovosso reduto é inexpugnável? E vocês, financeiros judeus alemães que comseguiram

    (1) Sigla de «White Anglo-Saxon Protestam»: Protestante Anglo-Saxónico Branco.(N. do T.)17

    enfim instalar-se nos mesmos edifícios para melhor se isolarem das horas shtetl, julgamestar realmente isolados doTerceiro Mundo? Pobres idiotas! Cabeças de abóbora! Galinhas! Bestas! Esperem só até terem pormayorum Reverendo Bacon, e uma Câmara Municipal e uma Comissão do Orçamento povoadade Reverendos Bacons! Então é que vão ficar a conhecê-los bem, não tenha dúvidas! Eleshão-de os ir visitar! Hão-de os visitar no número 60 da Wall e na Suite Número Um doManhattan Plaza! Hão-de se sentar às vossas secretárias, tamborilando os dedos! Hão-devos limpar o pó aos cofres, e de graça!... Completamente loucas, estas coisas que lhe passam pela cabeça! Absolutamente paranóicas! Ninguém vai eleger Bacon para coisa nenhuma. Ninguém vai invadir a parte baixa da cidade. Ele sabe disso. Mas sente-se tão só! Abandonado! Incompreendido! Eu!

    Esperem até já não me terem amim!Então é que vão ver como é! E deixam-me ficar aquisozinho nesta tribuna, com o maldito tecto de amianto a abater-se sobre a minha cabeça... — Buuuul... Yaggggghhhhh!... Yaaagggghhh! Rua!... Goldberg! Há grande agitação num dos extremos do palco. As luzes da televisão incidem-lhe emcheio na cara. Muitos empurrões e cotoveladas — vê cair um dos operadores de câmara.Alguns daqueles sacanas dirigem-se para as escadas do palco, e a equipa de televisãoatravessa-se no seu caminho. Portanto, passam por cima deles. A empurrar — a empurraralguém pelas escadas abaixo — os seus homens, o corpo de polícias à paisana, ograndalhão, Norrejo — Norrejo está a empurrar alguém pelas escadas abaixo. Um objectoatinge o ombro domayor.Dói como tudo! Ali, no chão — um frasco demayonnaise,umfrasco grande demayonnaise Hellmans.Meio cheio! Meio gasto! Alguém lhe atirou umfrasco meio gasto demayonnaise Hellmans! Nesse momento uma ideia insignificanteinvade-lhe o espírito. Quem, quem, em nome de Deus, é que teria trazido um frascogrande e meio gasto demayonnaise para um comício? Malditas luzes! Há gente em cima do palco... grande agitação... a balbúrdia é completa... Norrejo agarra um matulão pela cintura, enfia-lhe um joelho nas costas e atira-o ao chão.Os outros dois detectives, Holt e Danforth, voltam costas aomayor.Estão curvados,como que para proteger o seu avanço. Guliaggi está mesmo ao seu lado. 18

    — Ponha-se atrás de mim — diz Guliaggi. — Vamos sair por aquela porta. Será possível que ele esteja a sorrir? Parece-lhe ver um sorrisinho no rosto de Guliaggi.Este acena com a cabeça em direcção a uma porta atrás do palco. É atarracado, tem umacabeça pequena, testa baixa, olhos pequenos e juntos, nariz achatado, uma grande bocamaldosa encimada por um bigo-dinho. Omayornão desvia os olhos daquela boca. Será

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    um sorriso? Não pode ser, e daí talvez seja. Aquele estranho esgar cruel dos seus lábios parece dizer: «Até agora foste tu a mandar na festa, mas agora sou eu.» Seja como for, o sorriso resolve a questão. Omayor,qual Custer, abandona o seu posto decomando na tribuna. Entrega-se àquele rochedo. Agora os outros também se aproximam, Norrejo, Holt, Danforth. Rodeiam-no como os quatro cantos de um cercado. O palco está

    cheio de gente. Guliaggi e Norrejo abrem caminho através da multidão, à força demúsculo. Omayoravança colado a eles. Vê rostos ferozes a toda a sua volta. A escassosdois pés de distância, uma criatura não pára de saltar e berrar: — Seu mariquinhas decabelos brancos! Seu mariquinhas de cabelos brancos! De cada vez que o filho da mãe dá um salto, omayorvê-lhe os olhos arregalados, cor demarfim, e a enorme maçã de Adão. É mais ou menos do tamanho de uma batata doce.

    — Seu mariquinhas de cabelos brancos! — O homem não se cala. — Seu mariquinhas decabelos brancos! E, mesmo à sua frente, o grandalhão provocador em pessoa! O dos cotovelos ossudos e do brinco! Guliaggi está entre omayore o provocador, mas o provocador é muito maior que Guliaggi. Deve ter uns seis pés e cinco polegados. Começa a berrar, bem na cara domayor.

    — Volta para...Uf! De repente, o grande filho da mãe encolhe-se, de boca aberta e olhos esgazeados.Guliaggi atingiu-o no sexo com o cotovelo e o antebraço. Guliaggi alcança a porta, e abre-a. Omayorsegue-o. Sente que os outros detectives oempurram de trás. Apoia-se nas costas de Guliaggi. Aquele homem é um rochedo! Estão a descer uma escada. Os seus passos produzem um ruído metálico. Ele continuainteiro. Nem sequer tem a multidão atrás dos calcanhares. Está em segurança... e cai-lhe ocoração aos pés. Eles nem tentaram segui-lo. A verdade é que nunca quiseram tocar-lhe.E neste momento... ele percebe.Percebe antes ainda de o seu cérebro conseguir ordenaras ideias.

    — Fiz o contrário do que devia ter feito Cedi àquele sonsinho. Entrei em pânico. Estátudo perdido... 20

    1 O Senhor do Universo Nesse preciso instante, num desses apartamentos de luxo da Park Avenue que tantoobcecavam omayor...tectos altos... duas alas, uma para os proprietários Brancos,Anglo-Saxónicos e Protestantes, e outra para os criados... Sherman McCoy estavaajoelhado no átrio a tentar pôr a trela a umdachsund.O pavimento era de mármore

    verde-escuro, e estendia-se a perder de vista. Conduzia a uma escadaria de nogueira decinco pés de largura que, numa curva sumptuosa, dava acesso ao andar de cima. Era o tipode apartamento cuja simples descrição basta para atear incêndios de inveja e cobiça noshabitantes de Nova Iorque inteira como, aliás, do mundo inteiro. Mas Sherman só queriaera sair daqueles seus fabulosos domínios por meia hora. Por isso ali estava, de joelhos, a lutar com um cão. Odachsundera, pensava ele, o seuvisto de saída. Quem olhasse para Sherman McCoy assim agachado e vestido como estava, de camisaaos quadrados, calças caqui e sapatos de vela, não adivinharia com certeza a que ponto asua figura costumava ser imponente. Ainda jovem... trinta e cinco anos... alto... quase seis pés e uma polegada... um aprumo incrível... incrível ao ponto de se tornar dominador...tão dominador como o pai, o Leão da Dunning Sponget... uma cabeleira intacta, de umcastanho alourado... nariz afilado... queixo proeminente... Tinha orgulho no seu queixo. O

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    queixo dos McCoys; igual ao do Leão. Era um queixo másculo, um queixo grande e redondo como costumavam ser os dos homens deYale nos desenhos de Gibson e Leyendecker, um queixo aristocrático, se querem saber aopinião de Sherman. Ele também era um homem de Yale. Mas naquele momento toda a sua atitude se esforçava por dizer: «Eu só vou levar o cão a

    passear.» Odachsund parecia saber o que esperava. Esquivava-se constantemente à trela. As pernascambadas do animal transmitiam uma impressão enganadora. Quando se tentavadeitar-lhe a mão, transformava-se num cilindro de dois pés de comprimento, todo elemúsculo. Na sua luta com ele, Sherman desequilibrou-se para a frente. E aodesequilibrar-se, bateu com a rótula no pavimento de mármore e a dor irritou-o.

    — Vá lá, Marshall — resmungou. — Pára quieto, que diabo. O animal tornou a esquivar-se, ele tornou a magoar o joelho, e a sua irritação abrangeunão só o cão mas também a sua mulher. Fora a ilusão da mulher de que faria carreiracomo decoradora de interiores que estivera na origem daquele espalhafatoso revestimentode mármore. A pequena biqueira forrada de gorgorão de um sapato de mulher... ... ela estava ali.

    — Vejo que te estás a divertir, Sherman. Mas o que é que estás a fazer, pode saber-se? Sem olhar para cima: — Vou levar o Marshall a passea-a-a-ar. Passearsoou como um gemido, porque odachsundtentou libertar-se, manobrando com acauda, e Sherman viu-se obrigado a agarrá-lo com toda a força pela barriga.

    — Sabes que está a chover? Ainda sem olhar para cima: — Sei, sei. — Conseguiu, finalmente, prender a trela à coleirado animal.

