1 - Filosofia Das Ciencias

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  • Filosofia da Cincia

  • Filosofia da CinciaAlberto Cupani

    Florianpolis, 2009.

  • Catalogao na fonte elaborada na DECTI da Biblioteca Universitria da Universidade Federal de Santa Catarina.

    Copyright 2009 Licenciaturas a Distncia FILOSOFIA/EAD/UFSCNenhuma parte deste material poder ser reproduzida, transmitida e gravada sem a prvia autorizao, por escrito, da Universidade Federal de Santa Catarina.

    C974fCUPANI, Alberto Oscar.Filosofia da cincia/Alberto Cupani. Florianpolis: FILOSOFIA/EAD/UFSC, 2009. 206p.

    inclui bibliografia.

    ISBN:978-85-61484-14-91.Cincia - Filosofia - Ensino auxiliado por computador.2. Filosofia Estudo e ensino. I. Ttulo

    CDU : 001:1

    Governo FederalPresidente da Repblica Luiz Incio Lula da SilvaMinistro de Educao Fernando HaddadSecretrio de Ensino a Distncia Carlos Eduardo

    BielschowkyCoordenador Nacional da Universidade Aberta do

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    ngelo Bortolini, Thiago Rocha OliveiraReviso gramatical Gustavo Freire

    Design InstrucionalCoordenao Isabella Benfica BarbosaDesigner Instrucional Carmelita Schulze

  • Sumrio

    1 Filosofia da Cincia ......................................................111.1 A cincia como assunto da filosofia ..................................... 13

    1.2 Histria da filosofia da cincia ............................................. 20

    Leituras recomendadas ................................................................ 29

    Reflita sobre ................................................................................... 30

    2 O Conhecimento Cientfico .........................................312.1 Tipos de cincias ..................................................................... 33

    2.2 A questo da verificabilidade ................................................ 35

    2.3 A cincia como saber metdico ............................................ 38

    2.4 A objetividade da cincia ....................................................... 43

    Leituras Recomendadas ............................................................... 48

    Reflita sobre ................................................................................... 49

    3 A Pesquisa Cientfica ....................................................513.1 A formulao de hipteses .................................................... 53

    3.2 Os fatos, sua observao e experimentao .......................................................................... 56

    Leituras Recomendadas ............................................................... 62

    Reflita sobre ................................................................................... 63

  • 4 Leis, Explicaes e Teorias Cientficas ....................654.1 As leis cientficas ..................................................................... 67

    4.2 As explicaes cientficas ....................................................... 69

    4.3 As teorias .................................................................................. 72

    Leituras recomendadas ................................................................. 78

    Reflita sobre ................................................................................... 78

    5 Paradigmas e Tradies de pesquisa .........................795.1 A cincia na histria ............................................................... 81

    5.2 Cincia normal e paradigma ........................................... 83

    5.3 Anomalias, crises e revolues cientficas ........................... 88

    5.4 A fecundidade da doutrina kuhniana .................................. 95

    Leituras Recomendadas .............................................................100

    Reflita sobre .................................................................................101

    6 Cincia Bsica, Cincia Aplicada, Tecnologia .................................................1036.1 As distines tradicionais ....................................................105

    6.2 A especificidade da tecnologia ............................................110

    6.3 A questo da tecnocincia ...................................................115

    Leituras Recomendadas .............................................................121

    Reflita sobre .................................................................................121

    7 Cincia e Valores .........................................................1237.1 A questo dos valores ...........................................................125

  • 7.2 A cincia e os valores ............................................................129

    7.3 Crticas da neutralidade cientfica ......................................135

    Leituras Recomendadas .............................................................140

    Reflita sobre .................................................................................141

    8 Cincias Naturais e Cincias Humanas ........................................................1438.1 Epistemologia das cincias humanas..................................................................145

    8.2 A abordagem naturalista ....................................................147

    8.3 A abordagem interpretativa .................................................155

    8.3 O enfoque crtico ...............................................................169

    Leituras Recomendadas .............................................................176

    Reflita sobre .................................................................................179

    9 Cincia, Verdade e ideologia ....................................................................1779.1 A cincia e a verdade ............................................................179

    9.2 A acusao de ideologia .......................................................181

    9.3 procura de uma viso equilibrada ..................................190

    Leituras Recomendadas .............................................................195

    Reflita sobre .................................................................................196

    Referncias ..................................................................197

  • ApresentaoA cincia faz parte, cada vez mais, do nosso mundo, tanto no sen-

    tido do planeta quanto do setor desse planeta que ns habitamos (o mundo dos pases emergentes), e tanto no sentido objetivo, j que o mundo algo comum, quanto em sentido subjetivo, vale dizer, na maneira como vivenciamos as coisas, as pessoas, os eventos. E a cin-cia faz parte do mundo, em qualquer uma das acepes da palavra, porque as ideias cientficas e o resultado das suas aplicaes vo mar-cando toda a nossa existncia. Convivemos de modo crescente com ar-tefatos de origem cientfica. A nossa educao inclui, como elementos privilegiados, informaes cientficas. As instituies e organizaes se esforam por fundamentar-se em conhecimentos cientficos e os usam para planejar as suas atividades. Na medida em que nos familiariza-mos com as ideias cientficas e os produtos tecnolgicos, estes produtos e aquelas ideias parecem-nos ser obviamente superiores queles que substituram ou pretendem substituir, j se trate de conduzir um auto-mvel em vez de andar de carroa ou de aceitar a teoria da evoluo em vez de acreditar na origem divina do homem. Particular deslum-bramento nos produzem as ideias e artefatos que no tiveram prece-dentes na histria da humanidade, como os que nos permitem voar, ou que resolveram problemas graves, como a erradicao de doenas. Tudo parece resultar do pensamento rigoroso e do agir eficiente.

    Ao mesmo tempo, essa transformao da vida humana pela ci-ncia tem aspectos notoriamente inquietantes e at assustadores. O conhecimento cientfico possibilitou deliberadamente a produo de armas de extermnio massivo. Certa confiana excessiva na cin-cia como instrumento de controle da Natureza est produzindo de-sequilbrios ambientais desastrosos e mutaes biolgicas de alcance

  • ainda desconhecido. O desenvolvimento cientfico-tecnolgico est consolidando o predomnio de certos pases sobre outros, e a cultura cientfica e tecnolgica vai se convertendo em privilgio de novas elites, perpetuando a pobreza e marginalidade das massas.

    Por outra parte, o saber cientfico pouco ou nada parece ter a di-zer sobre questes existenciais, morais ou polticas. cincia cabe explicar como funciona o mundo natural e social, e dessa maneira pode auxiliar-nos a adotar decises morais e assumir atitudes po-lticas, porm no pode indicar-nos (com a mesma segurana que indica a soluo de um problema terico ou tcnico) qual deve ser a nossa conduta. Essa deciso deve apoiar-se em outras bases. E para a pesquisa cientfica, a velha pergunta Quem sou eu? s pode dis-solver-se em questes de psicologia, sociologia e antropologia.

    No entanto, a cincia representa a realizao de algo que o ser hu-mano precisa, em alguma medida. Cincia sinnimo de conhecimento objetivo, diferena de opinies e iluses. Supe-se que, se as aplicaes da cincia funcionam, isso se deve a que o conhecimento cientfico revela, efetivamente, a realidade tal como ela . Como poderia o homem abdicar desse saber e de procurar ampli-lo? Alm do mais, a filosofia ocidental tambm teve desde o incio a pretenso de conhecer o ser das coisas ( diferena da mera aparncia), de superar a doxa (opinio) em direo epistme, o saber certo. Isso explica que a mera existncia da cincia constitua um fator de conflito com a filosofia, pois as teorias e explicaes cientficas substituram as doutrinas filosficas na explicao do mundo natural e social. Por esse motivo, no poucos concluram que a filosofia no tem mais razo de ser. Mas se filosofar consiste em indagar aquilo que parece bvio, cabe certamente refletir sobre a cincia, vale dizer, tra-tar de compreender a sua ndole. Mais ainda: precisamente porque vive-mos num mundo marcado pela cincia, necessrio cultivar a filosofia da cincia como modo de praticar mais lucidamente a filosofia.

    Isso no significa que todo aspirante a filsofo deva converter-se em filsofo da cincia, assim como no necessariamente deve especializar-se em tica ou ontologia. Todavia, ignorar os temas e questes da filosofia da cincia seria um defeito grave em um pes-quisador ou professor de filosofia. Com este livro, aspiro a ajudar a conhecer esta rea da filosofia acadmica.

    Alberto Cupani

  • Captulo 1 Filosofia da Cincia

    Neste captulo mostraremos de que modo a cincia pode constituir-se em um assunto de interesse para quem filosofa. Iremos ver como evoluiu a reflexo dos filsofos acerca da cincia, desde os primrdios da filosofia na Grcia at gerar uma disciplina acadmi-ca no sculo XX. Veremos tambm que a filo-sofia da cincia abrange questes de diversos tipos, principalmente relativas ao tipo de co-nhecimento que a cincia produz.

  • Filosofia da Cincia 13

    1.1 A cincia como assunto da filosofia

    A filosofia, entendida como atitude humana e at como um modo de vida, consiste na tendncia a examinar, para melhor com-preender, tudo quanto objeto da nossa experincia. Como vocs j devem ter ouvido (ou lido), Aristteles caracterizou a atitude filosfica como um admirar-se ante aquilo que, para quem no filosofa, trivial, insignificante ou j sabido. Filosofar no quer dizer, claro, que o ser humano deva dedicar-se a explorar literal-mente tudo quanto vivencia, pois seria uma tarefa impraticvel. Filosofa quem examina algo (ou melhor, o que acha que sabe sobre algo) por sentir que, sem esse exame, algo falta, por assim dizer, na sua vida, e que se ele chegar a uma melhor compreenso daquilo que motiva sua reflexo, viver, de algum modo, melhor. Esta uma forma de explicitar a palavra filosofia na sua etimologia. Como vocs j sabem, Philo-sophia significa literalmente amor sabedoria. Pois bem, essa sabedoria diz respeito no a qualquer tipo de saber, mas a um saber viver.

    Quem filosofa o faz porque deseja viver de outra maneira que aquela em que at ento vivia. Filosofia , pois, desejo de saber para viver melhor. E esse viver melhor inclui poder dar uma razo pessoalmente elaborada ou assumida de nossas crenas, va-loraes e aes.

  • 14 Filosofia da Cincia

    Poder responder pelo que pensamos e praticamos, em vez de justificar-nos alegando que todo o mundo pensa ou age assim, que normal essa maneira de pensar, ou que uma determinada autoridade (que pode ser at a de um filsofo famoso!) explicou ou demonstrou que assim so as coisas. Por isso, admirao ou es-tranheza como motivo para filosofar, devemos acrescentar outros dois, apontados pelo filsofo alemo Karl Jaspers (1883-1969). O ser humano filosofa no s quando se admira de algo, mas tam-bm quando duvida das suas crenas, ou quando se encontra em situaes-limite, como o sofrimento, a presena da morte, a perda da f ou uma catstrofe fsica ou social.

