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Humano Demasiado Humano Friedrich Nietzsche

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  • SUMRIO

    Prlogo1. Das coisas primeiras e ltimas2. Contribuio histria dos sentimentos morais3. A vida religiosa4. Da alma dos artistas e escritores5. Sinais de cultura superior e inferior6. O homem em sociedade7. A mulher e a criana8. Um olhar sobre o Estado9. O homem a ss consigo

    Entre amigos: um eplogo

    NotasPosfcio: Um livro soberanoGlossrio de nomes prpriosSobre o autor e o tradutor

  • PRLOGO1

    1. J me disseram com freqncia, e sempre com enormesurpresa, que uma coisa une e distingue todos os meus livros, doNascimento da tragdia ao recm-publicado Preldio a umafilosofia do futuro: todos eles contm, assim afirmaram, laos eredes para pssaros incautos, e quase um incitamento, constante enem sempre notado, inverso das valoraes habituais e doshbitos valorizados. Como? Tudo somente humano, demasiadohumano? Com este suspiro dizem que um leitor emerge de meuslivros, no sem alguma reticncia e at desconfiana frente moral,e mesmo um tanto disposto e encorajado a fazer-se defensor daspiores coisas: e se elas forem apenas as mais bem caluniadas? Jchamaram meus livros de uma escola da suspeita, mais ainda dodesprezo, felizmente tambm da coragem, at mesmo datemeridade. De fato, eu mesmo no acredito que algum, algumavez, tenha olhado para o mundo com mais profunda suspeita, e noapenas como eventual advogado do Diabo, mas tambm, falandoteologicamente, como inimigo e acusador de Deus; e quem adivinhaao menos em parte as conseqncias de toda profunda suspeita, oscalafrios e angstias do isolamento, a que toda incondicionaldiferena do olhar condena quem dela sofre, compreendertambm com que freqncia, para me recuperar de mim, comopara esquecer-me temporariamente, procurei abrigo em algum lugar em alguma adorao, alguma inimizade, leviandade,cientificidade ou estupidez; e tambm por que, onde no encontreio que precisava, tive que obt-lo fora de artifcio, de falsific-loe cri-lo poeticamente para mim ( que outra coisa fizeramsempre os poetas? para que serve toda a arte que h no mundo?).Mas o que sempre necessitei mais urgentemente, para minha cura erestaurao prpria, foi a crena de no ser de tal modo solitrio, deno ver assim solitariamente uma mgica intuio de semelhanae afinidade de olhar e desejo, um repousar na confiana da amizade,uma cegueira a dois sem interrogao nem suspeita, uma fruio deprimeiros planos, de superfcies, do que prximo e est perto, detudo o que tem cor, pele e aparncia. Talvez me censurem muita"arte" nesse ponto, muita sutil falsificao de moeda: que eu, porexemplo, de maneira consciente-caprichosa fechei os olhos cegavontade de moral de Schopenhauer, num tempo em que j eraclarividente o bastante acerca da moral; e tambm que me enganeiquanto ao incurvel romantismo de Richard Wagner, como se elefosse um incio e no um fim; tambm quanto aos gregos, tambmcom os alemes e seu futuro e talvez se fizesse toda uma listadesses tambns... Supondo, porm, que tudo isso fosse verdadeiroe a mim censurado com razo, que sabem vocs disso, que podemvocs saber disso, da astcia de autoconservao, da racionalidadee superior proteo que existe em tal engano de si e da falsidadeque ainda me necessria para que continue a me permitir o luxode minha veracidade?... Basta, eu ainda vivo; e a vida no excogitao da moral: ela quer iluso, vive da iluso... porm,vejam s, j no comeo de novo a fazer o que sempre fiz, comovelho imoralista e apanhador de pssaros falando imoralmente,

  • amoralmente, "alm do bem e do mal"?

    2. Foi assim que h tempos, quando necessitei, inventeipara mim os "espritos livres", aos quais dedicado este livromelanclico-brioso que tem o ttulo de Humano, demasiadohumano: no existem esses "espritos livres", nunca existiram mas naquele tempo, como disse, eu precisava deles comocompanhia, para manter a alma alegre em meio a muitos males(doena, solido, exlio, acedia, inatividade): como valentesconfrades fantasmas, com os quais proseamos e rimos, quandodisso temos vontade, e que mandamos para o inferno, quando setornam entediantes uma compensao para os amigos quefaltam. Que um dia podero existir tais espritos livres, que a nossaEuropa ter esses colegas geis e audazes entre os seus filhos deamanh, em carne e osso e palpveis, e no apenas, como paramim, em forma de espectros e sombras de um eremita: disso sereio ltimo a duvidar. J os vejo que aparecem, gradual e lentamente;e talvez eu contribua para apressar sua vinda, se descrever deantemo sob que fados os vejo nascer, por quais caminhosaparecer.