    — De repente puseste-te muito simpático para o Marshall. Espera lá.Seria aquilo ironia? Suspeitaria ela de alguma coisa? Olhou para cima. Mas o sorriso dela era obviamente genuíno, perfeitamente agradável... um sorrisoencantador, aliás...Ainda é bastante atraente, a minha mulher...com as suas feiçõesdelicadas, os seus grandes olhos, de um azul muito límpido, a sua farta cabeleiracastanha... Mas tem quarenta anos!...Contra isso, nada a fazer!... Hojeatraente...Amanhã dirão dela que está muitobem conservada...A culpa não é dela... Mas tambémnão é minha! 22

    — Tive uma ideia — disse ela. — Porque é que não me deixas a mim levar o Marshalla passear? Ou então pedir ao Eddie que o leve. Tu podias ir lá acima ler uma história àCampbell antes que ela adormeça. Ela ia adorar. É muito raro chegares tão cedo a casa.Porque é que não fazes isso? Ele olhou-a fixamente. Não era um estratagema! Ela estava

    a ser sincera! No entanto, zip zip zip zip zip zip zip,com dois ou três golpes certeiros, duasou três pequenas frases, ela tinha-o...atado de pés e mãos! — nos laços da culpa e dalógica!E sem fazer o menor esforço! O facto de Campbell estar deitada na sua caminha... A minha única filha! — a perfeitainocência de uma criança de seis anos! — ansiosa por que ele lhe lesse uma história paraadormecer... enquanto ele... estava ali a fazer sabe-se lá o quê...O remorso!...O facto degeralmente chegar a casa tarde demais para a ver... Remorsos sobre remorsos!...Eleadorava Campbell! — amava-a mais que tudo neste mundo!... E, para tornar as coisasainda piores — a lógica daquilo tudo!A doce esposa que ele agora fitava acabava defazer uma sugestão ponderada e carinhosa, uma sugestão lógica... tão lógica que odeixava sem fala! Não havia no mundo mentiras que bastassem para vencer uma tal

    lógica! E ela estava apenas a esforçar-se por ser simpática! — Vá lá — dizia — a Campbell vai ficar tão contente...

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    Eu trato do Marshall. O mundo estava de pernas para o ar. O que estava ele, um Senhor do Universo, a fazer aliacocorado no chão, reduzido a ter de dar voltas à cabeça em busca de mentiras paracontornar a doce lógica da mulher? Os Senhores do Universo eram uma colecção desinistros e cruéis bonecos de plástico com que a sua filha, em tudo o resto perfeita,

    gostava de brincar. Pareciam deuses noruegueses praticantes de halterofilismo, e tinhamnomes como Dracon, Ahor, Mangel-red e Blutong. Eram de um invulgar mau gosto,mesmo para bonecos de plástico. Porém, um belo dia, num acesso de euforia, depois deter atendido uma chamada telefónica e recebido uma encomenda de obrigações que lhe proporcionara, assim sem mais nem menos, uma comissão de 50000 dólares, fora precisamente aquela expressão que lhe viera à cabeça. Em Wall Street, ele e mais algunsoutros — quantos? — Trezentos, quatrocentos, quinhentos? — tinham-se convertido justamente nisso... em Senhores do Universo. Não havia, para eles, quaisquer limites! Naturalmente, ele nunca dissera, ou segredara sequer, aquilo a quem quer que fosse. Nãoera nenhum idiota. Mas a expressão não lhe saía da 23 cabeça. E ali estava o Senhor do Universo, no chão, ao lado do cão, atado de pés e mãos pela doçura, pelo remorso e pela lógica... Porque é que ele, um Senhor do Universo, não podia simplesmenteexplicar-lheo que se passava? «Olha, Judy, eu ainda te amo e amo anossa filha, e a nossa casa e a nossa vida, e não quero perder nenhuma destas coisas — mas a verdade é que eu, um Senhor do Universo, um homem ainda novo, ainda cheio deseiva, mereço de vez em quandomaisdo que isso, quando a energia transborda...» ... mas sabia que nunca seria capaz de formular por palavras semelhante pensamento.Portanto o ressentimento começou a fervilhar-lhe no cérebro... De certo modo, a culpa foidela, não é verdade... Essas mulheres cuja companhia ela agora tanto parece apreciar...essas... essas... A designação vem-lhe à cabeça de repente, nesse preciso instante:radiografias mundanas...São tão magras que parecem radiografias... A luz doscandeeiros atravessa-lhes os ossos... enquanto conversam acerca deinteriorese dearquitectura paisagística...e enfim as canelas escanzeladas emmaillotstubulares deLycra de tons metálicos para a aula de ginástica... E não ficam melhor por isso, podem tera certeza!... Olha como a pele da cara e do pescoço dela parece esticada... Shermanconcentrou-se naquela cara e naquele pescoço...esticada,não há dúvida... aulas deginástica... está a tornar-se umadessas... Conseguiu fabricar uma dose suficiente de ressentimento para despertar o famoso maugénio dos McCoys. Sentiu subir-lhe o calor às faces. Inclinou a cabeça e disse: — Juuuuuuudy... — Era um berro que os seus dentes abafavam. Uniu o polegar e os dois primeiros dedos da mão

    esquerda, e ergueu-os à altura dos maxilares cerrados e dos olhos furiosos, dizendo:

    — Ouve... Eu-meti-na-cabeça-que-ia-passear-o-cão... Por issovou-mesmo-passear-o-cão... Está bem? A meio da frase, percebeu que a sua reacção era perfeitamente despropositada... mas nãoconseguiu conter-se. Era, afinal, esse o segredo do mau génio dos McCoys... na WallStreet... em toda a parte... o excesso imperioso. Judy cerrou os lábios. Abanou a cabeça.

    — Por amor de Deus, faz o que quiseres — disse, num tom neutro. Depois virou-lhe ascostas, atravessou o átrio de mármore e subiu a sumptuosa escadaria. Ainda de joelhos, Sherman olhou-a, mas ela não olhou para trás. Por amor de Deus, faz oque quiseres.Ele

    24 esmagara-a. Com a maior facilidade. Mas era uma vitória

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    oca. Mais um espasmo de remorso... O Senhor do Universo pôs-se de pé e conseguiu enfiar o impermeável sem largar a trela.Era uma velha mas excelente gabardina inglesa, revestida de borracha, cheia de palas,correias e fivelas. Comprara-a no Knoud, na Madison Ave-nue. Em tempos, aquele seu ar

    usado parecera-lhe perfeito, tal como, algum tempo antes, a moda do Sapato Roto deBoston. Agora a gabardina já não o entusiasmava tanto. Puxou odachsund pela trela esaiu da entrada para o vestíbulo do elevador, onde carregou no botão. Para não pagarem 200000 dólares por ano aos irlandeses de Queens e aos porto-riquenhosdo Bronx que, por turnos, asseguravam o funcionamento dos elevadores vinte e quatrohoras sobre vinte e quatro horas, os condóminos haviam decidido, dois anos antes,instalar elevadores automáticos. Naquela noite isso agradou especialmente a Sherman.Vestido como estava, com aquele cão a debater-se na ponta da trela, não lhe apetecia partilhar o elevador com um ascensorista trajado como um coronel do exército austríacode 1870. O elevador iniciou a descida — e deteve-se dois andares mais abaixo. Browning.A porta abriu-se, dando entrada à figura de bochechas flácidas de Poleard Browning.Browning olhou da cabeça aos pés Sherman, o seu trajo campestre e o seu cão e disse,sem a sombra de um sorriso: — Olá, Sherman. Aquele «Olá, Sherman» veio muito lá do alto, e em apenas três sílabas transmitiu amensagem: «Tu, as tuas roupas e o teu animal são um insulto ao nosso novo elevadorrevestido de mogno.» Sherman ficou furioso, mas apesar disso deu por si a inclinar-se para pegar no cão aocolo. Browning era presidente da associação de condóminos do prédio. Era um rapaz de Nova Iorque que saíra do ventre da mãe já com a aparência de um sócio cinquentão daDavis Polk e presidente da Downtown Association. Só tinha quarenta anos, mas já hávinte que parecia ter cinquenta. Penteava para trás o cabelo, que lhe modelava docilmenteo crânio redondo. Vestia umblazerimaculado, uma camisa branca, uma gravata aosquadradinhos pretos e brancos, e não trazia gabardina. Ficou voltado para a porta doelevador, depois virou a cabeça, deu mais uma olhadela a Sherman, não disse nada, etornou a voltar-se para a porta. 25 Sherman conhecia-o desde rapaz, pois tinham sido colegas na Buckley School. Browningera então um pequeno snobgordo, convencido e dominador, que com nove anos de idadearranjara maneira de divulgar a espantosa notícia de que McCoy era um nome parolo (euma família de parolos), como se via pelas lojas Hatfields & McCoys, enquanto ele próprio Browning, era um perfeito aristocrata. Costumava chamar a Sherman «Sherman

    McCoy, o Rapaz das Montanhas».

    Quando chegaram ao rés-do-chão, Browning disse: — Sabes que está a chover, nãosabes?

    — Sei. Browning olhou para odachsunde abanou a cabeça. — Sherman McCoy. Amigo domelhor amigo do homem. Sherman sentiu uma vez mais subir-lhe o calor às faces. E disse: — Só isso?

    — Isso o quê? — Tiveste o tempo todo desde o oitavo andar até aqui para pensares numa fraseinteligente, e afinal sai só isso? — Pretendia que o comentário fosse um sarcasmoamigável, mas percebeu que deixara transparecer parte da sua irritação.

    — Não sei de que é que estás a falar — disse Browning, e passou-lhe à frente. O porteirosorriu, inclinou a cabeça e abriu a porta para lhe dar passagem. Browning dirigiu-se para o

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    carro, sempre debaixo do toldo da entrada. O motorista abriu-lhe a porta do automóvel. Nem uma gota de chuva atingiu a sua silhueta impecável, e o carro desapareceu,suavemente, imaculadamente, no enxame de faróis vermelhos que descia a Park Avenue. Nenhuma gabardina coçada pesava inutilmente nos ombros lisos e roliços de PollardBrowning.

    Afinal, chovia muito pouco e não havia vento, mas odachsundnão queria saber disso.Começou a debater-se nos braços de Sherman. A força que aquele sacana tinha! — Pousou-o na passadeira, debaixo do toldo, e depois saiu para a chuva, com a ponta da trelana mão. No escuro, os prédios do outro lado da rua formavam uma serena muralha negraque se destacava sobre o céu da cidade, de um intenso tom de púrpura. Este cintilava,como que ardendo em febre. Que diabo, não se estava assim tão mal ali fora. Sherman puxou, mas o cão fincou asunhas na passadeira.