    A inquietao filosfica no privilgio dos filsofos profissio-nais, certamente. Qualquer ser humano filosofa, ainda que no use esta palavra e at ignorando que ela existe, toda vez que pratica aquele exame motivado pelo desejo de viver melhor. Encontramos reflexes filosficas em obras literrias (como nos textos de Eur-pedes, Shakespeare, Jorge Luis Borges ou Guimares Rosa), e at de forma implcita em quadros (o Guernica de Picasso exprime um questionamento da guerra). Grandes cientistas (como Eins-tein) formularam questes filosficas. Os filsofos, ou seja, os seres humanos reconhecidos como tais, so (ou foram) aquelas pessoas para as que essa vontade de examinar as convices para melhor viver constante, abrange diversos aspectos da sua existncia e os leva a formular doutrinas que ficam para a posteridade. O filsofo aquela pessoa que faz do filosofar a sua ocupao principal e permanente.

    Pablo Picasso, Guernica, 1937, leo sobre tela 350 x 782 cm, Centro Nacional de Artes Rainha Sofia em Madrid. representativa do bombardeio sofrido pela cidade espanhola de Guernica em 26 de abril de 1937.

    Na histria da filosofia ocidental, j os pensadores pr-socrticos exemplificavam, para Aristteles que deles nos fala, o caso do filosofar motivados pela admirao. Descartes o prottipo do pensador motivado pela dvida, e os estoicos e os existencialistas ilustram a reflexo que nasce da vivncia de fortes transformaes sociais.

  • Filosofia da Cincia 15

    Entre os diversos assuntos que podem ocupar uma mente filo-sfica est, como vocs j sabem, o tema do conhecimento, mais especificamente, as razes ou critrios de que dispomos para dis-tinguir entre o que achamos e o que verdadeiramente sabemos, um tema que vocs estudaram na disciplina Teoria do Conheci-mento e que constitui sem dvida uma questo filosfica central. Kant afirmou que a filosofia em sentido mundano, no escolar, reduzia-se a quatro questes: Que podemos conhecer?; Como de-vemos agir?; Que nos cabe esperar?; e: Que o homem? Como no querer saber em que consiste saber? Mas o saber ou conheci-mento tem, como vocs j estudaram, diversas modalidades (co-nhecimento proposicional e perceptivo, direto ou indireto, saber enunciativo e saber-fazer). A essas modalidades vamos acrescen-tar agora tipos ou classes de conhecimento tendo como pano de fundo a vida cultural.

    Como vocs provavelmente sabem, a palavra cultura designa, em seu sentido antropolgico, o modo de vida de uma comunida-de. Usado na sua mxima abrangncia, cultura designa o modo de vida do ser humano, em geral, diferena dos outros animais. A cultura inclui modos de pensar, de valorar e de agir, bem como os produtos, materiais ou abstratos, dessas atividades (tanto uma panela quanto um teorema so produtos culturais). No que tange o mbito do pensamento, isto , da maneira como os seres humanos compreendem (ou acreditam compreender) o mundo, possvel distinguir entre o conhecimento vulgar, possudo por qualquer membro de uma dada sociedade, e conhecimentos especficos, vinculados a determinadas profisses ou ocupaes. Na sociedade atual, cuja cultura resultou da universalizao da cultura europeia moderna, o conhecimento cientfico tem, sabidamente, uma posi-o de privilgio. A referncia sociedade atual e universaliza-o da cultura europeia como se fossem expresses incontestes provisria. Mais adiante lidaremos com seus aspectos problem-ticos, precisamente como consequncia de certas modalidades de filosofia da cincia..

    Acabei de falar do conhecimento cientfico, mas verdade, a palavra cincia designa uma realidade complexa, com aspec-tos concretos e abstratos. Cincia denota uma atividade social,

    Diferenciar o homem dos animais no implica, contudo,

    estabelecer uma separao ou fronteira ntida entre o

    modo de vida dos animais no humanos e humanos.

    A cultura humana pode ter (e para muitos estudiosos

    de fato tem) razes nos comportamentos animais. De

    qualquer modo, evidente a diferena entre manifestaes

    culturais como a linguagem ou a organizao social de humanos e no humanos.

  • 16 Filosofia da Cincia

    institucionalizada, cuja finalidade a produo de certo tipo de conhecimento que muito valorizado na nossa sociedade. A ci-ncia praticada em determinadas organizaes sociais e em lo-cais especficos (institutos de pesquisa, universidades, laboratrios industriais), utilizando-se amide de instrumentos sofisticados e exigindo diversos recursos (financeiros, humanos, materiais e simblicos). Dizer que a cincia uma atividade, e social, impli-ca reconhecer que a cincia algo que fazem determinados seres humanos em conjunto e at em equipes. At o pesquisador que trabalha em aparente isolamento depende para seu trabalho da informao e da opinio de colegas com os quais compartilha de-terminadas convices e propsitos. Voltaremos a esta questo no captulo V. De maneira cada vez mais frequente, questes cient-ficas s podem ser abordadas por grupos (equipes) que repartem entre si diversos aspectos da tarefa de pesquisa. Por outra parte, ao referir-me cincia como atividade, quero dizer que ela consiste no s em pensar, mas tambm em agir de certo modo e em fazer determinadas coisas, bem como em avaliar outras. Os cientistas no apenas tm ideias acerca do seu objeto de pesquisa, mas tam-bm formulam, aceitam ou rejeitam ideias, utilizam instrumentos e julgam teorias, hipteses ou dados como adequados, bem confir-mados, confiveis, duvidosos etc.

    A cincia , pois, uma atividade, e essa atividade est institucio-nalizada, ou seja, configura uma estrutura social permanente ( maneira como so instituies o Estado, a famlia ou a educao), qual cabe uma funo na manuteno da sociedade. Cabe lem-brar que isso nem sempre foi assim: em outras pocas e culturas no houve uma instituio dedicada produo sistemtica desse tipo de conhecimento que denominamos cientfico, considerado desejvel e at imprescindvel. Em outros tempos, a produo des-se conhecimento foi casual, ou praticada por poucos homens, ou no considerada relevante, ou at hostilizada. Na nossa sociedade ocorre o contrrio: a cincia tem um lugar de destaque na cul-tura. Ela considerada imprescindvel, como forma de ampliar o saber confivel, como produtora de saber til nas suas aplicaes tecnolgicas, como elemento precioso na educao. Por ltimo, mas no menos importante, a atividade cientfica tem sua prpria

  • Filosofia da Cincia 17

    evoluo histrica, uma evoluo que entendida em termos de progresso: supe-se que a cincia de hoje melhor do que a cin-cia de todas as pocas passadas, que possumos mais e melhores conhecimentos cientficos do que os alcanados h cinquenta, du-zentos ou mil anos.

    Essa valorizao da cincia como instituio est vinculada a outro significado da palavra cincia. Ela designa tambm certa ati-tude do homem perante a Natureza, ou, mais amplamente, ante a realidade, natural ou social. Pensar cientificamente e praticar a cincia, confiar no conhecimento que ela produz e preferi-lo a ou-tros tipos de saber, tudo isso encerra um posicionamento humano com relao a quanto existe que no bvio nem inevitvel. Ao indagar cientificamente, o homem manifesta a convico de que a realidade pode ser compreendida de um modo que permita colo-car essa realidade sob controle humano.

    Essa convico inclui a certeza de que a compreenso e o do-mnio do mundo so em princpio indefinidamente ampliveis. Inclui tambm a convico de que essa compreenso deriva ape-nas do esforo humano e que o controle da realidade serve para melhorar a vida humana.

    Pois bem: essa atitude se diferencia (e at se ope) a ou-tras como reverenciar a Natureza, consider-la sagrada, desejar viver em harmonia com suas leis, ou sentir-se fa-talmente dominado por ela. A atitude cientfica contrasta tambm com a ideia de que nosso saber acerca das coisas, sobre tudo das mais importantes para nossa existncia, dependa de uma autoridade que nos transmita esse saber (mestres religiosos, escrituras consideradas sagradas, valor concedido tradio etc). Neste sentido, a cincia se pare-ce com a filosofia.

    Como atividade, como instituio e como atitude, a cincia orienta-se produo de certo tipo de conhecimento, sendo esta dimenso a que mais importa filosofia da cincia. Com efeito: na sua significao mais ampla, filosofar acerca da cincia abrange

    Indgenas do Norte da Argentina cultuam a Pachamama (a Me Terra)

  • 18 Filosofia da Cincia

    todas as reflexes filosficas que nos inspirem os diversos aspectos desse complexo fenmeno. Por conseguinte, a filosofia da cincia pode, em princpio, configurar um ramo da ontologia (perguntar-nos pelo tipo de realidade da cincia, pelo ser da cincia), da tica (como quando se problematiza a justificao moral de tais ou quais pesquisas), da filosofia poltica (quando indagamos a relao da cincia com o poder) e da antropologia filosfica (ao meditar sobre a significao da cincia na condio humana). Tudo isso poderia, sempre em tese, corresponder expresso filosofia da cincia.

    No entanto, a disciplina dessa denominao, a cuja caracteri-zao irei referir-me em seguida, focaliza a cincia desde a pers-pectiva do conhecimento por ela produzido. Ela , assim vista, a epistemologia do conhecimento cientfico.

    Relembrando o que vocs j estudaram, a Teoria do Conheci-mento a disciplina filosfica em que refletimos sobre o conhe-cimento humano em geral. Na filosofia da cincia o fazemos a propsito do conhecimento dito cientfico, em particular. Todas as questes da epistemologia geral (justificao do conhecimento frente mera opinio, limites do conhecimento, formas de conhe-cimento etc.) reaparecem, como veremos, a propsito do conhe-cimento cientfico. De igual modo retornam, por assim dizer, as aluses s grandes posies surgidas na histria da epistemologia, como o racionalismo, o empirismo e o pragmatismo. A questo da verdade no s permanece como se torna mais aguda na filosofia da cincia, na medida em que a verdade cientfica a propsito de um assunto qualquer costuma ameaar a validade de outras verda-des (vulgar, religiosa, metafsica).

    A filosofia da cincia reduziu-se epistemologia da cincia (ou concentrou-se nela, como se preferir) em virtude de um percur-so histrico ao qual me referirei seguidamente. Isso no significa, contudo, que ela no possa extrapolar os limites da epistemologia. Isso por vrias razes. Uma delas consiste em que na filosofia no h fronteiras insuperveis entre as suas diversas subreas. Um problema ontolgico pode conduzir a questes epistemolgicas (e

    Epistemologia outra palavra para designar a Teoria do Conhecimento.