    3. Pode-se conjecturar que um esprito no qual o tipo do"esprito livre" deva algum dia tornar-se maduro e doce at aperfeio tenha tido seu evento decisivo numa grande liberao, eque anteriormente parecesse ainda mais atado e para sempreacorrentado a seu canto e sua coluna. O que liga mais fortemente?que laos so quase indissolveis? Para homens de espcie maisalta e seleta sero os deveres: a reverncia que prpria dajuventude, a reserva e delicadeza frente ao que digno e veneradodesde muito, a gratido pelo solo do qual vieram, pela mo que osguiou, pelo santurio onde aprenderam a adorar precisamente osseus instantes mais altos os ligaro mais fortemente, os obrigaroda maneira mais duradoura. A grande liberao, para aqueles atadosdessa forma, vem sbita como um tremor de terra: a jovem alma sacudida, arrebatada, arrancada de um golpe ela prpria noentende o que se passa. Um mpeto ou impulso a governa edomina; uma vontade, um anseio se agita, de ir adiante, aonde for,a todo custo; uma veemente e perigosa curiosidade por um mundoindescoberto flameja e lhe inflama os sentidos. "Melhor morrer doque viver aqui" o que diz a voz e seduo imperiosa: e esse"aqui", esse "em casa" tudo o que ela amara at ento! Um sbitohorror e suspeita daquilo que amava, um claro de desprezo peloque chamava "dever", um rebelde, arbitrrio, vulcnico anseio deviagem, de exlio, afastamento, esfriamento, enregelamento,sobriedade, um dio ao amor, talvez um gesto e olhar profanadorpara trs, para onde at ento amava e adorava, talvez um rubor devergonha pelo que acabava de fazer, e ao mesmo tempo umaalegria por faz-lo, um brio, ntimo, alegre tremor, no qual serevela uma vitria uma vitria? sobre o qu? sobre quem?enigmtica, plena de questes, questionvel, mas a primeira vitria: tais coisas ruins e penosas pertencem histria da grandeliberao. Ela simultaneamente uma doena que pode destruir ohomem, essa primeira erupo de vontade e fora deautodeterminao, de determinao prpria dos valores, essa

  • vontade de livre vontade: e quanta doena no se exprime nosselvagens experimentos e excentricidades com que o liberado, odesprendido, procura demonstrar seu domnio sobre as coisas! Elevagueia cruel, com avidez insaciada; o que ele captura, tem depagar a perigosa tenso do seu orgulho; ele dilacera o que o atrai.Com riso maldoso ele revolve o que encontra encoberto, poupadopor algum pudor: experimenta como se mostram as coisas, quandoso reviradas. H capricho e prazer no capricho, se ele dirige seufavor ao que at agora teve m reputao se ele ronda, curioso etentador, tudo o que mais proibido. Por trs do seu agir e vagar pois ele inquieto, e anda sem fim como num deserto seacha a interrogao de uma curiosidade crescentemente perigosa."No possvel revirar todos os valores? e o Bem no seria Mal? eDeus apenas uma inveno e finura do Demnio? Seria tudo falso,afinal? E se todos somos enganados, por isso mesmo no somostambm enganadores? no temos de ser tambm enganadores?" tais pensamentos o conduzem e seduzem, sempre mais alm,sempre mais parte. A solido o cerca e o abraa, sempre maisameaadora, asfixiante, opressiva, terrvel deusa e mater saevacupidinum [selvagem me das paixes] mas quem sabe hoje oque solido?...