    — Anda, Marshall. ■ . O porteiro estava à entrada do prédio, a observá-lo.

    — Acho que a ideia não lhe agrada muito Ar. McCoy. 26

    — A mim também não, Eddie. — E deixa lá passar o comentário, pensou Sherman. — Anda, anda, anda, Marshall. Então já Sherman estava à chuva, a dar fortes puxões à trela, mas odachsundnão semexia. Portanto pegou nele, tirou-o da passadeira de borracha e pousou-o no passeio. Ocão tentou fugir para a porta de casa. Sherman tinha de lhe manter a trela curta, senãovoltava ao ponto de partida. Agora puxava ele para um lado e o cão para o outro, com atrela esticada entre os dois. Era uma medição de forças entre um homem e um cão... em plena Park Avenue. Que raio, porque é que o porteiro não voltava para dentro do prédio, como lhe competia? Sherman deu um forte sacão à trela. Odachsunddeslizou algumas polegadas no passeio.Ouviam-se as unhas do animal a raspar no chão. Bom, se ele puxasse com forçasuficiente, talvez o cão desistisse e começasse a andar só para não ser arrastado.

    — Anda, Marshall!Vamos só dar a volta ao quarteirão! Deu mais um sacão à trela e depois continuou a puxá-la com toda a força. O cão deslizoumais uns dois pés. Deslizou! Andar é que não andava. Não desistia. O centro de gravidadedo animal parecia estar no centro da Terra. Era como tentar puxar um trenó carregado detijolos. Meu Deus, se ao menos ele conseguisse dobrar a esquina. Era só o que queria.Porque seria queas coisas mais simples...Deu mais um puxão à trela e continuou ainsistir. Estava inclinado como um marinheiro numa tempestade. Começava a ter calor,

    com o seu impermeável de borracha. A chuva escorria-lhe pela cara. Odachsundfincavaas patas no passeio. Tinha os músculos peitorais todos contraídos. Puxava com toda agana. Retesava o pescoço o mais que podia. Pelo menos não ladrava, graças a Deus! Deslizava. Nossa Senhora, ouvia-se a léguas! Ouviam-se as unhas do cão a raspar o passeio. Ele não cedia uma polegada. Sherman tinha a cabeça inclinada, os ombroscurvados, e ia arrastando o animal na chuva e na escuridão de Park Avenue. Sentia achuva a molhar-lhe a nuca. Agachou-se e pegou no cão ao colo, e ao fazê-lo entreviu Eddie, o porteiro. Ainda a olhar!O cão começou a espernear e a debater-se. Sherman tropeçou. Olhou para baixo. A trelaenrodilhara-se-lhe nas pernas. Avançou pelo passeio, tentando desembaraçar-se.Finalmente, conseguiu virar a esquina e chegar ao telefone público. Pousou o cão no

    passeio. Meu Deus! Quase ia fugindo! Sherman agarra a trela mesmo a tempo. Está asuar. Tem o cabelo encharcado de

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    27 água da chuva. O coração a bater-lhe violentamente. Enfia uma das mãos na argola datrela. O cão continua a espernear. A trela enrola-se de novo nas pernas de Sherman. Ele pega no auscultador, entala-o entre o ombro e o ouvido, revolve o bolso em busca de umamoeda, enfia-a na ranhura e marca o número.

    Três toques, e uma voz de mulher: — Está? Mas não era a voz de Maria. Pensou que deviaser Germaine, a amiga a quem ela subalugara o apartamento. Por isso disse: — Possofalar com a Maria, por favor? A mulher disse: — Sherman? És tu? Meu Deus! É Judy! Eleligou para o seu próprio apartamento! Está aturdido — paralisado! — Sherman? Desliga o telefone. Oh, meu Deus. O que é que há-de fazer? Fingir que não foi nada.Quando Judy lhe perguntar, dirá que não sabe de que é que ela está a falar. Afinal decontas, só pronunciou cinco ou seis palavras. Como é que ela pode ter a certeza? Mas não ia servir de nada. Ela ia ter a certeza, sabia-o. Além disso, ele não tinha jeitonenhum parabluffs.Ela ia perceber logo. Mas que outra coisa poderia ele fazer? Ficou ali à chuva, no escuro, ao pé do telefone. A água infiltrara-se-lhe no colarinho dacamisa. Ofegava. Tentava imaginar a cena penosa que teria de enfrentar. O que é que eladiria? O que é que ela faria? Estaria muito zangada? Desta vez tinha alguma coisa em quese apoiar. Estava no pleno direito de fazer uma cena, se quisesse. Ele fora realmenteestúpido. Como é que pudera fazer uma coisa daquelas? Começou a recriminar-se. Já nãoestava zangado com Judy. Conseguiria fingir que não se passara nada, ou será que destavez tinha estragado tudo? Tê-la-ia realmente magoado? Nesse instante Sherman apercebeu-se de que um vulto se aproximava, pelo passeio, nassombras negras e húmidas das casas e das árvores. Mesmo a cinquenta pés de distância, eàs escuras, compreendeu logo. Era aquela inquietação constante que vive na base docrânio de todos os residentes de Park Avenue a sul da Rua Noventa e Seis — um rapaznegro, alto, magro, de sapatos de ténis. Agora estava a quarenta pés de distância, a trinta ecinco. Sherman olhou-o fixamente. Bom, ele que venha, se quiser! Eu é que não saiodaqui! Estou no meu território! Não vou dar passagem a vadios! O rapaz negro fez repentinamente uma inflexão de noventa graus e atravessou a rua,mudando de passeio. A 28 pálida luz amarela de um candeeiro público de vapor de sódio incidiu-lhe por instantes norosto, enquanto se afastava de Sherman. Tinha atravessado! Que sorte! Nem de longe passou pela cabeça de Sherman McCoy que o que o rapaz vira fora umhomem branco de trinta e oito anos, ensopado, envergando uma espécie de gabardina deaspecto militar, cheia de correias e fivelas, com um animal ao colo que se debatiaviolentamente, de olhar fixo, olhos esgazeados e a falar sozinho. Sherman deixou-se ficar ao pé do telefone, respirando muito depressa, quase ofegante. Oque é que havia de fazer agora? Sentia-se tão derrotado que bem podia voltar para casa.Mas se voltasse já, a coisa seria demasiado óbvia, não é verdade? Não saíra para levar ocão a passear mas sim para fazer uma chamada. Além disso, fosse o que fosse que Judylhe ia dizer, ele não estava preparado para a ouvir. Precisava de pensar. Precisava que oaconselhassem. Precisava de tirar da chuva aquele animal intratável. Portanto tirou do bolso mais uma moeda e pensou no número de telefone de Maria.Concentrou-se nesse número. Repetiu-o até não lhe restarem dúvidas. Depois marcou-ocom uma determinação lenta e firme, como se se servisse pela primeira vez daquelecurioso invento, o telefone.

    — Está lá? — Maria?

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    — Sim? Sem querer arriscar: — Sou eu.

    — Sherman? — O nome soou Shahhh-man. Sherman sossegou. Era Maria, sim. O seusotaque sulista convertia metade das vogais em «as» fechados, e a outra metade em «is» breves. Transformavabirdsembads, pensem pins, bombsembamse envelopesem

    invilups. — Olha — disse — vou já para aí. Estou numa cabina telefónica, a dois ou trêsquarteirões da tua casa. Houve uma pausa, que ele interpretou como sinal de que Maria estava irritada. E, por fim:

    — Onde é que estiveste metido este tempo todo? Sherman riu sem vontade. — Olha, eu vou já para aí. A escada do prédio abanou e rangeu sob os passos de Sherman. Em cada patamar, umtubo fluorescente circular de 22conhecido como Auréola do Senhorio, projectava nas paredes, de um tom Verde de Renda Limitada, uma luz débil, de um azul tuberculoso.Sherman passou por portas de 29 apartamentos com inúmeras fechaduras, empilhadas umas por cima das outras, emcolunas ébrias. Havia chapas antiali-cates nas fechaduras, placas antipés-de-cabra nasombreiras e revestimentos antiarrombamentos nas almofadas das portas. Nos momentos felizes em que Rei Príapo dominava sem crises nos seus domínios,Sherman saboreava romanticamente aquela subida até ao apartamento de Maria. Que boémio! Que... queautêntico,aquele lugar! Perfeitamente adequado àqueles momentosem que o Senhor do Universo se despojava da sua soturna correcção de Park Avenue eWall Street e oferecia uma farra às suas hormonas selvagens! O quarto de Maria, com umarmário a fazer de cozinha e outro a fazer de casa de banho, aquele suposto apartamentonas traseiras do quarto andar, que ela subalugara à sua amiga Germaine — bom, era perfeito. De Germaine já não diria o mesmo. Sherman vira-a duas vezes. Tinha umasilhueta que fazia lembrar uma boca de incêncio. Ostentava, no lábio superior, uma franjade pêlos hirsutos, praticamente um bigode. Sherman estava convencido de que eralésbica. E então? Tudo aquilo era autêntico! Esquálido! Nova Iorque! Um fogo adevorar-nos as entranhas. Mas nesta noite Príapo não reinava. Esta noite o aspecto lúgubre da velha pedra castanhado prédio pesava ao Senhor do Universo. Só odachsundestava feliz. Ia roçando a barriga pelas escadas, subindo a um ritmo alegree satisfeito. Aquele sítio era quente e seco, e conhecido. Quando Sherman chegou à porta de Maria, ficou surpreendido ao reparar que estava semfôlego. Transpirava. Tinha o corpo absolutamente encharcado sob a gabardina, a camisa

    aos quadrados e aT-shirt.