    Na cincia tampouco existem fronteiras disciplinares fixas. A prova disso a existncia de disciplinas hbridas, como a fsico-qumica e a histria social, bem como a tendncia cada vez maior a pesquisas interdisciplinares.

  • Filosofia da Cincia 19

    vice-versa). Assuntos relativos tica acabam amide derivando a temas de filosofia poltica. As questes estticas (que s vezes do a impresso de exclurem outras ponderaes filosficas) suge-rem, ou so sugeridas por, questes metafsicas e epistemolgicas (como se adverte no Fedro de Plato e se coloca deliberadamente na Crtica da Faculdade de Julgar, de Kant). Outra razo que im-pede a clausura da filosofia da cincia em questes epistemolgi-cas a complexidade da prpria cincia. Ainda que concentremos nossa ateno no seu produto, o conhecimento, com frequncia nos vemos na necessidade de considerar a atividade cientfica para poder compreend-lo. Isto requer, com anloga frequncia, pres-tar ateno ao carter social, institucional e histrico da cincia. A terceira razo que impede reduzir a filosofia da cincia a questes puramente epistemolgicas responde pluralidade de orientaes dentro da prpria filosofia. Vocs j devem ter percebido que exis-tem diversos modos de entender e praticar a filosofia, quase tantos quantos filsofos importantes j existiram. possvel (e habitual) distinguir, todavia, linhas ou abordagens filosficas comuns a nu-merosos pensadores. No que tange filosofia da cincia, a aborda-gem predominante a analtica, no sentido da anlise conceitual do conhecimento e a atividade cientfica, que adota, conforme os autores, uma feio mais racionalista, empirista, pragmatista etc. Existe, no entanto, tambm uma abordagem hermenutica, isto , interpretativa, baseada na Fenomenologia, que se interessa pela cincia como uma modalidade especfica da existncia humana e da vivncia do mundo (diferente, por exemplo, da arte, da religio, da poltica). E existe tambm uma abordagem que frisa a dimen-so social e os aspectos polticos da cincia, que deriva do pen-samento marxista e que formula, de forma caracterstica, questes relativas vinculao da cincia com o poder e ao seu possvel papel ideolgico. Espero poder mostrar, ainda que parcialmente, contribuies dos trs enfoques ao longo desta disciplina.

    FenomenologiaA Fenomenologia um

    tipo de filosofia originada no pensamento do filsofo

    alemo Edmund Husserl (1859-1938), cujo intuito descrever e compreender a maneira de

    manifestar-se (phainomenon, em grego) o assunto que

    interessa ao filsofo.

  • 20 Filosofia da Cincia

    1.2 Histria da filosofia da cinciaNossa disciplina , conforme o critrio utilizado, muito antiga

    ou relativamente nova. Ela antiga, pois j os filsofos gregos a cultivaram, de algum modo, ao refletirem sobre o conhecimento humano. Constituem um exerccio embrionrio de filosofia da ci-ncia, bem como de metafsica, as doutrinas de Pitgoras (sobre os nmeros) e dos atomistas. No entanto, o primeiro precursor da filosofia da cincia foi Aristteles, que, principalmente na sua obra Segundos Analticos (uma das partes do Organon), se ocupou de caracterizar a epistme, o saber seguro, obtido metodicamente, diferena da mera opinio (doxa). Para Aristteles, uma autntica epistme (palavra que podemos traduzir por cincia), consistia na obteno de concluses certas deduzidas de primeiros princpios autoevidentes como verdadeiros. Para Aristteles, portanto, o co-nhecimento cientfico tinha o carter de verdade necessria, uma noo de cincia que haveria de perdurar no Ocidente durante dois mil anos. De particular importncia dentro do que podemos denominar a teoria aristotlica da cincia a sua doutrina das quatro causas (material, formal, eficiente e final) imprescindveis para a existncia de qualquer coisa, outra noo que teve longa aceitao. Apesar dessa contribuio, no existia no sistema aris-totlico uma disciplina denominada filosofia da cincia, o que se compreende porque, para ele e para a generalidade dos filsofos antigos e medievais, o que ns denominamos cincias (por exem-plo, a fsica) fazia parte da filosofia, a cincia primeira e mais im-portante. Isso explica que, at o sculo XVIII, as pesquisas de fsica fossem chamadas de filosofia natural.

    A ocupao dos filsofos com o saber cientfico durante a An-tiguidade e a Idade Mdia coincidiu assim com suas reflexes ou teses sobre o conhecimento, subordinadas a questes de ontologia e metafsica. Na Idade Mdia, estavam subordinadas tambm a questes teolgicas.

    O interesse filosfico pela cincia modificou-se grandemente quando do surgimento da cincia experimental moderna (sc. XVII), cujo modo de indagar a Natureza era diferente da maneira em que os filsofos procuravam compreend-la. medida que a

    Os primeiros princpios (axiomas) de cada cincia estavam, por sua vez, subordinados aos primeiros princpios de todo raciocnio: os princpios lgicos de identidade, de no-contradio e do terceiro excludo, que vocs estudaram em Lgica.

    A rigor, esboos ou prticas espordicas do que hoje entendemos como cincia experimental j haviam ocorrido na Antiguidade, no perodo helenstico (sculos IV a I a. C.), porm no se difundiram nem foram estimuladas pela cultura da poca, em grande parte por razes sociais. A explorao da Natureza fazia-se com base na fora da mo-de-obra escrava, o que no estimulava pesquisas orientadas pela inteno de aperfeioar as tcnicas de produo.

  • Filosofia da Cincia 21

    prtica da fsica e da astronomia, inicialmente, e da qumica e da biologia mais tarde, comeou a produzir conhecimentos aceitos como verdadeiros e que se mostravam teis (na minerao, na en-genharia, na navegao, na guerra), o contraste entre filosofia e cincia instalou-se de um modo que perdura at hoje. parte o mrito da utilidade (o saber filosfico tinha sido sempre entendi-do como contemplao desinteressada da realidade), o novo tipo de conhecimento impressionava os filsofos pelo consenso que produzia entre os pesquisadores e pelo acmulo de informaes confiveis sobre o mundo que ia gerando. Tudo isso, diferena da filosofia, ou melhor, dos diversos sistemas filosficos em perptuo conflito entre si. Esse conflito endmico havia alimentado, desde a poca dos gregos, posies cticas com relao ao conhecimento da Natureza (incluindo a natureza humana). Mas agora, isto , no incio do que denominamos Idade Moderna, um novo tipo de ati-vidade gerava um conhecimento sobre o qual no parecia possvel haver dvidas.

    verdade que a nova cincia foi sendo estimulada tambm por escritos de filsofos que criticavam a aparente esterilidade do saber cultivado nas Universidades, que se reduzia a conservar, repetir e comentar as obras de grandes mestres, a comear pelo prprio Aristteles. Esses filsofos reivindicavam um novo tipo de saber, procurando fundament-lo teoricamente. As duas figuras principais e emblemticas desse perodo so as de Francis Bacon e Ren Descartes (1596-1650). O primeiro escreveu, entre outros li-vros, o Novum Organon (novo instrumento do saber), em explcita oposio ao Organon de Artistteles. Bacon pregava a necessidade de que o cientista se pusesse em guarda contra os pr-conceitos (dolos, na sua terminologia) que impediam alcanar autntico conhecimento dos fatos naturais, pr-conceitos esses que incluam a excessiva reverncia com relao aos autores famosos. Bacon in-sistia tambm na importncia de acompanhar as observaes da Natureza com experimentos, ou seja, modificaes sistemticas dos fenmenos, que permitissem descobrir seu modo de produ-o. J Descartes, em seu famoso Discurso do Mtodo (de signifi-cativo subttulo: para bem conduzir a razo e encontrar a verdade nas cincias), colocou as bases da atitude racionalista analtica da cincia moderna. Sem desdenhar a importncia da observao,

    Francis Bacon

    Ren Descartes

    Contudo, hoje sabemos que a (prolongada) Idade Mdia

    europeia foi um perodo de criao ou introduo de inmeras tcnicas, e que

    diversas noes cientficas dos sculos XVII e XVIII no teriam sido possveis sem as reflexes

    dos pensadores dos sculos XIII a XV. No entanto, com

    conscincia da simplificao que implica, continua sendo

    correto afirmar que a cincia praticada a partir do sculo

    XVII foi radicalmente diferente da cincia anterior.

  • 22 Filosofia da Cincia

    Descartes enfatizou a importncia das matemticas na cincia na-tural, uma importncia reivindicada tambm (na teoria e na prti-ca) pelo seu contemporneo Galileu Galilei (1564-1642) ao afirmar que o livro da Natureza est escrito em caracteres matemticos.

    Vocs j sabem que a teoria do conhecimento, enquanto reflexo sobre o conhecimento humano, vista como prvia ao tratamento de todo assunto filosfico, surgiu com a Idade Moderna e constitui um dos seus fenmenos culturais caractersticos. Pois bem, pode considerar-se que as reflexes epistemolgicas modernas, enquan-to inspiradas pela emergncia da cincia moderna, representam um segundo antecedente da disciplina que atualmente denomi-namos filosofia da cincia. De Descartes a Kant (sc. XVIII), os filsofos refletiram sobre a cincia (scientia, em latim), sobre um saber bem fundamentado em que queriam poder incluir a filoso-fia, ou mais precisamente a metafsica, o (desejado) conhecimen-to da realidade em si mesma e seus primeiros princpios. Essa tentativa, como vocs j estudaram, mostrou-se impossvel, na medida em que Kant, ao explicar o sucesso das cincias empricas pela razo de que as mesmas se limitam ao mundo fenomnico (isto , realidade tal como ela aparece condicionada pelas nossas estruturas transcendentais), mostrou que a tentativa da filoso-fia metafsica tradicional era inatingvel. A Crtica da Razo Pura (complementada pela Crtica da Razo Prtica no que tange ao mbito da moral) equivaleu a declarar que to somente as pesqui-sas matemtico-experimentais mereciam ser reconhecidas como cincia, como autntico saber.

    Essa concluso foi endossada (ainda que rejeitando os argumen-tos kantianos no que diz respeito a uma subjetividade transcen-dental) pelo Positivismo, sobretudo na sua formulao por Augus-te Comte (1798-1857). Refiro-me tambm aqui a um assunto que vocs j estudaram, e devem lembrar que para Comte (conforme a sua pretensa lei dos trs estados da evoluo do conhecimen-to humano), a cincia emprica especializada, que renuncia pre-tenso de um saber absoluto, totalizador e definitivo, dedicando-se estabelecer fatos e leis que permitam explic-los e predizer a sua ocorrncia, representava a forma madura, adulta, do saber humano. A cincia, substituindo a religio e a metafsica, devia guiar e funda- Auguste Comte

    Kant registra, na Introduo da Crtica da Razo Pura, que a Metafsica ainda no havia encontrado, sua poca, o seguro caminho da cincia.