    4. Desse isolamento doentio, do deserto desses anos deexperimento, ainda longo o caminho at a enorme e transbordantecerteza e sade, que no pode dispensar a prpria doena comomeio e anzol para o conhecimento, at a madura liberdade doesprito, que tambm autodomnio e disciplina do corao epermite o acesso a modos de pensar numerosos e contrrios ata amplido e refinamento interior que vem da abundncia, queexclui o perigo de que o esprito porventura se perca e se apaixonepelos prprios caminhos e fique inebriado em algum canto; at oexcesso de foras plsticas, curativas, reconstrutoras erestauradoras, que precisamente a marca da grande sade, oexcesso que d ao esprito livre o perigoso privilgio de poder viverpor experincia e oferecer-se aventura: o privilgio de mestre doesprito livre! No entremeio podem estar longos anos deconvalescena, anos plenos de transformaes multicores,dolorosamente mgicas, dominadas e conduzidas por uma tenazvontade de sade, que freqentemente ousa vestir-se e travestir-sede sade. H um estado intermedirio, de que um homem com essedestino no se lembrar depois sem emoo: uma plida, refinadafelicidade de luz e sol que lhe peculiar, uma sensao de liberdadede pssaro, de horizonte e altivez de pssaro, um terceiro termo, noqual curiosidade e suave desprezo se uniram. Um "esprito livre" esta fria expresso faz bem nesse estado, aquece quase. Assim sevive, no mais nos grilhes de amor e dio, sem Sim, sem No,voluntariamente prximo, voluntariamente longe, de prefernciaescapando, evitando, esvoaando, outra vez alm, novamente parao alto; esse homem exigente, mal-acostumado, como todo aqueleque viu abaixo de si uma multiplicidade imensa torna-se o exatooposto dos que se ocupam de coisas que no lhes dizem respeito.De fato, ao esprito livre dizem respeito, de ora em diante, somentecoisas e quantas coisas! que no mais o preocupam...

  • 5. Um passo adiante na convalescena: e o esprito livre seaproxima novamente vida, lentamente, sem dvida, e relutante,seu tanto desconfiado. Em sua volta h mais calor, mais douradotalvez; sentimento e simpatia se tornam profundos, todos os ventostpidos passam sobre ele. como se apenas hoje tivesse olhos parao que prximo. Admira-se e fica em silncio: onde estava ento?Essas coisas vizinhas e prximas: como lhe parecem mudadas! deque magia e plumagem se revestiram! Ele olha agradecido para trs agradecido a suas andanas, a sua dureza e alienao de si, aseus olhares distantes e vos de pssaro em frias alturas. Como foibom no ter ficado "em casa", "sob seu teto", como um delicado eembotado intil! Ele estava fora de si: no h dvida. Somenteagora v a si mesmo e que surpresas no encontra! Quearrepios inusitados! Que felicidade mesmo no cansao, na velhadoena, nas recadas do convalescente! Como lhe agrada estarquieto a sofrer, tecer pacincia, jazer ao sol! Quem, como ele,compreende a felicidade do inverno, as manchas de sol no muro?So os mais agradecidos animais do mundo, e tambm os maismodestos, esses convalescentes e lagartos que de novo se voltampara a vida: h entre eles os que no deixam passar o dia sem lhepregar um hino de louvor orla do manto que se vai. E, falandoseriamente: uma cura radical para todo pessimismo (o cncer dosvelhos idealistas e heris da mentira, como se sabe ) ficar doente maneira desses espritos livres, permanecer doente por um bomperodo e depois, durante mais tempo, durante muito tempo tornar-se sadio, quero dizer, "mais sadio". H sabedoria nisso, sabedoriade vida, em receitar para si mesmo a sade em pequenas doses emuito lentamente.

    6. Por esse tempo pode finalmente ocorrer, luz repentina deuma sade ainda impetuosa, ainda mutvel, que ao esprito cada vezmais livre comece a se desvelar o enigma dessa grande liberao,que at ento aguardara, escuro, problemtico, quase intangvel, nointerior de sua memria. Se por longo tempo ele mal ousouperguntar: "por que to parte? to solitrio? renunciando a tudo oque venerei? renunciando prpria venerao? por que essa dureza,essa suspeita, esse dio s suas prprias virtudes?" agora eleousa perguntar isso em voz alta e ouve algo que seria uma resposta."Voc deve tornar-se senhor de si mesmo, senhor tambm de suasprprias virtudes. Antes eram elas os senhores; mas no podem sermais que seus instrumentos, ao lado de outros instrumentos. Vocdeve ter domnio sobre o seu pr e o seu contra, e aprender amostr-los e novamente guard-los de acordo com seus fins. Vocdeve aprender a perceber o que h de perspectivista em cadavalorao o deslocamento, a distoro e a aparente teleologia doshorizontes, e tudo o que se relaciona perspectiva; tambm o qude estupidez que h nas oposies de valores e a perda intelectualcom que se paga todo pr e todo contra. Voc deve apreender ainjustia necessria de todo pr e contra, a injustia comoindissocivel da vida, a prpria vida como condicionada pelaperspectiva e sua injustia. Voc deve sobretudo ver com seusolhos onde a injustia maior: ali onde a vida se desenvolveu aomnimo, do modo mais estreito, carente, incipiente, e no entantono pode deixar de se considerar fim e medida das coisas e em