    Antes que tivesse tempo de bater à porta, esta abriu-se alguns centímetros; e ela apareceu. Não abriu mais a porta. Deixou-se ali estar, examinando Sherman dos pés à cabeça, comose estivesse zangada. Os olhos brilhavam-lhe acima dos malares excepcionalmentesalientes. O cabelo curto parecia um capuz negro. Tinha os lábios franzidos, formandoum O. Mas logo a seguir abriu-os num sorriso e começou a rir baixinho, fungando pelonariz.

    — Então, vá lá — disse Sherman — , deixa-me entrar! Espera até eu te contar o queaconteceu. Maria abriu a porta de par em par, mas em vez de lhe dar passagem encostou-se àombreira, traçou as pernas e cruzou os braços por baixo dos seios, sem parar de olhar para

    ele 30

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    nem de rir. Calçava sapatos de salto alto de tiras de pele entrançadas, formando um padrão de xadrez preto e branco. Sherman não sabia muito acerca de modelos de sapatos,mas tomou nota de que aquele estava na moda. Vestia uma saia branca e justa de tecido degabardina, muito curta, umas boas quatro polegadas acima do joelho, deixando ver as pernas, que aos olhos de Sherman eram como as de uma bailarina, e sublinhando a sua

    cintura finíssima. Vestia ainda uma blusa de seda branca, desabotoada até ao início dacurva dos seios. A luz do minúsculo átrio era de molde a pôr em relevo toda a sua figura:o cabelo escuro, as maçãs do rosto, as feições delicadas, a curva generosa dos lábios, a blusa macia, aqueles seios macios como pudins, as pernas reluzentes, tãodespreocupadamente cruzadas.

    — Sherman... — Shahhh-man. — Sabes que mais? Estás giro. Pareces o meu irmão maisnovo. O Senhor do Universo não ficou muito satisfeito, mas resolveu entrar, dizendo, ao passar por ela: — Oh, meu Deus. Espera até eu te contar o que aconteceu. Sem mudar de posição, ainda encostada à ombreira, Maria olhou para o cão, que farejavaa alcatifa. — Olá, Marshall.Pareces um chouriço molhado, Marshall.

    — Espera até eu te contar... Maria desatou a rir e fechou a porta. — Sherman... parece que alguém teamachucou — ao dizer isto, amachucou um papel imaginário — e te atirou para o chão.

    — É exactamente o que eu sinto. Deixa-me contar-te o que aconteceu.

    — Tal e qual o meu irmão mais novo. Todos os dias voltava da escola com o umbigo à mostra. Sherman baixou os olhos. Era verdade. Tinha a fralda da camisa de fora, e o umbigo àmostra. Tornou a enfiar a camisa para dentro das calças, mas não tirou a gabardina. Nãose podia instalar. Não podia passar ali muito tempo. E não sabia como explicar isso aMaria.

    — Todos os dias o meu irmão andava à luta na escola... Sherman deixou de prestaratenção. Estava farto do irmão mais novo de Maria, não tanto por aquela conversa quererdizer que ele Sherman, era infantil, mas por ela se mostrar tão insistente. À primeira vista,Sherman nunca achara que Maria correspondesse à ideia que habitualmente se faz de umarapariga do Sul. Parecia mais italiana ou grega. Mas falava como uma rapariga do Sul.Era uma tagarelice impossível de conter. Ainda continuava a falar do irmão quandoSherman disse: 31

    — Sabes, agora mesmo telefonei-te de uma cabina. E queres saber o que me aconteceu? Maria voltou-lhe as costas e deu alguns passos até ao meio do apartamento; depois girou

    sobre os calcanhares e pôs-se em pose,com a cabeça pendente para um dos lados, as mãosnas ancas, um sapato de salto alto descontraidamente inclinado para fora, os ombrosdescaídos e as costas ligeiramente arqueadas, projectando para a frente os seios, e disse:

    — Não vês nada de novo? De que diabo estaria ela a falar? Sherman não estava com disposição para coisas novas.Mas examinou-a com aplicação. Seria o penteado? Uma jóia nova? Santo Deus, o maridoenchia-a de jóias a tal ponto que era difícil saber o que era ou não era novo. Não, devia seralguma coisa no quarto. Olhou à sua volta. Aquele quarto fora provavelmente concebidocomo quarto de criança, há uns cem anos ou mais. Havia uma pequena sacada com três janelas de caixilhos metálicos, e um banco corrido diante das janelas. Observou osmóveis... as mesmas três cadeiras de baloiço a mesma deselegante mesa pé-de-galo de

    carvalho, a mesma combinação de colchão e suporte de molas, coberta por uma colcha develudo que, juntamente com três ou quatro almofadas estampadas, procurava dar-lhe um

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    ar de divã. Toda aquela sala proclamava: Objectos em Segunda Mão. E, em todo o caso,não estava mudada. Sherman abanou a cabeça.

    — Não reparaste ainda? — Maria acenou com a cabeça na direcção da cama. Sherman viu então, em cima da cama, um pequeno quadro com uma moldura simples, de

    madeira clara. Aproximou-se mais. Representava um homem nu, visto de costas,delineado a preto, em pinceladas grosseiras que mais pareciam de uma criança de oitoanos, partindo do princípio de que uma criança de oito anos se lembraria de pintar umhomem nu. O homem parecia estar a tomar duche, ou pelo menos via-se acima da suacabeça aquilo que aparentemente era um chuveiro, e de onde partiam alguns riscos negrosintermitentes. Parecia estar a tomar duche de gasolina. A pele do homem era castanhacom manchas de um rosa-arroxeado doentio, como se tivesse sofrido queimadurasgraves. Que coisa horrível... Que pavor... Mas exalava o aroma sagrado da arte séria, portanto Sherman não se atreveu a dar candidamente a sua opinião. — Onde é que arranjaste isto? — Gostas? Conheces a obra dele? — A obra de quem? — Filippo Chirazzi. — Não, não conheço a obra dele. Ela sorriu. — Saiu há dias um artigo só sobre ele, no Times. Não querendo fazer o papel do filisteu da Wall Street, Sherman retomou o seu examedaquela obra-prima.

    — Bom, tem uma certa... como hei-de dizer?... franqueza. — Lutou contra uma enormevontade de ser irónico. — Onde é que o arranjaste?

    — Filippo deu-mo — disse muito satisfeita. — Foi generoso da parte dele. — O Arthurcomprou-lhequatro quadros, quatro telas enormes.

    — Mas ele não ofereceu o quadro ao Arthur, ofereceu-to a ti. — Eu quis um para mim. Os grandes são do Arthur. Além disso, o Arthur não saberiasequer da existência de Filippo se eu não lhe tivesse falado nele. A! A!

    — Não gostas, pois não? — Gosto, sim senhor. Para te dizer a verdade, ainda estou atordoado. Acabo de fazer umacoisa tão incrivelmente estúpida!

    Maria desistiu da sua posee sentou-se na beira da cama, do projecto-de-divã, como sedissesse: «Está bem, sou toda ouvidos». Cruzou as pernas. A saia subia-lhe agora atémeio da coxa. Embora aquelas pernas, aquelas magníficas pernas e flancos de Maria nãoviessem agora ao caso, Sherman não conseguia desviar delas os olhos. As meiasfaziam-nas brilhar. Reluziam. Cada movimento fazia surgir novas zonas de luz. Sherman permaneceu de pé. Não tinha muito tempo, como se preparava para explicar.

    — Levei o Marshalla dar um passeio. — Marshallestava agora estendido no tapete. — Estava a chover. O cão fez todos os possíveis por me complicar a vida. Quando chegou à parte do telefonema propriamente dito, a narração bastou para o deixarde novo muitíssimo agitado. Reparou que Maria dominava muito bem a sua inquietação,se é que inquietação havia, mas não conseguiu acalmar-se. Mergulhou na substância

    emocional do problema, descrevendo aquilo que sentira imediatamente após ter desligadoo telefone — e Maria interrompeu-o com um

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    encolher de ombros e uma pequena bofetada no ar com as costas da mão: — Oh, isso não tem importância, Sherman. Ele ficou a olhar para ela. — Foi só um telefonema. Não percebo porque é que não disseste logo: «Oh, desculpa.Queria telefonar à minha amiga Maria Ruskin». Era o que eu tinha feito no teu lugar. Nunca me dou ao trabalho de mentir ao Arthur. Não lhe conto tudo, mas também não lhe

    minto. Poderia ele ter adoptado uma estratégia tão audaciosa? Tentou imaginar a cena. — Uhmmmmmmmmmrnmmrn! — O resultado foi um grunhido. — Não sei como é que posso sair de casa às 9.30, dizendo que vou passear o cão, e depois agarrar no telefone edizer: «Oh, desculpa, afinal o que eu vim fazer foi telefonar a Maria Ruskin.»

    — Sabes qual é a diferença entre ti e mim, Sherman? É que tu tens pena da tua mulher, eeu não tenho pena do Arthur. O Arthur faz setenta e dois anos em Agosto. Quando casoucomigo já sabia que eu tinha os meus amigos, de quem ele não gostava, e ele os seusamigos, de quemeu não gostava. Não os suporto. Todos aquelesYidscaquéticos... Nãoolhes para mim como se eu tivesse dito alguma coisa horrível! O Arthur é que lhes chamaassim: osYiddim,os goyim,e eu sou uma shiksa. Nunca tinha ouvido estas palavras antesde casar com o Arthur. Quem está casada com um judeu sou eu, não és tu, e nos últimoscinco anos já tive de engolir tanta conversa de judeus que bem posso servir-me do queaprendi, se me apetecer.