  • Filosofia da Cincia 23

    mentar a organizao da sociedade, cada vez melhor graas ao progresso cient-fico, tcnico e industrial. A filosofia de Comte (bem como a de outros positivis-tas como John Stuart Mill) constitui um terceiro momento significativo na evo-luo do que ainda no se denominava filosofia da cincia. o momento de glorificao do saber cientfico, que no cessava de expandir-se (durante o s-culo XIX, alm do crescimento e diver-sificao interna das cincias naturais d-se a constituio das cincias sociais tais como hoje as conhecemos: socio-logia, histria, antropologia, psicologia etc). Mesmo sem ter essa denomina-o, a filosofia de Comte j filosofia da cincia (embora no apenas isso). Comte no apenas situa o saber cient-

    fico na evoluo social da humanidade, como se detm em identifi-car os traos desse saber: a renncia a especular sobre entidades no observveis, o controle da imaginao pela observao, a substi-tuio da noo de causa pela de lei e, sobretudo, o carter relativo e progressivo de toda explicao cientfica. Esses atributos davam razo, para Comte, da superioridade da cincia sobre o saber vulgar e a legitimidade com que devia tomar o lugar que ocupavam, ainda naquela poca, as iluses metafsicas e religiosas.

    Durante a segunda metade do sculo XIX e comeo do sculo XX, fizeram contribuies isoladas filosofia da cincia diversos cientistas e filsofos (de formao cientfica). Entre os primeiros podemos lembrar Claude Bernard (1813-1878), William Whewell (1794-1866) e Pierre Duhem (1861-1916). Entre os filsofos, Ernst Mach (1838-1916) (que ocupou uma ctedra de epistemologia), Hans Vaihinger (1852-1933) e Alfred North Whitehead (1861-1947). A profissionalizao da filosofia da cincia comeou, no entanto, pelos esforos dos filsofos do Crculo de Viena (Ru-dolf Carnap, Otto Neurath, Moritz Schlick etc), sustentadores da

    Foto da superfcie do planeta Marte, com sonda espacial. De acordo com Comte, de nada nos servem puras fantasias sobre os tipos de vida que possam existir em Marte. A atitude que devemos ter com algo que queremos conhecer a de realizar observaes e experimentos cientficos para confirmar ou rejeitar nossas hipteses a seu respeito. Alm do mais, essa atitude nos leva necessariamente ao progresso da humanidade segundo esse mesmo autor.

  • 24 Filosofia da Cincia

    posio filosfica conhecida como empirismo lgico ou neopositi-vismo, que j lhes foi apresentada na disciplina de epistemologia.

    Os empiristas lgicos tinham por objetivo substituir a filosofia tradicional, de cunho metafsico, por uma nova concepo da filo-sofia, entendida como a atividade de analisar a linguagem cientfi-ca tendo como ferramenta de anlise a nova lgica matemtica.

    Por isso, no corao da filosofia da cincia estavam para eles os problemas do significado das expresses lingusticas e da veri-ficao das teorias (problemas que retomaremos no captulo II). Esta maneira de filosofar, denominada filosofia analtica, tornou-se dominante nesta disciplina e tpica da filosofia da cincia em lngua inglesa. Para isso contribuiu a disperso dos pensadores do Crculo de Viena, vrios dos quais eram judeus, quando da ascen-so do Nazismo. Eles emigraram para Inglaterra, Escandinvia e os Estados Unidos. Os empiristas lgicos e os filsofos da cincia por eles influenciados (como Carl Hempel e Ernst Nagel) culti-varam uma filosofia da cincia de carter marcadamente lgi-co, independente de questes histricas e psicolgicas. Ou seja, para eles o filsofo no se devia ocupar da evoluo histrica da cincia ou com as circunstncias sociais em que surgiram as teo-rias. Tampouco era assunto filosfico a maneira de pensar ou as crenas, motivaes e atitudes dos cientistas produtores do conhe-cimento cientfico. Aos empiristas lgicos est associada por isso a noo de que a filosofia da cincia se prope a reconstruir a lgica da cincia (mediante a anlise das expresses em que se formula o conhecimento cientfico). Cabe mencionar que na Frana a filoso-fia da cincia teve um carter diferente, mais ligado considerao da histria e da prtica efetiva dos cientistas. O principal represen-tante desta maneira de filosofar foi Gaston Bachelard (1884-1962).

    Simultaneamente aos esforos do Crculo de Viena foram sur-gindo as ideias de um outro pensador austraco, tambm ele emi-grado da sua ptria por algum tempo: Karl Popper (1902-1994). Este autor, ainda que em dilogo com os empiristas lgicos, criti-cava diversas teses dos mesmos, principalmente a convico da-queles filsofos de que a cincia nada tinha a ver com a metafsica Karl Popper

  • Filosofia da Cincia 25

    e que a filosofia da cincia consistia na anlise da linguagem cien-tfica. Para Popper, a nossa disciplina tinha por misso identificar a lgica da pesquisa (esta expresso corresponde ao ttulo da obra mais importante de Popper), concebendo a produo do conheci-mento como um processo evolutivo movido pela interao das te-orias propostas para explicar os eventos e o teste das mesmas, que pode resultar na sua rejeio Conjecturas e refutaes (o ttulo de outro dos seus livros): eis a mola propulsora do jogo da ci-ncia, segundo Popper. As teorias cientficas, por sua vez, ainda que diferentes das doutrinas metafsicas (conforme veremos me-lhor no captulo IV), incluam para Popper suposies metafsicas e/ou derivavam de doutrinas metafsicas. Dessa maneira, a filoso-fia da cincia, tal como praticada por Popper e seus seguidores (os que se autodenominaram racionalistas crticos), tornou-se uma disciplina mais abrangente da complexidade da cincia, extrapo-lando a pura anlise da linguagem cientfica. No entanto, Popper manteve a distino entre a filosofia da cincia e outras discipli-nas que tem por objeto a atividade cientfica: histria, psicologia e sociologia da cincia. Isso fez com que, apesar das diferenas, o empirismo lgico e o racionalismo crtico compartilhassem a con-vico de que a filosofia da cincia se ocupa exclusivamente com o contexto de validao (ou de justificao) das teorias, e no com o contexto de descoberta.

    Ou seja: interessa ao filsofo, conforme estes pensadores, no as circunstncias em que as ideias cientficas surgem (includa a pessoa do descobridor ou inventor), mas apenas o procedimento (no sentido do raciocnio lgico) pelo qual essas ideias so consi-deradas vlidas.

    Em um exemplo: no interessa, desde o ponto de vista filosfi-co, que a teoria da evoluo tenha sido proposta por um cientista ingls chamado Charles Darwin, que viveu em tal poca, que tinha tais ou quais peculiaridades, que trabalhou em um meio social e profissional de tais ou quais caractersticas etc. Importam apenas as razes pelas quais a comunidade cientfica aceitou e continua adotando a teoria darwiniana como verdadeira (ou mais possivel-

    A distino conceitual entre contexto de descoberta e contexto de validao

    (ou de justificao) foi formulada pelo filsofo Hans

    Reichenbach (1891-1953).

  • 26 Filosofia da Cincia

    mente verdadeira do que outras). A indagao filosfica seria a mesma caso a teoria tivesse sido formulada por outra pessoa, em circunstncias diferentes. Como se sabe, a teoria da evoluo foi concebida simultaneamente por outro pesquisador, Alfred Russell Wallace (1823-1913).

    Essa maneira de filosofar sobre a cincia literalmente em abs-trato foi a praticada pela maioria dos filsofos analticos da ci-ncia da primeira metade do sculo XX e a caracterizou como disciplina acadmica. Ao analisarem o conhecimento cientfico, os filsofos referiam-se histria da cincia to-somente para ilus-trar as suas teses, e consideraes de tipo psicolgico ou sociol-gico lhes eram completamente alheias. A prtica cientfica efetiva, sobretudo a contempornea, no estava includa na agenda da filo-sofia da cincia. Vale a pena mencionar que essa distncia intelec-tual fez com que os problemas tratados pelos filsofos da cincia (para no falar das suas teorias) foram por isso de pouco interesse para os cientistas. Os prprios exemplos citados pelos filsofos ao discutir problemas relativos lgica do procedimento cientfico eram amide tomados da experincia vulgar, o que lhes restava significao para os cientistas. Por exemplo: ao discutir as limita-es da induo, apelava-se para afirmaes como todos os cisnes so brancos (refutada quando foram encontrados cisnes pretos). Durante as dcadas de 1950 e 1960 essa maneira de conceber a fi-losofia da cincia comeou a mudar. Filsofos e cientistas filsofos como Michael Polanyi (1891-1976), Norwood R. Hanson (1924-1967) e Stephen Toulmin (1922- ) comearam a aproximar a re-flexo filosfica da prtica cientfica efetiva. Esse processo, que foi denominado posteriormente nova filosofia da cincia, culminou na obra A Estrutura das Revolues Cientficas (1962) de Thomas S. Kuhn (1922-1996). Este autor, fsico e historiador da cincia, defendeu naquele livro uma viso mais complexa da cincia. Essa complexidade refere-se tanto aos aspectos da cincia considerados quanto s perspectivas intelectuais desde as quais a cincia pers-crutada no livro.

    Com efeito, Kuhn focaliza ali a cincia como uma atividade es-sencialmente social e histrica, cujo sujeito so as comunidades

    Thomas S. Kuhn

    A tradio filosfica francesa foi diferente, mais ligada prtica cientfica e histria da cincia. Pode acrescentar-se que houve tambm uma filosofia crtica da cincia no mesmo perodo, por fora da disciplina acadmica caracterizada por esse enfoque logicista. Referir-me-ei a essa crtica no ltimo captulo.

  • Filosofia da Cincia 27

    cientficas e o conjunto de convices que elas professam (para-digma), bem como as mudanas radicais que a cincia experi-menta periodicamente (revolues).

    Kuhn se inspirou, declaradamente, em trabalhos de historiado-res da cincia, psiclogos, linguistas e socilogos, alm de alguns filsofos como W. Quine (1908-2000). O resultado uma combi-nao original (para seus admiradores) ou uma confuso perigo-sa (para seus crticos) de elementos tericos na compreenso da cincia.

    O livro de Kuhn (o mais citado desde ento na rea) tipicamen-te polmico: suas ideias (s quais irei me referir em detalhe no ca-ptulo V) no so de fcil aceitao, porm tampouco fcil evitar consider-las ao tratar de assuntos desta rea. Apesar da polmica (ou precisamente por causa dela), o trabalho de Kuhn deu origem a uma nova maneira de filosofar sobre a cincia, mais vinculada com a prtica dos cientistas, atuais ou do passado, que perdura at os nossos dias. A nova filosofia da cincia (tambm denomi-nada enfoque historicista) j no to nova assim, claro, mas tampouco passou como um modismo circunstancial (como algum crtico sugeriu poca). A filosofia da cincia tornou-se mais in-terdisciplinar (com relao s cincias e aos modos no analticos de filosofar sobre a cincia), descobriu novos temas e fomentou novas disciplinas cientficas, como a sociologia do conhecimento cientfico, de que trataremos mais adiante.

    Um aspecto, em particular, foi afetado por essa mudana da/na disciplina. E certamente, um aspecto crucial. A filosofia da cincia, digamos, tradicional, tinha um carter normativo. Boa parte da sua resistncia a incorporar consideraes de tipo histrico tinha a ver como sua pretenso de identificar a boa cincia, a cincia como ela deve ser. A isso apontavam os episdios da histria da cincia (de maneira tpica, referncias a Galileu, Darwin, Newton ou Eins-tein) em que o filsofo convidava a reconhecer os padres tericos em questo (p.ex., uma correta explicao cientfica). Se determi-nadas prticas cientficas no pareciam corresponder queles pa-dres tericos, isso s podia significar que se havia tratado de uma prtica defeituosa que, se tinha sido apesar disso bem sucedida,

  • 28 Filosofia da Cincia

    apenas ilustrava que podemos chegar verdade por caminhos par-cialmente errados.

    significativo que, quando Kuhn foi questionado no sentido de se sua viso da cincia era descritiva ou normativa, rejeitou esta lti-ma alternativa. Isso parece deixar a filosofia da cincia atual em uma situao problemtica. Seria seu propsito apenas descrever a cin-cia existente? Em tal caso, como se diferenciaria de uma pesquisa cientfica da prpria cincia (por exemplo, uma pesquisa sociol-gica)? Mas se o filsofo no pode limitar-se a descrever, tampouco pode atribuir-se o papel de legislador da prtica cientfica. Parece haver aqui uma dicotomia entre descrever e prescrever, que se con-verte num dilema. Mas o aparente dilema se desfaz, em minha opi-nio, se se atribui filosofia o propsito de refletir sobre alguma coisa para compreend-la, motivado pelo desejo de viver melhor.

    A filosofia da cincia, assim vista, busca detectar as pressuposi-es que do sentido cincia, no presente ou no passado, no que diz respeito a uma determinada disciplina (filosofia da fsica, por exemplo), a uma classe de disciplinas (filosofia das cincias natu-rais) ou a toda atividade cientfica.

    Aquelas pressuposies so de diverso tipo (conceituais, meto-dolgicas, ontolgicas, axiolgicas). Vejamos de que se trata. Os cientistas procuram explicar os fenmenos naturais ou sociais. O filsofo indaga: que significa explicar? Os cientistas constatam fatos. O filsofo indaga: que so fatos? O cientista pesquisa de ma-neira organizada, metdica. O filsofo indaga: em que consiste essa metodologia? Alm do mais: trata-se de uma metodologia geral, ou de procedimentos especficos? Os cientistas amide preferem as informaes quantitativas. O filsofo pergunta pela justificao dessa preferncia. Os cientistas referem-se a casos normais de tais ou quais fenmenos. O filsofo quer saber qual o critrio dessa normalidade. s vezes, o olhar do filsofo volta-se para o passa-do da cincia, e indaga, v.g., sobre o que Coprnico e seus pares entendia por teorizar. Ou se volta para uma cincia especfica e se pergunta se o que um psiclogo entende por causa o mesmo que um bilogo entende por tal.

    Uma atitude descritiva consiste em apenas apresentar, descrever os fatos que ocorrem; no caso aqui em questo, como a cincia ocorre. J uma atitude normativa consiste em dizer como algo que est sendo considerado deve ser para poder ser classificado como tal.

  • Filosofia da Cincia 29

    Como se v, as perguntas filosficas so potencialmente inme-ras. Atravs de todas elas persegue-se a mesma finalidade: esclare-cer o que se entende por cincia, em geral, ainda que esta ltima questo no seja formulada explicitamente. E se ela for colocada, a resposta ser tanto melhor quanto maior for a informao de que o filsofo disponha sobre a variedade de prticas cientficas, presentes e passadas. (Isso traz como consequncia que toda no-o geral sobre a cincia arriscada). Na situao ideal, o filso-fo deve possuir experincia do campo cientfico acerca do qual reflete. Reciprocamente, um cientista que filosofa acerca da sua ocupao deve possuir certa familiaridade com as questes e dou-trinas filosficas. Caso contrrio, arrisca-se a tecer consideraes ingnuas aos olhos do filsofo, digamos, profissional. J o pecado de quem filosofa sem suficiente informao cientfica a gerao de discursos infundados, de exaltar ou criticar uma cincia ima-ginria. Vale tambm aqui o princpio kantiano: conceitos sem intuies so vazios; intuies sem conceitos so cegas. Quanto ao resultado do filosofar, ele constitui, para o leigo, na adoo de uma atitude mais madura, porque esclarecida, sobre um aspecto fun-damental da sociedade atual. Para o cientista, ajuda a exercer mais lucidamente sua profisso, estimulando eventualmente mudanas que no ocorreriam se no tivessem surgido dvidas filosficas.

    Leituras recomendadas Observao: As referncias completas das leituras indicadas ao

    longo deste livro encontram-se no final do livro.

    O artigo La amplia agenda de la filosofa de la ciencia, do pro-fessor Gustavo Caponi, uma excelente exposio dos propsi-tos da filosofia da cincia. O captulo I do livro Epistemologia, de Mario Bunge, traz um til panorama da evoluo desta disciplina (com uma crtica do autor ao que denomina epistemologia arti-ficial). Deve levar-se em considerao que poca, Bunge, como outros autores, denominava epistemologia a filosofia da cincia. Um panorama mais amplo est contido no livro de John Losee, In-troduo histrica filosofia da cincia. Os primeiros trs captulos de A lgica da pesquisa cientfica, de Popper, so a melhor apresen-

    As reflexes de Einstein sobre o espao e o tempo que o conduziram a formular a

    teoria da relatividade so um bom exemplo do filosofar que

    estimula o progresso cientfico.

  • tao da sua viso da filosofia da cincia, ao passo que o livro de Brown, La nueva filosofia de la cincia, narra e explica muito bem a passagem da filosofia da cincia, entendida como reconstruo da lgica desta ltima, filosofia da cincia atenta prtica cientfica. Entre os textos clssicos vale a pena ler o Discurso do Mtodo de Descartes e o Novum Organon de Bacon. Ambos contm as bases da cincia moderna matemtico-experimental. Tambm a Intro-duo Crtica da Razo Pura de Kant. J o Discurso sobre o espri-to positivo, de Augusto Comte, expe a confiana na cincia como autntico saber. A posio antimetafsica dos positivistas lgicos tem seu texto mais caracterstico no artigo La superacin de la metafsica mediante el anlisis lgico del lenguage, de R. Carnap. De Thomas Kuhn, cujas ideias tratarei em detalhe no captulo V, vale a pena ler a introduo de A estrutura das revolues cientfi-cas. As lies sobre lgica de Kant (onde se encontra sua distino entre filosofia em sentido mundano e escolar) tm edio em por-tugus: Lgica (da ed. Tempo Brasileiro; ver o captulo III).

    Reflita sobre Em que consiste a atitude filosfica.

    Em que sentido a cincia interessa a quem filosofa.

    Os diversos aspectos da cincia.

    As diversas dimenses da filosofia da cincia.

    A filosofia da cincia como teoria do conhecimento cientfico.

    A histria do interesse filosfico na cincia.

    Os requisitos para que a filosofia da cincia seja rigorosa.

  • Captulo 2 O Conhecimento Cientfico

    Neste captulo veremos que as cincias se classificam em factuais e formais, conforme a ndole dos seus objetos. Trataremos tam-bm de trs questes filosficas fundamen-tais: a verificabilidade das afirmaes, o ca-rter metdico da pesquisa e a objetividade dos resultados da cincia.

  • O Conhecimento Cientfico 33

    2.1 Tipos de cinciasA cincia existe apenas como denominao comum de dife-

    rentes prticas ou disciplinas acadmicas e extra-acadmicas, cada uma das quais aborda, de maneira sistemtica, certo tipo de obje-tos, com diversos propsitos.

    Vale a pena comear por uma distino fundamental entre as cincias que tratam dos diversos fenmenos que nos so acess-veis mediante os sentidos (ajudados, eventualmente, por instru-mentos) e as cincias que tratam de entidades que consideramos apenas mediante o pensamento (auxiliado pela linguagem).

    Ou seja, distinguir entre cincias que tratam de objetos ditos concretos, e cincias que estudam objetos abstratos. Exemplos destes ltimos so os nmeros e as figuras geomtricas. O nmero oito, ou o tringulo, no so coisas que possamos perceber. Po-demos, sim, contar coisas percebidas e concluir que so oito em total, e podemos reconhecer um objeto como sendo triangular. No entanto, no vemos nem tocamos o oito ou a triangularidade. Os smbolos o desenhos com que a eles nos referimos so, para ns, conscientemente, meios de aludir a um tipo de entidades que s podem ser pensadas. Igual ocorre com as denominadas entidades lgicas. Uma contradio ou uma disjuno no so coisas que percebamos em si mesmas. O que reconhecemos so enunciados

  • 34 Filosofia da Cincia

    (concretos ou representados simbolicamente: p.ex. S P, Px), que contradizem outros enunciados ou so alternativas a eles. A lgica e a matemtica constituem o mbito das denominadas cin-cias formais ou cincias ideais, em virtude da natureza dos seus objetos. Se esses objetos (matemticas e lgicas) existem, em algum sentido, ou se se reduzem a convenes lingusticas, uma discus-so que pertence filosofia da matemtica e filosofia da lgica.

    J outras disciplinas investigam objetos e eventos de que pode-mos ter experincia, quer se trate de estrelas, rochas, gases, animais, pessoas ou artefatos. Os objetos concretos so aqueles que podemos perceber, que esto situados espacial e temporalmente, e que resul-tam uns de outros mediante formas de interao que costumamos denominar causas. De resto, esses objetos podem ser percebidos (ou sua existncia pode ser deduzida) de maneira indireta ou me-diata, como quando se vem micrbios mediante um microscpio, ou se constata a passagem de uma corrente eltrica ao mover-se a agulha de um aparelho. Estas cincias, referidas ao que de fato ocorre ou ocorreu, denominam-se cincias factuais (do latim factum, fato) ou cincias empricas, e compreendem a maioria das disciplinas que todos conhecemos: fsica, qumica, astronomia, botnica, zoologia, psicologia, sociologia, economia etc. Cabe ante-cipar que as cincias factuais admitem uma subdiviso, considerada mais ou menos importante conforme as convices dos epistem-logos, em cincias naturais e cincias humanas (ou sociais). Voltare-mos a essa distino em outro captulo.