    — Disseste-lhe que alugaste este apartamento? — Claro que não. Já te expliquei; eu não lhe minto, mas também não lhe conto os pormenores todos. — Então isto é um pormenor? — Não é uma coisa tão séria comotu julgas. É só uma fonte de chatices. O senhorioresolveu fazer barulho outra vez. Maria pôs-se de pé, foi até à mesa, agarrou numa folha de papel, que estendeu a Sherman,e tornou a sentar-se na beira da cama. Era uma carta da firma de advogados Golan,Shander, Morgan e Greenbaum endereçada a MissGer-maine Boll e referente à suasituação enquanto arrendatária de um apartamento de renda limitada pertencente a WinterReal Properties, Inc. Sherman não conseguia concentrar-se no conteúdo da carta. Nãoqueria pensar naquilo. Estava a fazer-se tarde. Maria continuava a esquivar-se sempre que podia. Estava a fazer-se tarde. 34

    — Não sei, Maria. É uma coisa que Germaine terá de resolver.

    — Sherman? Sorria, de lábios entreabertos. Pôs-se de pé.

    — Sherman, anda cá.

    Deu dois passos na direcção dela, mas evitou aproximar-se muito. O olhar dela dizia-lheque o queria bem perto de si. — Estás convencido de que arranjaste um sarilho com a tua mulher, e afinal de contas sófizeste um telefonema.

    — Ah! Eu não estou convencido disso, tenho a certeza absoluta.

    — Bom, então se arranjaste um sarilho sem teres feito nada, podias aproveitar para fazeralguma coisa, já que vem a dar ao mesmo. Então ela tocou-lhe.

    O Rei Príapo, que apanhara um susto de morte, ressuscitou para o mundo dos vivos. Estendido na cama, Sherman apercebeu-se da presença dodachsund.O animal

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    levantara-se do tapete e aproximara-se da cama; estava a olhar para eles e a abanar o rabo. Meu Deus!...Haveria alguma maneira de um cão transmitir... Os cães teriam a possibilidade de fazer alguma coisa que revelasse que tinham visto... Judy entendia osanimais. Passava a vida a apaparicar o Marshall,a ver se ele estava ou não bem disposto...chegava a ser revoltante. Osdachsundsfariam alguma coisa especial depois de

    observarem... Mas foi então que o sistema nervoso de Sherman começou a dissolver-se, eele deixou de se importar. Sua Majestade, o mais antigo dos monarcas, Príapo, Senhor do Universo, não tinhaconsciência. Sherman abriu a porta do apartamento e fez questão de amplificar os sons, geralmentediscretos que fazia ao entrar.

    — Pronto, Marshall, O.K., O.K. Tirou a gabardina com muito farfalhar de tecido plastificado, tilintar de fivelas e algunsUfs! Nem sombra de Judy. A sala de jantar, a sala de estar e uma pequena biblioteca davam todas para o átrio demármore. Cada uma tinha as suas cintilações e brilhos próprios, de madeira trabalhada,cristal, sedas naturais, lacas envernizadas, e todos os outros requintes incrivelmentedispendiosos, ideia da mulher, a aspirante a decoradora. Então é que reparou. O grandecadeirão de couro que costumava estar de frente para a porta 35 da biblioteca tinha sido voltado ao contrário. Via-se apenas o alto da cabeça de Judy,acima das costas da cadeira. Estava um candeeiro aceso ao lado da poltrona. Ela deviaestar a ler um livro. Sherman dirigiu-se para a porta da biblioteca.

    — Bom! Estamos de volta! Não houve resposta. — Tinhas razão. Fiquei ensopado, e o Marshallnão gostou nada da ideia. Ela não se voltou. Só se ouviu a sua voz, vinda do cadeirão:

    — Sherman, se queres falar com uma pessoa chamada Maria, porque é que me telefonas amim em vez de lhe telefonares a ela? Sherman entrou na sala.

    — Que história é essa? Se eu quero falar comquem?A voz: — Oh, por amor de Deus. Não vale a pena dares-te ao trabalho de mentir.

    — Mentiracerca dequê? Então Judy voltou a cabeça e espreitou por cima de um dos braços da poltrona. E o olharque ela lhe lançou!

    De coração pesado, Sherman aproximou-se da cadeira. Emoldurado por um halo decabelo castanho macio, o rosto da mulher era a imagem do mais puro sofrimento. — Não percebo de que é que estás a falar, Judy. Ela estava tão transtornada que a princípio as palavras não lhe saíram.

    — Só queria que visses a expressão reles da tua cara. — Não sei de que é que estás a falar! A sua voz estridente fê-la rir. — Oh, Sherman, será que vais ter o descaramento de me dizer que não telefonaste paraaqui pedindo para falar com uma mulher chamada Maria?

    — Comquem? — Com uma prostitutazinha qualquer, se é que queres o meu palpite, chamada Maria. — Judy, eu juro por Deus que não sei de que é que estás a falar! Estive a passear o

    Marshall! Nem sequer conheço nenhuma mulher chamada Maria! Então houve alguémque telefonou para aqui pedindo para falar com uma Maria?

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    — Uhhh! — Foi um gemido breve e incrédulo. Ela pôs-se de pé e olhou-o nos olhos. — Einsistes! Julgas que eu não conheço a tua voz ao telefone?

    — Talvez conheças, mas esta noite não a ouviste. Juro por Deus. 36

    — É mentira! — Os lábios entreabriram-se-lhe num sorriso horrível. — E tu não tens

    jeito nenhum para contar mentiras. E és uma pessoa detestável. Achas-te espantoso, masés reles. É mentira, não é? — Não, não é mentira. Juro por Deus que levei o Marshalla passear, e agora chego aqui e pumba! — quer dizer, eu nem sei como é que te hei-de responder, porque ainda não percebi de que é que estamos a falar. Pedes-me que demonstre uma proposição negativa. — Proposição negativa. — A expressão pedante, nos lábios dela, ressumava desprezo. — Estiveste bastante tempo fora. Também lhe deste um beijinho de boas noites, eaconchegaste-lhe a roupa?

    — Judy... — Deste ou não deste? Sherman virou a cabeça para não ver o seu olhar furioso, abriu as mãos e suspirou.

    — Escuta Judy, tu estás completamente... completa-mente... totalmente errada. Juro porDeus. Ela olhou-o fixamente. E logo lhe vieram lágrimas aos olhos. — Ah, juras por Deus. Oh,Sherman! — Esforçava-se por reter as lágrimas. — Eu não vou... Eu vou lá para cima.Está aí o telefone. Porque é que não lhe telefonas daqui? — Pronunciava as palavras comesforço, por entre lágrimas. — Eu não me importo. A sério que não me importo. Depois saiu da sala. Sherman ouviu o som dos seus passos no mármore, dirigindo-se paraas escadas. Aproximou-se da secretária e sentou-se na sua cadeira giratória Hepplewhite.Reclinou-se. Pousou os olhos no friso junto ao tecto da pequena sala. Era um alto-relevoem pau-brasil importado da índia, que representava uma sucessão de figuras apressadasnas ruas de uma cidade. Judy mandara-o fazer em Hong Kong, por uma quantia incrível...do meu dinheiro!Inclinou-se para a frente na cadeira. Raios a partam.Tentoudesesperadamente tornar a atear o fogo da sua justa indignação. Os pais dele é que tinhamrazão, não é verdade? Ele merecia mais. Ela era dois anos mais velha do que ele, e a mãedele dissera-lhe logo que essas coisas podiam ter a sua importância — o que, dito daquelamaneira, significava quetinham mesmoa sua importância; mas ele dera-lhe ouvidos, poracaso? Não, senhor, nem pensar! O pai, referindo-se supostamente a Cowles Wilton, quetivera um casamento breve e tempestuoso com uma judiazinha obscura, dissera: «Seráque é mais difícil apaixonar-se por uma rapariga rica e de boas famílias?» Acaso lhe deraouvidos?

    37

    Não, senhor! E durante todos aqueles anos, Judy, como filha de um professor de históriado Midwest — um professor de história do Midwest! — comportara-se como se fosseuma aristocrata e uma intelectual; mas não se importara de usar o dinheiro e a família dele para se relacionar com o seu novo círculo mundano, para se lançar como decoradora eescarrapachar os nomes e o apartamento de ambos nessas publicações baratas,e Architectural Digeste sei lá que mais — não se importara nada, pois não? Com quarentaanos, e sempre a correr para as aulas de ginástica... ... e de repente vê-a como a viu naquela primeira noite, catorze anos antes, na Village, noapartamento de Hal Thorndike, de paredes cor de chocolate, com uma mesa enormecoberta de obeliscos e aquela gente bastante mais que boémia, se é que ele interpretava

    bem o sentido da palavra boémio — e a rapariga de cabelo castanho-claro e feições tão,tão delicadas, com um vestido extravagante, curto, minúsculo, que revelava grande parte

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    do seu corpinho perfeito. E sentea maneira inefável como se fundiram no casulo perfeito,no seu pequeno apartamento de Charles Street, e no pequeno apartamento dela, na West Nineteenth, imunes a tudo o que os seus pais e Buckley e St. Pauls e Yale lhe haviamimposto — e lembra-sede lhe ter dito — praticamente por estas palavras! — que o amordeles transcenderia...tudo...