    Costuma-se destacar que as cincias for-mais e as cincias factuais diferenciam-se, no apenas pela ndole dos seus objetos, mas tambm pelos procedimentos que lhes so tpicos.

    Quando se demonstra um teorema lgico ou

    matemtico no se recorre experincia: o

    conjunto de postulados, definies, regras de

    formao das expresses dotadas de signifi-

    cado, e as regras de inferncia dedutiva em

    resumo, a base da teoria dada necessria

    e suficiente para esse propsito. A demons-

    Os objetos lgicos e matemticos so, pelo contrrio, alheios ao tempo e o espao (atemporais, costuma-se dizer), e as suas relaes no so causais (o agregado de duas unidades a trs unidades no causa a existncia de cinco unidades).

    Vista de hemcias a partir de microscpio. Atente para como a atividade cientfica justifica que esses objetos, apesar de no serem vistos por nossos sentidos, existem no espao e no tempo.

  • O Conhecimento Cientfico 35

    trao dos teoremas no mais do que uma deduo: uma operao

    limitada esfera terica, embora s vezes os prprios teoremas (no as

    suas demonstraes), sejam sugeridos em alguma esfera extra-matem-

    tica, e ainda que sua prova (porm no sua primeira descoberta) possa

    ser realizada com ajuda de calculadoras eletrnicas (Bunge, 1972, p. 12).

    Nas cincias factuais, a situao completamente diferente. Em primeiro

    lugar, elas no empregam smbolos vazios (variveis lgicas), mas apenas

    smbolos interpretados: por exemplo, no contm expresses tais como

    x F, que no so verdadeiras nem falsas. Em segundo lugar, a racionali-

    dade isto , a coerncia com um sistema de ideias previamente aceito

    necessria, porm no suficiente para os enunciados factuais; em parti-

    cular, a subordinao a um sistema de lgica necessria, mas no uma

    garantia de que se obtenha a verdade. Alm da racionalidade, exigimos

    que os enunciados das cincias factuais sejam verificveis na experincia,

    seja indiretamente (no caso de hipteses gerais), seja diretamente (no

    caso das consequncias particulares das hipteses (Bunge, 1972, p. 14).

    A distino anterior no significa que ambos os tipos de cincia no tenham intervinculaes. A lgica e a matemtica so culti-vadas por si mesmas, porm tambm servem de instrumentos nas cincias factuais. A lgica (sobretudo a lgica clssica, de dois va-lores: verdadeiro ou falso) pressuposta em toda argumentao cientfica, e as matemticas so inerentes boa parte da pesquisa emprica. Reciprocamente, existem pesquisas histricas, psicol-gicas e sociolgicas das cincias formais.

    2.2 A questo da verificabilidadeNo campo das cincias formais, as noes de deduo e demons-

    trao so suficientemente claras como para que as concluses no sejam confundidas com simples opinies. H pouca possibilidade de questionar, nesse sentido, as cincias formais, nem de confundi-las com especulaes no cientficas. Diferente o caso das cincias factuais. Nelas, certa noo vulgar da cincia supe que os cientis-tas constatam fatos (como algo diferente de meras aparncias ou suposies), e que elaboram teorias para explic-los que so ver-dadeiras porque foram verificadas. Desse modo, a cincia parece diferenciar-se das doutrinas metafsicas, das fantasias e dos mitos.

  • 36 Filosofia da Cincia

    O filsofo Karl Popper achou pro-blemtica essa maneira de justificar a cientificidade das teorias. Em particular, questionou a convico de que as teorias tidas como verdadeiras sejam aquelas que parecem continuamente confirma-das pelos dados referentes aos objetos do seu domnio. Conforme a famosa argu-mentao de Hume, que vocs j conhe-cem, nenhuma afirmao logicamen-te validada por qualquer nmero de observaes que a apoiem (o que se co-nhece na literatura filosfica como pro-blema lgico da induo), j que sempre existe a possibilidade de que uma nova observao a desminta. Popper apelou a essa famosa crtica para rejeitar a identificao entre uma teoria at ento confirmada e uma teoria verdadeira. Vale lembrar que isso o que, etimologicamente, significa a palavra verificar: tornar ou fazer verdadeira uma crena. Mais importante ainda, Popper achou suspeita a noo de que uma teoria fosse sempre confirmada pelos dados (ou pelos fatos, como se costuma dizer).

    Contra a confiana na verificao, Popper assinalou a necessi-dade de que, para que uma teoria fosse de natureza cientfica, ela pu-desse, em princpio, ser tambm desconfirmada pelas observaes.

    Nas palavras deste autor: A teoria que no for refutada por qualquer acontecimento concebvel no cientfica. A irrefutabili-dade no uma virtude, como frequentemente se pensa, mas um vcio (Popper, 1984a, p. 66). Ao formular uma teoria, dever-se-ia saber de antemo no apenas quais tipos de dados apoiariam a te-oria, mas tambm quais dados a refutariam. Com outras palavras: uma teoria cientfica uma teoria falsevel, uma teoria que pode ser declarada falsa. Esta proposta de Popper conhecida como o princpio de refutabilidade ou de testabilidade como critrio da cientificidade. Todo teste genuno de uma teoria uma tentativa

    O fato de algo ocorrer vrias vezes no significa que sempre ir ocorrer. Por exemplo, o fato de a gua ferver sempre que a colocamos em contato com a chama durante algum tempo nada prova sobre se a gua sempre ferver nessas condies.

  • O Conhecimento Cientfico 37

    de refut-la, sustentou Popper. Para que uma teoria seja fiel a esse princpio, necessrio que os termos em que esteja formulada no sejam ambguos, e que os dados contra os quais ser testada a teo-ria no estejam previamente interpretados pela prpria teoria. (Se a teoria que estou formulando afirma que todos os objetos da clas-se x tm a propriedade y, mas a prpria teoria interpreta esses objetos como possuindo a mencionada propriedade, claro que a teoria parecer sempre verificada). Uma teoria que tropea com refutaes deve ser modificada ou substituda por uma outra. E uma teoria que no foi refutada pelas observaes e experimentos at ento realizados uma teoria que pode ser considerada verda-deira provisoriamente. Desde um ponto de vista lgico, a proposta popperiana se fundamenta na figura lgica conhecida como mo-dus tollens: quando de um dado antecedente se segue certo conse-quente (P ento Q), porm esse dado consequente no ocorre (no Q), podemos afirmar que o antecedente no verdadeiro (no P). A recproca no vlida: se o consequente ocorre, no podemos estar certos da validade do antecedente (o que se denomina em lgica falcia de afirmao do consequente).

    O critrio popperiano de refutabilidade soluciona, conforme seu autor, a questo da demarcao entre cincia a no cincia, entre teorias cientficas e teorias no cientficas (metafsicas, fa-lando de um modo geral). necessrio salientar que este critrio no visa separar a verdade da falsidade, de modo absoluto. Ele no implica que as teorias cientficas sejam verdadeiras, e as no cien-tficas (mitos, doutrinas filosficas etc.) sejam falsas. Por um lado, a verdade de uma teoria cientfica (ainda) no refutada , como vimos, provisria. Por outro lado, doutrinas no cientficas podem ser reformuladas s vezes de modo a serem testadas. O problema das teorias no cientficas no que sejam falsas, mas que no h modo de decidir se so verdadeiras ou falsas. A possibilidade de reformul-las explica, segundo Popper, que mitos e especulaes metafsicas tenham originado s vezes teorias cientficas. De igual modo rejeitou Popper a confuso entre sua proposta e a dos em-piristas lgicos, que declaravam carentes de significado as teo-rias no testveis. Conforme os empiristas lgicos, o significado de uma afirmao (no caso, uma teoria) consistia na maneira em que poderia ser verificada, ou seja, a maneira em que seus termos

    A regra de substituio ou modificao da teoria

    vale como princpio. No entanto, pode haver razes circunstancias que tornem conveniente manter ainda

    por um tempo a teoria, como veremos mais adiante ao tratar dos paradigmas

    cientficos.

  • 38 Filosofia da Cincia

    no lgicos podiam ser relacionados com dados empricos. Como isso no possvel, obviamente, no que diz respeito a noes me-tafsicas (Deus, infinito, sentido da vida etc.), as afirmaes que se referem a elas foram declaradas pseudoenunciados, expresses carentes de significado cognitivo.

    Uma doutrina metafsica no para Popper (necessariamente) um conjunto de pseudoenunciados. Em sntese: o critrio de re-futabilidade no um instrumento de excluso das ideias no cientficas: apenas um instrumento de distino. Alm do mais, a crtica popperiana visava demonstrar que a induo no a via pela qual so obtidas as ideias cientificamente aceitas. Os cientistas procedem, segundo ele, por conjecturas e refutaes (como reza o ttulo de um dos seus livros) de modo dedutivo, for-mulando teorias e submetendo-as a teste emprico. As sucessivas refutaes e modificaes ou alteraes das teorias constituem o processo evolutivo da cincia.

    2.3 A cincia como saber metdico ideia tradicional da cincia corresponde tambm a convico

    de que os cientistas tm uma maneira especial de proceder quando pesquisam, pondo em prtica o mtodo cientfico.

    O filsofo Mario Bunge (1920- ) defende a existncia desse mtodo, que entende ser a estratgia geral de toda e qualquer pes-quisa cientfica, no importando o assunto a que se refira. Trata-se de uma srie de etapas que o autor descreve da seguinte maneira:

    (1) Descobrimento do problema ou lacuna num conjunto de conheci-

    mentos. Se o problema no estiver enunciado com clareza, passa-se

    etapa seguinte: se o estiver, passa-se subsequente.

    (2) Colocao precisa do problema, dentro do possvel em termos mate-

    mticos ainda que no necessariamente quantitativos. Ou ainda, recolo-

    cao de um velho problema luz de novos conhecimentos (empricos

    ou tericos, substantivos ou metodolgicos).

    (3) Procura de conhecimentos ou instrumentos relevantes ao problema

    (p.ex., dados empricos, teorias, aparelhos de medio, tcnicas de clculo ou

    de medio). Ou seja, exame do conhecido para tentar resolver o problema.

    Os significados de induo e deduo so explicitados na disciplina de Lgica. Se ainda houver problemas para entender os mesmos, visite o livro de tal disciplina para compreend-los.

    Mrio Bunge um fsico e filsofo argentino, atualmente atuando na McGill University, no Canad.

  • O Conhecimento Cientfico 39

    (4) Tentativa de soluo do problema com auxlio dos meios identifica-

    dos. Se a tentativa resultar intil, passa-se para a etapa seguinte: em caso

    contrrio, subsequente.

    (5) Inveno de novas ideias (hipteses, teorias ou tcnicas) ou produ-

    o de novos dados empricos que prometam resolver o problema.

    (6) Obteno de uma soluo (exata ou aproximada) do problema com

    o auxlio do instrumental conceitual ou emprico disponvel.

    (7) Investigao das consequncias da soluo obtida. Em se tratando

    de uma teoria, procura de prognsticos que possam ser feitos com seu

    auxlio. Em se tratando de novos dados, exame das consequncias que

    possam ter para teorias relevantes.

    (8) Prova (comprovao) da soluo: confronto da soluo com a totali-

    dade das teorias e da informao emprica pertinente. Se o resultado

    satisfatrio a pesquisa dada por concluda at novo aviso. Do contr-

    rio, passa-se para a etapa seguinte.

    (9) Correo das hipteses, teorias, procedimentos ou dados emprega-

    dos na obteno da soluo incorreta [se tal foi o caso]. Esse , natural-

    mente, o comeo de um novo ciclo de investigao.

    (Bunge, 1980a, p. 25)

    Dessa estratgia geral devem diferenciar-se as tcnicas espec-ficas de cada disciplina ou tipo de disciplina. Os procedimentos para demonstrar um teorema, ou para determinar a solubilidade de uma substncia, ou para caracterizar um tipo de comportamen-to humano so obviamente diferentes. Alm do mais, as tcnicas evoluem e proliferam constantemente.

    Destarte, a cincia una se consideramos a aplicao de uma mes-ma estratgia em diferentes campos disciplinares; ela diversa ou plural (as cincias) se consideramos a multiplicidade de tcnicas que exigem os diferentes tipos de objetos e momentos das pesquisas.

    Os passos (5) e (6) da anterior sequncia merecem um comen-trio no que tange a inventar novas hipteses ou teorias quando os conhecimentos disponveis no so suficientes para resolver o problema. Dessa hiptese ou teoria o cientista deduz (antecipa)

    A sonda espacial Phoenix, lanada pela NASA em Marte,

    cuja imagem voc tem presente no captulo 1, um exemplo

    de instrumento utilizado pelo cientista para verificar suas

    hipteses. Os dados registrados pela sonda iro confirmar ou refutar previses decorrentes

    das hipteses dos cientistas acerca da existncia de gua

    naquele planeta.

  • 40 Filosofia da Cincia

    consequncias que devero ocorrer caso o recurso inventado seja adequado. Essas consequncias antecipadas (certas ocorrncias possveis, empricas ou tericas, conforme o campo) sero con-frontadas com ocorrncias efetivas (na observao, experimen-to ou demonstrao). o momento do teste das ideias. Assim visto, o mtodo cientfico coincide com o denominado mtodo hipottico-dedutivo, procedimento que constituiria o ncleo de toda pesquisa que amplia nosso saber. Podemos, portanto, sinte-tizar a posio de Bunge dizendo que um defensor do mtodo hipottico-dedutivo (defendido por outros filsofos como Popper e Carl Hempel). De resto, esta forma de entender a metodologia cientfica subjacente aos livros introdutrios mesma.

    A defesa, por parte de Bunge, da existncia de uma metodologia cientfica geral, no significa que ele a considere suficiente para re-alizar uma boa pesquisa. A metodologia sem dvida necessria, porm no dispensa a experincia nem exclui a originalidade. O mtodo no uma receita, dado que no h receita para a criati-vidade nem regras que nos ponham a coberto de imprevistos ou de procedimentos que no do certo. O mtodo cientfico for-ma, porm no informa, sintetiza Bunge. A confiana que Bun-ge deposita na existncia de uma metodologia cientfica universal reflete uma atitude comum aos filsofos da cincia da primeira metade do sculo XX. Autores relevantes desse perodo, como Ernest Nagel (1901-1985), referiam-se tambm a esse mtodo como a lgica geral, tcita ou explicitamen-te empregada para apreciar os mritos de uma pesquisa (Nagel, 1978, p. 19). A Lgica da Pesquisa Cientfica o ttulo da obra mais importante de Karl Popper.

    No entanto, a considerao da prtica efetiva da cincia que foi impulsionada pela obra A Estrutura das Revolues Cientficas, de Th. Kuhn, j mencionada, comeou a susci-tar dvidas acerca da existncia dessa metodologia geral. Por outra parte, as disciplinas e atividades de pesquisa so to diversificadas que pode resultar difcil encontrar prin-cpios ou padres de procedimento que sejam realmente comuns. Pense-se na diferena entre a busca de demons-trar um teorema, a observao das prticas de uma cultura,

    o cientista, no o mtodo, quem produz as hipteses que testa metodicamente. Na ilustrao acima, Louis Pasteur pesquisando a existncia dos micro-organismos sobre cuja existncia tinha formulado hipteses.

  • O Conhecimento Cientfico 41

    a interpretao das imagens detectadas ao microscpio etc. Essas dvidas encontraram a sua expresso mais forte (e polmica) no livro Contra o Mtodo, publicado em 1975 pelo filsofo austraco Paul Feyerabend (1924-1994).

    Conforme este autor, a crena na existncia de um mtodo geral da cincia no passa de uma iluso, uma sorte de mito filosfico.

    A ideia de conduzir os negcios da cincia com o auxlio de um m-

    todo que encerre princpios firmes, imutveis e incondicionalmente

    obrigatrios v-se diante de considervel dificuldade quando posta em

    confronto com os resultados da pesquisa histrica. Verificamos, fazen-

    do um confronto, que no h uma s regra, embora plausvel e bem

    fundamentada na epistemologia, que deixe de ser violada em algum

    momento. Torna-se claro que as violaes nas so eventos acidentais,

    no so o resultado de conhecimentos insuficientes ou de desateno

    que poderia ter sido evitada. Percebemos, ao contrrio, que as violaes

    so necessrias para o progresso. (Feyerabend, 1977, p. 29).

    Feyerabend ilustra a convico anterior com diversos exemplos histricos conforme os quais os pesquisadores nem sempre respei-tam o critrio popperiano de falseabilidade, seja porque defendem novas teorias que no tm total apoio factual, seja porque mantm teorias consagradas apesar de elas no estarem de acordo com ob-servaes importantes. Os cientistas tampouco respeitam sempre a regra que prescreve evitar hipteses ad hoc, nem a condio de coerncia, que exige que hipteses novas devam estar de acordo com teorias reconhecidas como vlidas. Teorias que acabam sen-do consideradas como racionais e bem fundamentadas percorrem muitas vezes um longo caminho prvio, vistas como opinies in-coerentes e sem base emprica. Por outra parte, as discusses dos cientistas a propsito dos mritos de uma nova teoria ou hipte-se no correspondem imagem que delas fazem os filsofos: uma pura troca de argumentos, mas constituem um complexo processo em que os argumentos se misturam com recursos retricos e at com o reflexo de fatores sociais. Feyerabend ilustra essas ideias me-diante uma demorada anlise do modo de proceder e argumentar de Galileu, quem, convencido da verdade da teoria copernicana, no teria vacilado em defend-la (segundo Feyerabend) median-te recursos retricos, e at com atitudes desonestas, como ocultar

    As hipteses ad hoc (literalmente: para isso) so

    suposies introduzidas especificamente para salvar

    teorias que parecem no estar bem respaldadas por

    certas observaes (ou, mais amplamente, para evitar

    dificuldades com que se deparam as teorias). Desde o ponto de vista do critrio

    de falseabilidade de Popper, constituem um recurso esprio,

    vale dizer, algo que prejudica a credibilidade de uma teoria.

    Paul Feyerabend

  • 42 Filosofia da Cincia

    dados que pareciam contradizer aquela teoria. Em definitivo, para Feyerabend a cincia um procedimento anrquico, de tal modo que o nico princpio que no inibe o progresso : tudo vale. Isso quer dizer que pode ser conveniente, conforme as circunstncias, apelar para hipteses que contradizem teorias bem confirmadas ou resultados experimentais bem estabelecidos, e estar persuadido de que qualquer ideia, embora antiga e absurda, capaz de aperfeio-ar o nosso conhecimento. Feyerabend lembra que a ideia de que a Terra se move na verdade uma ideia estranha (ao senso comum) e foi considerada ridcula por astrnomos da Antiguidade quando sugerida pelos pitagricos. No entanto, foi retomada por Copr-nico e contribuiu para a teoria que hoje consideramos verdadeira.

    As ideias de Feyerabend tm sido, compreensivelmente, objeto de muitas polmicas, tanto por parte de filsofos como de histo-riadores da cincia (sua interpretao de Galileu resultou espe-cialmente provocativa), porm elas tm contribudo para aguar o sentido da complexidade desta problemtica. possvel que, assim como no tocante a outros tpicos desta disciplina (v.g., a relao da cincia com valores, que examinaremos em um captulo posterior), a verdade esteja num meio termo entre as posies de Bunge e de Feyerabend. pouco provvel que os cientistas trabalhem sempre conforme as sequncias descritas por Bunge, at porque na atuali-dade as pesquisas (sobretudo nas cincias naturais) so realizadas por equipes em que cada pesquisador executa tarefas parciais. No entanto, e pelas mesmas razes, igualmente pouco provvel que eles se comportem, costumeiramente, da maneira anrquica alegada por Feyerabend. Cabe perguntar-se, tambm, de que tipo de cincia estamos falando ao discorrer sobre sua metodologia. Em outros captulos abordaremos a diferena entre cincia pura e cin-cia aplicada, bem como entre a cincia conservadora (normal) e a revolucionria. Conforme os casos, o respeito de uma estratgia de pesquisa imaginada como metodologia geral pode ser mais ou menos vigente. Como tema de reflexo, o mtodo cientfico no pa-rece estar esgotado. A prova um livro como Scientific Method, de Bary Gower, publicado em 1997, que defende a existncia de um fio condutor comum nas propostas ou prticas de grandes cientistas e filsofos da cincia, desde o sculo XVII ao sculo XX.

    Feyerabend defendeu-se da acusao de estar atribuindo aos cientistas uma conduta arbitrria ou extravagante, explicando que o famoso slogan tudo vale apontava para o fato de que nenhuma regra, critrio ou procedimento sempre vlido ou nunca aplicvel.

  • O Conhecimento Cientfico 43

    2.4 A objetividade da cinciaA discusso acerca da metodologia cientfica particularmente

    relevante no que diz respeito ao carter objetivo tradicionalmente atribudo ao conhecimento cientfico. Esse atributo significa or-dinariamente que o que se conhece cientificamente vlido para todos, que no se trata de meras crenas subjetivas nem depende de condies especiais (p.ex., de uma f religiosa). Ao afirmar que o saber cientfico vale para todos, importante reparar em que se subentende: todos os que possuem a devida competncia (em matemtica, qumica, sociologia etc.). Outra maneira de enunciar essa propriedade dizer que o conhecimento objetivo aquele in-tersubjetivamente vlido, como destacou Popper.