    ... e agora ela, com os seus quarenta anos, esfomeada e ginasticada até quase ter atingido a perfeição, vai para a cama a chorar. Reclinou-se de novo na cadeira giratória, Como muitos homens antes dele, teve enfimque admitir a sua derrota perante aquelas lágrimas femininas. Deixou cair o queixo sobreo peito. Deu-se por vencido. Distraidamente, carregou num botão da secretária. A tampa daquele falso móvel Sheratonsubiu lentamente, revelando umécran de televisão. Mais um toque da sua queridadecoradora lacrimejante. Abriu uma gaveta da secretária, de onde tirou o controle adistância, dando vida ao aparelho. As notícias. Omayorde Nova Iorque. Um palco. Umamultidão de negros em fúria. Harlem. Cenas de pancadaria. Confusão. Omayor protege-se. Gritos... caos... a barafunda é completa. Que coisa despropositada. ParaSherman, a cena não tinha mais sentido que um pé-de-vento. Não conseguiaconcentrar-se no que via. Desligou a televisão. Ela tinha razão. O Senhor do Universo era reles, era detestável, e era mentiroso. 382 Gibraltar Na manhã seguinte ela aparece a Lawrence Kramer na luz cinzenta e pálida da aurora — a rapariga dobatôncastanho. Está mesmo ao lado dele. Não lhe distingue as feições, massabe que é a rapariga dobatôncastanho. Também não distingue as palavras, palavras quesaem como pequenas pérolas de entre aqueles lábios pintados de castanho, porém sabe oque ela lhe está a dizer. Fica comigo, Larry. Vem para a cama comigo, Larry.E ele quer!

    Ele quer! Não há nada que mais queira neste mundo! Então porque é que não fica? O queé que o impede de colar os lábios àqueles lábios pintados debatôncastanho? A mulher, éa mulher que o impede. A mulher, a mulher, a mulher, a mulher, a mulher... Acordou com os estalidos e rangidos que a mulher fazia ao gatinhar até aos pés da cama.Que espectáculo de flacidez e falta de jeito... O problema era que a cama, um colchãoenorme assente numa plataforma de contraplacado, era quase da largura do quarto. Porisso tinha de se gatinhar ou percorrer de outro modo o comprimento da cama para se chegar ao chão. Agora ela estava de pé, inclinada para uma cadeira, preparando-se para vestir o roupão.Com a camisa de flanela a cair-lhe assim em torno das ancas, aquele corpo parecia ter

    uma milha de largura. Arrependeu-se imediatamente de ter pensado semelhante coisa.Estremeceu de emoção. A minha 39 Rhoda! Afinal de contas, ela dera à luz apenas três semanas antes. Estava a olhar para asentranhas que haviam gerado o seu primeiro filho. Um rapaz! E ainda não recuperara asua antiga silhueta. Ele tinha de compreender. Ainda assim, estas considerações não tornavam o panorama mais agradável. Viu-a enfiar o roupão, e dirigir-se em seguida para a porta. Veio uma réstia de luz da sala.Com certeza a ama do bebé, MissEficiência, uma inglesa, já estava a pé e em plenaactividade. Àquela luz, viu de perfil o rosto pálido, inchado, sem maquilhagem damulher. Só vinte e nove anos, e já igual à mãe. Era tal e qual a mesma pessoa! Elaera a mãe dela! Não havia nada a fazer! Era apenas

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    uma questão de tempo! Tinha o mesmo cabelo arruivado, as mesmas sardas, o mesmonariz e as mesmas bochechas carnudas, de camponesa e até um prenúncio do duploqueixo da mãe. Uma mexeriqueira (1) em embrião! A Pequena Gretel da comunidade)!Jovem e iidechezecaO) no Upper West Side! Semicerrou os olhos e ficou a espreitar por uma frestazi-nha, de modo a que ela não

    percebesse que estava acordado. Então ela saiu do quarto. Ouviu-a dizer qualquer coisa àama e ao bebé. Tinha o hábito de dizer «Jo-shu-a» com uma entoação infantil. Já secomeçava a arrepender de ter escolhido aquele nome. Se querias um nome judeu, porqueé que não escolheste Daniel ou David ou Jonathan? Tornou a puxar os cobertores paracima, tapando os ombros. Ah, voltar à sublime narcose do sono por mais uns cinco ou dezminutos. Voltar à rapariga dobatôncastanho. Fechou os olhos... Não valia a pena. Nãoconseguia tornar a vê-la. A única coisa que lhe vinha à cabeça era a corrida para o metroque o esperava se não se levantasse imediatamente. Portanto, levantou-se. Pôs-se de pé e percorreu todo o comprimento do colchão. Eracomo tentar andar no fundo de um barco a remos, mas ele não queria gatinhar. Dava umar tão frouxo, tão desajeitado... Vestia calções e umaT-shirt.Apercebeu-se de que sofriadesse incómodo vulgar nos rapazes novos que é uma erecção matinal. Foi até à cadeira eenfiou o seu velho roupão axadrezado. Tanto ele como a mulher tinham começado a usarroupão desde que a ama inglesa entrara nas suas vidas. Uma das muitas e trágicas

    (i) Yentano original(N. do T.)(ii) Shtetlno original(N. do T.)(3) Yiizyno original(N. do T.)

    40 falhas do apartamento era que não havia maneira de ir do quarto à casa de banho sem se passar pela sala, onde a ama dormia num sofá-cama e o bebé residia num berço, debaixode ummobileque era uma caixinha de música com pequenos palhaços pendurados.Agora mesmo a ouvia. A caixa de música tocava a cançãoSend in the Clowns.Tocava-a

    vezes sem conta. Plink plink plinkplink, plink plink plinkplink, plink PLINK plinkplink. Baixou os olhos. O roupão não disfarçava. Parecia arregaçado por uma estaca de tenda.Mas se se inclinasse, assim, já não se notava. Portanto, podia atravessar a salaarriscando-se a que a ama visse a estaca de tenda, ou então passar curvado como se lhedoessem as costas. Preferiu ficar onde estava, no escuro. Ainda bem que estava escuro. A presença da ama, fizera-o, a ele e a Rhoda, tomar umaconsciência dolorosa da espelunca em que viviam. O apartamento inteiro, um «3 divisõese meia» na linguagem das agências imobiliárias nova-iorquinas, fora criado a partir de umagradável mas de modo nenhum gigantesco quarto de cama do terceiro andar de um prédio de habitação, com três janelas para a rua. O chamado quarto onde ele agora estavanão passava de um cubículo formado por um tabique de estuque. No cubículo ficava uma

    das janelas. O que sobrava da sala inicial chamava-se agora sala de estar, e nela ficavamas outras duas janelas. Junto à porta para o átrio havia mais dois cubículos, o primeirouma cozinha onde não cabiam duas pessoas, o outro uma casa de banho. Nenhum tinha janela. A casa parecia uma minúscula colónia de formigas, mas custava-lhes 888 dólares por mês, renda fixa. Se não fosse a lei de estabilização das rendas, custaria provavelmente1500 dólares, quantia que eles não poderiam de modo nenhum pagar. E tinham ficadomuito felizes por terem encontrado aquela casa! Meu Deus, em Nova Iorque não faltavamlicenciados da idade dele, trinta e dois anos, que dariam tudo para encontrar umapartamento assim, com vista sobre a cidade, num prédio daqueles, com tectos altos, derenda fixa, nas West Seventies! Verdadeiramente patético, não era? Os dois malconseguiam pagar a renda quando ambos trabalhavam e os seus salários somavam 56000dólares por ano, 41000 descontados os impostos. O plano fora que a mãe de Rhoda lhesdaria, como prenda pelo nascimento do bebé, o dinheiro para pagarem a uma ama durante

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    quatro semanas, enquanto Rhoda se recompunha e regressava ao trabalho. Entretanto,eles encontrariam umaaupair quetomasse conta do bebé em 41 troca de cama e comida. A mãe de Rhoda cumprira a sua parte do plano, mas já se tornaraevidente que não existiamau pairsdispostas a dormir no sofá-cama da sala de estar de

    uma colónia de formigas do West Side. Rhoda não poderia retomar o trabalho. Iam ter dese governar com os 25000 dólares de ordenado líquido, quando a renda anual daquelaespelunca, mesmo com a ajuda da estabilização, era de 10656 dólares. Bom, pelo menos estas considerações mórbidas devolveram a decência ao roupão deLarry. Resolveu, por isso, sair do quarto.

    — Bom dia, Glenda — disse. — Ah, bom dia, Mr. Kramer — disse a ama. Tão fria e britânica aquela voz! Kramer estava convencido de que não dava a menorimportância ao sotaque britânico ou aos próprios britânicos. Mas, na realidade, os britânicos e o seu sotaque intimidavam-no. Noah da ama, naquele simplesah, detectouuma sugestão deaté que enfim a pé, não é verdade? Mulher gorducha, dos seus cinquenta anos, já envergava o seu eficiente uniforme branco.Tinha o cabelo apanhado num carrapito impecável. Já fechara o sofá-cama e tornara a pôrno lugar as almofadas, devolvendo-lhe assim a sua aparência diurna de móvel de sala deestar forrado de linho sintético de um amarelo desmaiado. Estava sentada na beira dosofá, com as costas perfeitamente direitas, a beber uma chávena de chá. O bebé estavadeitado de costas no berço, perfeitamente satisfeito. Aquela mulher era a perfeição em pessoa. Tinham-na encontrado através da Agência Gough, que um artigo da secção Lardo Timesapontava como uma das melhores e mais elegantes. Portanto estavam a pagar oelegantíssimo preço de 525 dólares por semana a uma ama inglesa. De vez em quando elafalava de outras casas onde tinha trabalhado. Sempre na Park Avenue, na QuintaAvenida, em Sutton Place... Bom, tanto pior! Agora tens de engolir esta subida forçadaaté ao West Side! Tratavam-na por Glenda. Ela tratava-os por Mr.Kramer e Mrs.Kramer,e não por Larry e Rhoda. Estava o mundo de pernas para o ar. Glenda era a verdadeiraimagem da aristocrata, a beber o seu chá, enquanto Mr.Kramer, amo e senhor da colóniade formigas, atravessava a sala em direcção à casa de banho, descalço, de pernas nuas,desgrenhado, envergando um roupão de xadrez velho e coçado. No canto da sala, sob afolhagem de uma Dracaena fragransextremamente suja de pó, a televisão estava ligada.O anúncio chegou 42 ao fim, e alguns rostos sorridentes começaram a falar, no programaToday.Mas o somestava no mínimo. Ela não seria imperfeita ao ponto de ter a televisão aos gritos. Que

    diabo lhe passaria pela cabeça, àquele árbitro inglês, ali sentado (num horrível sofá-cama)a julgar a miséria dechezKramer? Quanto à dona da casa, Mrs.Kramer, saía nesse preciso momento da casa de banho, aindade roupão e chinelos. -Larri — disse — olha para a minha testa. Acho que tenho aqui uma coisa qualquer, uma espécie de inflamação. Estive agora a ver ao espelho. Ainda ensonado, Kramer fez um esforço para lhe examinar a testa.

    — Não é nada, Rhoda. Talvez seja o princípio de uma borbulha. Mais uma coisa desagradável. Desde a chegada da ama, Kramer apercebera-sesubitamente da maneira como a mulher falava. Nunca antes reparara nisso, ou quase

    nunca. Ela era formada pela Universidade de Nova Iorque. Nos últimos quatro anostrabalhara na editora Waverly Place Books. Era uma intelectual, ou pelo menos

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    aparentava ler bastante poesia de John Ashbery e Gary Snyder quando a conhecera, etinha opiniões bem assentes acerca da África do Sul e da Nicarágua. No entanto, dizia fah-headem vez de forehead,e theresemno fim; em contrapartida, acrescentava uma saw. Também nisso era igual à mãe.

    Rhoda afastou-se, e Kramer entrou no cubículo da casa de banho. A casa de banho era domais puro estilo Habitação Social. O varão da cortina do chuveiro estava coberto de roupaa secar. Havia ainda mais roupa numa corda que atravessava diagonalmente o quarto, umbabygrow,dois babeiros, algumas calcinhas, vários pares decolantse Deus sabe o quemais, nada daquilo pertencente à ama, claro. Kramer teve de se curvar para chegar àsanita. Um par decolantsmolhados roçaram-lhe a orelha. Era revoltante. Havia umatoalha molhada em cima da tampa da sanita. Olhou à sua volta em busca de um lugar paraa pendurar. Não havia lugar. Atirou-a para o chão. Depois de urinar, deslocou-se doze ou catorze polegadas em direcção ao lavatório, tirou oroupão e aT-shirte colocou-as em cima da tampa da sanita. Kramer gostava de ver aoespelho a sua cara e o seu corpo, logo de manhã. Com aquele rosto largo e achatado,aquele nariz grosso, aquele pescoço forte, à primeira vista ninguém o tomava por judeu. 43 Podia ser grego, eslavo, italiano, até irlandês — ou de qualquer outra raça robusta. Nãolhe agradava estar a perder o cabelo no alto da cabeça, mas de certo modo também issolhe dava um ar robusto. Estava a ficar calvo da mesma maneira que muitos futebolistas profissionais ficavam calvos. E a sua compleição... Mas nessa manhã desanimou.Aqueles potentes deltóides, aqueles trapézios maciços, aqueles peitorais compactos,aqueles nacos redondos de carne que eram os seus bicípites — pareciam murchos. Porra,estava a ficar atrofiado! Não tinha podido exercitar-se desde o nascimento do bebé e achegada da ama. Guardava os halteres num caixote atrás do vaso da Dracaena,e treinavaentre a planta e o sofá — só que lhe era absolutamente impossível fazer exercícios,grunhir e gemer e esforçar-se e ofegar e mirar-se complacentemente no espelho à frenteda ama inglesa... ou da futura e míticaau pair, aliás... É melhor enfrentar os factos! Já étempo de desistires desses sonhos infantis! Agora és um laborioso pai de famíliaamericano — e nada mais! Quando saiu da casa de banho, deparou com Rhoda sentada nosofá ao lado da ama inglesa; ambas tinham os olhos fixos na televisão, e o som estava bastante alto. Era o noticiário do programaToday. Rhoda olhou para ele e disse, muito excitada: — Olha para isto, Larry! É omayorHouveum tumulto em Harlem ontem à noite. Até lhe atiraram com um frasco! Kramer mal reparou que ela pronunciarameh-ahem vez demayore boh-halem vez debottle.Coisas espantosas aconteciam na televisão. Um palco, grande confusão — corpos

    em luta — e depois uma mão enorme que enchia oécrane tapava tudo por instantes. Maisgritos e esgares e confrontos violentos, e depois a pura vertigem. Para Kramer, Rhoda e aama, foi como se os desordeiros irrompessem peloécrane saltassem para o chão da sala,mesmo ao lado do berço do pequeno Joshua. E não eram as notícias locais, mas sim o programaToday.Era o prato servido à América inteira para o pequeno-almoço daquelamanhã, um punhado de gente de Harlem que, na sua justa cólera, corria omayordo palcode uma sala de reuniões. Ali vai a cabeça dele, toda encolhida para se proteger. Foi emtemposmayorda cidade de Nova Iorque. Agora é omayorda Nova Iorque Branca. Quando a cena terminou, os três entreolharam-se, e Glenda, a ama inglesa, começou afalar, consideravelmente agitada. 44

    — Bom, eu acho isto perfeitamente revoltante. As pessoas de cor não sabem como a suasituação é boa neste país, é o que vos digo. Na Grã-Bretanha não se vê um único homem

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    de cor de uniforme de polícia, e ainda menos a ocupar cargos públicos importantes comoacontece aqui. Ainda no outro dia li um artigo. Há mais de duzentosmayorsde cor neste país. E ainda querem espancar omayorde Nova Iorque. Certas pessoas não sabem a sorteque têm, se querem que lhes diga a minha opinião. Abanou a cabeça com ar indignado.

    Kramer e a mulher entreolharam-se. Ele percebeu que ela estava a pensar o mesmo queele. Louvado seja Deus! Que alívio! Já podiam respirar fundo. MissEficiência era umatradicionalista. E nos tempos que corriam o tradicionalismo era mal visto. Indicava ori-gens modestas, estatuto social inferior, mau gosto. Portanto, afinal de contas, eles sempreeram superiores à ama inglesa. Porra, que alívio. Quase parara de chover quando Kramer saiu de casa em direcção ao metro. Vestia umagabardina velha sobre o seu fato cinzento do costume, com camisa e gravata. Calçava um par de sapatos Nike, brancos com riscas dos lados. Levava os sapatos melhores, de courocastanho, num saco de plástico, um desses sacos brancos, escorregadios, que dão nas lojasA&P. A paragem do metro onde ele podia apanhar o comboio da linhapara o Bronx ficava naRua 81, no sector oeste do Central Park. Ele gostava de ir até ao Central Park pela Rua 77,subindo depois a 81, porque assim passava diante do Museu de História Natural. Era um belo edifício, o mais belo edifício do West Side, na opinião de Kramer, tal e qual umcenário de Paris (não que ele alguma vez tivesse estado em Paris). A Rua 77 era muitolarga naquele ponto. De um lado ficava o museu, uma maravilhosa criaçãoneo-romântica, de pedra avermelhada. A fachada ficava um pouco recuada, pois tinha àfrente um pequeno parque com árvores. Mesmo num dia enevoado como aquele as folhas jovens da Primavera pareciam brilhar.Verdejante,foi a palavra que lhe veio ao espírito.Do outro lado da rua, por onde ele seguia, havia uma série de edifícios elegantes comvista sobre o museu. Havia porteiros. Entrevia-se, ao passar, átrios enormes. Então pensou na rapariga dobatôncastanho... Via-a agora muito claramente, muito maisclaramente do que no sonho. Cerrou os punhos. Irra! Ia fazê-lo, sim! Ia telefonar-lhe.Ia 45 fazer essa chamada. Teria de esperar até ao fim do julgamento, claro. Mas ia fazê-la.Estava farto de ver asoutras pessoasviverem... A Vida. A rapariga dobatôncastanho! — ela e ele, olhando-se nos olhos, a uma mesa desses restaurantes de madeiras claras etijolos à vista, plantas penduradas no tecto, metais reluzentes, vidros foscos e ementascom lagosta Natcheze vitela e banana de São Tomé com algorobo e broa de milho com pimenta de Caiena! Kramer começava a saborear pacatamente a sua visão quando, mesmo à sua frente, saiu

    da porta impecável do n.º 44 da Rua 77 uma figura que o surpreendeu.

    Era um homem novo, quase com expressão de bebé, de cara redonda e cabelo escuro,muito bem penteado para trás. Vestia um sobretudoChesterfieldde gola de veludocastanho-dourado e levava na mão uma daquelas pastas de couro borgonha que secompram no Màdler ou no T. Anthony da Park Avenue e têm uma macieza suave queanuncia: «Eu custo 500 dólares.» Via-se uma parte do braço fardado que mantinha aberta para ele a porta do prédio. Ele avançava a passo rápido sob o toldo da entrada,atravessando o passeio em direcção a um Austin sedan.O banco da frente era ocupado porum motorista. Via-se um número — o 271 — na janela de trás: um serviço de aluguer deautomóveis. E agora o porteiro precipitava-se para fora do prédio, e o homem detinha-se para permitir que ele o ultrapassasse e lhe abrisse a porta de trás do sedan.