    Notemos que, em um certo sentido, trata-se de uma noo de objetividade a que apelamos j no mbito do saber vulgar. Aceita-mos uma afirmao como objetiva quando todos podemos com-preend-la e verific-la, quando aquilo a que se refere essa afir-mao comum, acessvel a todos do mesmo modo, como por exemplo, a afirmao de que este texto est redigido em portugus. Diferenciamos esse tipo de afirmaes daquelas que se prendem a peculiaridades de quem as enuncia, ou se referem a algo que to-somente ele vivencia, no podendo ser testadas pelos demais. Quando algum diz que um objeto belo, possvel que sua afir-mao no suscite consenso, porque as outras pessoas podem ter uma diferente sensibilidade esttica. De igual maneira, a afirma-o de alguma pessoa que diz sentir dor de cabea ou estar emo-cionada refere-se a algo que no podemos experimentar, sendo plausvel que duvidemos do que ela afirma.

    Para podermos compreender e concordar com determinadas afirmaes, necessrio que tenhamos capacidades comuns, exer-cidas em grau normal. O mero reconhecimento da afirmao este mvel uma escrivaninha supe que vemos aquilo de que est se falando e que mveis e escrivaninhas nos so familiares (uma ha-bilidade cultural). Mais importante ainda, o consenso favorecido pela utilizao de uma linguagem comum, tanto quanto possvel unvoca (=no ambgua) e sem conotaes subjetivas. por isso que palavras como lindo ou importante podem prejudicar o

    O que se considera normal depende das circunstncias:

    estado de sade, idade, escolaridade, formao profissional etc. Um ser

    humano adulto normal diferencia a cor azul da cor vermelha; uma pessoa que

    estudou geometria identifica normalmente um tringulo

    equiltero; um bilogo identifica normalmente uma

    ameba etc.

  • 44 Filosofia da Cincia

    consenso necessrio para que concordemos em que algo lindo ou importante objetivamente, ou em si.

    Ou seja, a questo da objetividade comea em nvel lingusti-co, de onde a relevncia da linguagem cientfica. De certo modo, a linguagem utilizada o mtodo bsico da cincia. As cincias, mesmo quando se utilizam da linguagem vulgar, o fazem de ma-neira a conseguir a univocidade antes mencionada, principalmen-te definindo os termos essenciais (planeta, nmero, evoluo, tabu etc.) de maneira a estabelecer um vocabulrio estritamente comum. Para tornar ainda mais rigorosa a comunicao, as cin-cias chegam a criar linguagens artificiais, como nos casos da mate-mtica e da qumica.

    Alm de uma linguagem apropriada, a objetividade cientfica supe, como a objetividade da vida quotidiana, a posse comum de crenas e habilidades por parte dos pesquisadores. Em espe-cial, o domnio de tcnicas e recursos instrumentais. A objetivida-de cientfica , certamente, questo de mtodo(s) que permita(m) alcanar e manter aquele controle intersubjetivo das afirmaes de que estamos tratando. A meta do mesmo , como a prpria pa-lavra objetividade est adiantando, a concordncia com o objeto pesquisado. Os consensos, quando alcanados, so considerados como indcio de que essa concordncia efetiva. Devemos fazer, contudo, algumas observaes inter-relacionadas. Objeto, a ri-gor, uma palavra relativa ou relacional. Ela remete a uma outra: sujeito. (Assim como esquerda remete a direita). Esse o senti-do preciso da expresso objeto, como observou Kant na Crtica da Razo Pura, ainda que amide usemos a palavra como sinnimo de algo ou uma coisa. Alm do mais, aqui estamos falando do objeto de conhecimento. Seu correlato , portanto o sujeito de conhecimento. Ora, se se tratasse de qualquer conhecimento, este sujeito seria varivel (quem manifesta sua tristeza um sujeito que se refere a um certo objeto, a ele acessvel). Mas na cincia (como em boa parte da vida quotidiana), a um conhecimento objetivo corresponde determinado tipo de sujeito. Costuma-se falar do sujeito epistmico, que equivale a essa espcie de subjetividade, no peculiar ao indivduo, mas comum a ele e outros de uma idn-tica formao profissional. Ao fazermos um clculo matemtico,

    A essas crenas comuns retornaremos, em outro captulo, ao considerar o que se vem denominando paradigmas cientficos.

    Controle intersubjetivoLembre que controle intersubjetivo quer dizer que outros sujeitos podem compreender e verificar o que um sujeito afirma.

  • O Conhecimento Cientfico 45

    p.ex., adotamos ou assumimos determinada subjetividade. A mes-ma coisa ocorre quando estamos em condies de compreender, aceitar, criticar etc., uma afirmao do campo da fsica, da astro-nomia, da psicologia etc.

    Na pesquisa cientfica, a objetividade, enquanto controle inter-subjetivo, visa objetos do correspondente domnio (sejam enti-dades concretas ou abstratas), sob a perspectiva de determinada indagao. Uma pesquisa no trata, p.ex., dos vertebrados, mas da forma como os vertebrados evoluram (ou ainda, como tal tipo de vertebrado evoluiu). Uma pesquisa matemtica no visa um teorema, mas a demonstrao do mesmo. Uma pesquisa psicol-gica no visa o comportamento das pessoas, mas as causas de tal ou qual comportamento. Aquilo que constitui o alvo, por assim dizer, da pesquisa, o objeto de conhecimento, ao qual se referem todas as atividades prprias dessa pesquisa e que por isso deve ser cuidadosamente definido ou delimitado desde o comeo.

    A aspirao a ser fiel ao objeto de conhecimento, que caracteriza a atitude cientfica objetiva, tem ainda uma condio: o controle dos fatores que podem perturbar o controle intersubjetivo bem su-cedido das afirmaes. Elementos presentes no sujeito (individual) de conhecimento tais como sentimentos, interesses no cognitivos e preconceitos devem ser reconhecidos e mantidos sob (outro tipo de) controle. As nossas preferncias ou averses, as crenas que

    compartilhamos com outras pessoas (da fam-lia, da classe social etc.) to profundamente que nos parecem simplesmente indicar o bvio, o racional, o normal, devem ser assunto de cr-tica e autocrtica dos pesquisadores. Trata-se da iseno ou neutralidade do cientista ao pes-quisar. Ela no fcil de se praticar, particular-mente no campo das cincias humanas, onde os preconceitos se fazem sentir mais fortemente. A boa cincia exige que o cientista esteja alerta com relao aos fatores que podem perturbar e distorcer sua objetividade, tanto em si mesmo como nos demais. A crtica recproca dos cien-tistas auxilia a reduzir a influncia desses fatores

    Se um antroplogo no consciente dos seus preconceitos com relao ao seu objeto de pesquisa, por exemplo, determinada cultura indgena, poder distorcer o significado do que observa.

    Ajuda aqui a etimologia: de-finir, de-limitar, denota

    estabelecer limites. Pode tambm dizer-se que o objeto

    de conhecimento o objeto sob determinada perspectiva (a

    questo colocada). A filosofia escolstica medieval falava

    da distino entre objeto material e objeto formal. Aqui

    nos referimos a este ltimo.

  • 46 Filosofia da Cincia

    que distorcem os resultados da pesquisa. Com a mesma finalidade so utilizadas tcnicas especiais, como a de utilizao de amostras aleatrias nas pesquisas empricas. Voltaremos a esta questo no captulo 7, ao tratar da relao da cincia com valores.

    O conhecimento obtido dessa maneira pblico (por opo-sio ao conhecimento privado que uma pessoa tem de suas prprias lembranas, ou da experincia que tem da sua prpria casa, p.ex.). Esta condio levou Popper a sustentar a autonomia do conhecimento objetivo, que constituiria um terceiro mundo, diferente do mundo das coisas materiais e do mundo dos nossos estados psquicos. As teorias e explicaes cientficas, e at os pr-prios problemas, seriam, segundo Popper, realidades sui generis que no se confundiriam nem com eventos fsicos, nem com cren-as. As teorias, por exemplo, so pensadas (o que constitui uma atividade psquica) por seres humanos (materiais) e so expressas por escrito (portanto, materialmente), porm em si mesmas, as te-orias no so nem materiais nem psquicas. Elas podem sobrevi-ver a uma catstrofe que destrusse a humanidade, contanto que ficassem registradas (v.g., em livros) para serem reaprendidas. A doutrina popperiana suscitou diversas crticas e , de modo geral, rejeitada como exagerada, visto que sugere que os conhecimentos existiriam independentemente dos seres humanos, sendo antes descobertos do que produzidos por estes ltimos (Popper compa-rou sua posio com a teoria das Ideias de Plato). No entanto, ela aponta para uma questo importante: a da validade transubjetiva do conhecimento, principalmente o cientfico.

    Essa validade tem como respaldo a ideia da racionalida-de como capacidade universal dos seres humanos. devido a sermos todos racionais que reconhecemos a correo (ou ques-tionamos a incorreo) de uma demonstrao, uma teoria, uma explicao cientficas. Por outra parte, a validade transubjetiva do conhecimento se v reforada quando a cincia analisada pres-supondo o realismo, metafsico e epistemolgico. Vale dizer, quan-do se supe que a realidade algo existente com independncia de nossas pesquisas, e que possui uma organizao ou estrutura prpria. Nesse caso, o conhecimento concebido como represen-tando, aproximadamente, a estrutura do real. A validade transub-

    Popper apresentou essa doutrina no seu livro Conhecimento Objetivo.

  • O Conhecimento Cientfico 47

    jetiva do conhecimento sugere que essa estrutura foi efetivamente atingida. Esse modo de raciocinar vale para as cincias factuais. No caso das cincias formais problemtico, porque supe que as entidades lgicas e matemticas tm um tipo de existncia pecu-liar, o que discutvel, como j mencionei. Cumpre notar, toda-via, que a fora com que o resultado das operaes matemticas se impe ao ser humano est provavelmente na base da noo de que o conhecimento possa ser autnomo.

    A descrio que eu fiz da objetividade cientfica corresponde postura realista, que a postura do senso comum cientfico. No entanto, houve filsofos que julgaram problemtica essa doutrina (o realismo), principalmente por acharem impossvel demonstrar que existe a realidade, e que ela est estruturada, independente-mente do nosso esforo por conhec-la, ou, dito de maneira mais simples, independente do nosso pensamento. Essa dificuldade a base dos argumentos de filsofos idealistas (como Descartes ou Berkeley), que sustentaram ser o que denominamos realidade, de alguma maneira, um produto do nosso pensamento, ou de nossa conscincia. Para a posio idealista, o desafio para o filsofo entender de que modo surge da nossa conscincia a noo de um mundo exterior, ao qual nossas ideias corresponderiam.

    A posio idealista no hoje to fortemente defendida como em outras pocas, porm ela encontra seu equivalente no que se vem denominando construtivismo. Para diversos autores (so-bretudo aqueles mais familiarizados ou influenciados pelo papel desempenhado na vida humana por fatores como a lingu