    E aquele homem era... Andy Heller! Não havia a menor dúvida. Andy fora colega deKramer na Faculdade de Direito de Colúmbia — e como Kramer se sentira superior

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    quando Andy, o gordo e espertinho Andy, fizera o que toda a gente fazia, ou seja, irtrabalhar para a Baixa, para a firma Angstrom & Molner. Andy e centenas de outros comoeles passariam os próximos cinco ou dez anos debruçados sobre as secretárias a corrigirvírgulas, citações de documentos e cláusulas estratégicas para consolidar e reforçar aavidez dos negociantes de hipotecas, dos fabricantes dos cosméticos e produtos

    farmacêuticos, dos conselheiros em matéria de investimentos e dos resseguradores — enquanto ele, Kramer, escolhia a vida mergulhando até à cintura nas existências dosmiseráveis e dos condenados, erguendo-se nos tribunais para travar o seu duelomano amanoem prol da justiça. E era, na realidade, assim que as coisas se tinham passado. Então porque é que Kramernão avançava agora? Porque é que não continuava a andar e dizia «Olá Andy?» Nãoestava a mais de vinte pés do seu velho condiscípulo. 46 Mas o que fez foi parar, voltar a cara para a fachada do edifício e levar a mão ao rosto,como se tivesse alguma coisa no olho. Que diabo, não tinha vontade nenhuma de verAndy Heller — enquanto o porteiro lhe segurava a porta do carro e o motorista aguardavao sinal de partida — não lhe apetecia mesmo nada dar ensejo a Andy Heller olhar para elee dizer: «Larry Kramer, como estás?», e depois: «O que é que fazes agora?» E ele teria deresponder: «Bom, sou procurador-adjunto no Bronx». Nem sequer seria precisoacrescentar: «E ganho 36600 dólares por ano.» Isso era do conhecimento comum. Eenquanto durasse a conversa Andy Heller examinaria a sua gabardina suja, o seu velhofato cinzento de calças demasiado curtas, os seus ténis Nike,o seu saco de plástico A &P... Porra para esse... Kramer deixou-se ali ficar de cabeça virada, fingindo que tinha umgrão de areia no olho, até que ouviu fechar-se a porta do Audi.Tornou a voltar-se mesmoa tempo de apanhar em cheio na cara uma bela nuvenzinha compacta de fumo doautomóvel de luxo alemão, quando Andy Heller arrancou para o seu escritório. Kramernem queria imaginar qual seria o aspecto desse maldito escritório. No metro, na linha D, em direcção ao Bronx, Kramer ficou no corredor, agarrado a umvarão de aço inoxidável, enquanto a carruagem chiava e avançava aos solavancos. No banco de plástico do outro lado do corredor estava sentado um velho, magro e ossudo, que parecia uma espécie de fungo nascido num cenário de graffiti.Estava a ler um jornal. Otítulo do jornal dizia: POPULAÇA DE HARLEM CORRE COM O MA YOR.Oscaracteres eram tão grandes que ocupavam a página inteira. Ao alto, em letras mais pequenas, lia-se «Volta para Hymietown!» O velho trazia um par de ténis às riscasvermelhas e brancas. Parecia estranho ver um homem tão velho assim calçado mas nalinhaaqueles ténis nada tinham, afinal, de estranho. Kramer espreitou para o chão. Metadedos passageiros da carruagem calçavam ténis de cores berrantes e solas anatómicas em

    forma de molheiras. Os jovens calçavam-nos, os velhos calçavam-nos, as mães comcrianças ao colo calçavam-nos tal como, aliás, as próprias crianças. Isto não acontecia pormotivos de Juventude, Forma Física & Elegância Desportiva, como na parte baixa dacidade, onde se viam muitos jovens brancos bem vestidos irem de manhã para o trabalhocalçando esses ténis. Não, na linha o motivo é que eles eram baratos. Na linhaaquelesténis eram como um letreiro pendurado ao pescoço que dissesse BAIRRO DE LATA OU EL BARRIO. 47 Kramer fez um esforço para não reconhecer, no seu íntimo, o motivo porque os usava.Tornou a erguer os olhos. Algumas pessoas liam os jornais com os títulos acerca dotumulto, mas a linha para o Bronx não era uma linha de grandes leitores... Não...

    Acontecesse o que acontecesse em Harlem, o Bronx não seria afectado. Todos osocupantes da carruagem olhavam o mundo com a costumeira expressão parada, evitando

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    as trocas de olhares. Nesse preciso instante deu-se um daqueles vazios de som, umadaquelas interrupções no ruído de fundo que ocorrem quando se abre uma porta entreduas carruagens. Entraram três rapazes negros, de quinze ou dezasseis anos, calçandograndes ténis de atacadores descomunais, desatados mas metodicamente enrolados nostornozelos, em linhas paralelas, eanoraks pretos.

    Kramer empertigou-se e fez questão de se mostrar resoluto e enfadado. Contraiu osmúsculos esternocleidomastoi-deus de modo a fazer sobressair o pescoço, como umlutador. Um contra um... seria capaz de dar cabo de qualquer de entre eles... Mas nuncaera um contra um... Todos os dias via rapazes assim no tribunal... Agora os trêsavançavam pelo corredor... Andavam com um passo saltitante conhecido como o «andardo chulo»... Ele também via o Andar do Chulo todos os dias, no tribunal... Nos diasquentes, no Bronx, havia tantos rapazes a pavonearem-se a passo de chulo que o próprio pavimento das próprias ruas parecia oscilar para cima e para baixo... Aproximaram-semais, com o seu invariável olhar frio e inexpressivo... Bom, mas o que é que eles podiamfazer?... Passaram por ele, por ambos os lados dele... e nada aconteceu... Um touro, umgaranhão como ele... seria a última pessoa do mundo com quem eles resolveriam impli-car... Mesmo assim, ficava sempre satisfeito quando o comboio entrava na estação da Rua161. Kramer subiu as escadas e saiu para a Rua 161. O céu clareava. À sua frente, ali mesmo,erguia-se a grande taça do Yankee Stadium. Para além do estádio ficavam as silhuetasdegradadas dos edifícios do Bronx. Dez ou quinze anos antes, tinham renovado o estádio.Tinham gasto nisso cem milhões de dólares. A ideia era que as obras levariam à«revitalização do coração do Bronx.» Que triste piada! Desde então aquela zona, a zona44, aquelas mesmas ruas, haviam-se tornado as piores do Bronx em matéria dedelinquência, Kramer também via isso todos os dias. Começou a subir o monte, pela Rua 161, com os seus ténis, levando na mão o saco doA&P com os sapatos dentro. Os habitantes daquelas ruas tristes deixavam-se ficar à porta das lojas e das tendasda Rua 161. Olhou para cima — e por um instante viu o velho Bronx em todo o seu esplendor. No altodo monte, onde a Rua 161 se encontrava com a Grand Concourse, o sol rompera asnuvens e iluminava a fachada de calcário do Grand Concourse Hotel. Àquela distância,ainda podia passar por um hotel de uma estância turística europeia dos anos 20. Osfutebolistas yankeesviviam ali durante a estação alta, os que podiam, as estrelas. Kramerimaginava-os sempre a viver em grandes suites.Joe DiMaggio, Babe Ruth, Lou Gehrig...Eram os únicos nomes de que se lembrava, embora o pai costumasse falar de muitos mais.Ó douradas colinas judaicas de outrora! Ali, no cimo do monte, a Rua 161 e a Grand

    Concourse haviam sido o ponto mais alto do sonho judaico, da nova Canaã, do bairro judaico de Nova Iorque, o Bronx! O pai de Kramer fora criado a dezassete quarteirõesdali, na Rua 178 — e o seu sonho mais glorioso neste mundo fora ter um apartamento...um dia... num daqueles sumptuosos prédios do alto do monte, da Grand Concourse. AGrand Concourse fora criada para ser a Park Avenue do Bronx, com a diferença de que anova terra de Canaã ia fazer as coisas ainda melhor. A Concourse era mais larga que aPark Avenue, e fora mais sumptuosamente ajardinada — o que constituía, afinal, maisuma triste piada. Queria ter um apartamento na Grand Concourse? Hoje não lhe faltaria por onde escolher. O Grande Hotel do sonho judaico era agora um lar da assistência, e oBronx, a Terra Prometida, era setenta por cento negro e porto-riquenho. Pobre, desgraçado Bronx judaico! Quando tinha vinte e dois anos, acabado de entrar na

    faculdade de Direito, Kramer começara a considerar o pai como um judeuzinho que, nodecurso da sua vida, conseguira finalmente levar a bom termo a migração diaspórica do

  • 8/18/2019 A Fogueira Das Vaidades - Tom Wolfe

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    Bronx até ao Ocean-side, até Long Island, a umas vinte milhas de distância, e quecontinuava a fazer diariamente o trajecto de ida e volta até um armazém de caixotes de papelão nas West Twenties, em Manhattan, onde era «controlador». Ele, Kramer, viria aser o advogado... o cosmopolita... E agora, dez anos mais tarde, o que acontecera? Vivianuma colónia de formigas que fazia a casa do velho em Oceanside, com os seus três

    quartos de cama, parecer uma autêntica San Simeon; e apanhava a linha — a linha D! — para ir todos os dias trabalhar... no Bronx! 48 49 Mesmo diante dos olhos de Kramer, o sol começou a iluminar o outro grande edifício noalto do monte, o edifício onde trabalhava, o Bronx County Building. Era um prodigiosoParténon de calcário, construído no início dos anos 30, em estilo Cívico Moderno. Tinhanove andares e abrangia a área de três quarteirões, da Rua 161 à Rua 158. Que optimismotriunfante o dos que então haviam sonhado o edifício! Apesar de tudo, o tribunal impressionava-o