  • nome de sua preservao despedaar e questionar o que for maiselevado, maior e mais rico, secreta e mesquinhamente,incessantemente voc deve olhar com seus olhos o problema dahierarquia, e como poder, direito e amplido das perspectivascrescem conjuntamente s alturas. Voc deve" basta, o espritolivre sabe agora a qual "voc deve" obedecer, e tambm do queagora capaz, o que somente agora lhe permitido...

    7. Tal a resposta que o esprito livre d a si mesmo notocante ao enigma de sua liberao, e, ao generalizar seu caso,emite afinal um juzo sobre a sua vivncia. "Tal como sucedeu amim", diz ele para si, "deve suceder a todo aquele no qual umatarefa quer tomar corpo e 'vir ao mundo'." A secreta fora enecessidade dessa tarefa estar agindo, como uma gravidezinconsciente, por trs e em cada uma das suas vicissitudes muito antes de ele ter em vista e saber pelo nome essa tarefa.Nosso destino dispe de ns, mesmo quando ainda no oconhecemos; o futuro que dita as regras do nosso hoje. Supondoque nos seja permitido, a ns, espritos livres, ver no problema dahierarquia o nosso problema: somente agora, no meio-dia de nossasvidas, entendemos de que preparativos, provas, desvios, disfarces etentaes o problema necessitava, antes que pudesse surgir diantede ns, e como tnhamos primeiro que experimentar os maisdiversos e contraditrios estados de indigncia e felicidade na almae no corpo, como aventureiros e circunavegadores desse mundointerior que se chama "ser humano", como mensuradores de todograu, de cada "mais elevado" e "um-acima-do-outro" que tambmse chama "ser humano" em toda parte penetrando, quase semtemor, nada desprezando, nada perdendo, tudo saboreando, tudolimpando e como que peneirando do que seja acaso , at queenfim pudemos dizer, ns, espritos livres: "Eis aqui um novoproblema! Eis uma longa escada, em cujos degraus ns mesmossentamos e subimos que ns mesmos fomos um dia! Eis aquium mais elevado, um mais profundo, um abaixo-de-ns, uma longae imensa ordenao, uma hierarquia que enxergamos: eis aqui onosso problema!".

    8. Nenhum psiclogo e leitor de signos deixar de perceberpor um instante em que lugar do desenvolvimento descrito se inclui(ou est colocado ) o presente livro. Mas onde existem hojepsiclogos? Na Frana, certamente; talvez na Rssia; no naAlemanha, com certeza. No faltam motivos por que os alemes dehoje no pudessem tomar isso como uma distino: muito mau paraquem nesse ponto bem pouco alemo de nimo e de ndole! Estelivro alemo, que soube encontrar seus leitores num vasto crculode povos e terras h quase dez anos ele circula e que deveentender de msica e da arte da flauta, para seduzir tambm osouvidos estrangeiros esquivos , precisamente na Alemanha estelivro foi mais negligenciado, foi menos ouvido: por que motivo?"Ele exige muito", foi a resposta, "ele se dirige a pessoas que novivem atormentadas por uma obrigao boal, ele pede sentidosdelicados e exigentes, tem necessidade do suprfluo, dasuperfluidade de tempo, de clareza de cu e corao, de otium[cio] no sentido mais temerrio: coisas boas, que os alemes de

  • hoje no podem ter e portanto no podem dar." Depois de umaresposta to ajuizada, minha filosofia me aconselha a calar e nofazer mais perguntas; sobretudo porque em certos casos, como dizo provrbio, s se permanece filsofo mantendo o silncio.

    Nice, primavera de 1886

  • Captulo primeiroDAS COISAS PRIMEIRAS E LTIMAS

    1. Qumica dos conceitos e sentimentos. Em quase todos ospontos, os problemas filosficos so novamente formulados talcomo dois mil anos atrs: como pode algo se originar do seuoposto, por exemplo, o racional do irracional, o sensvel do morto,o lgico do ilgico, a contemplao desinteressada do desejocobioso, a vida para o prximo do egosmo, a verdade dos erros?At o momento, a filosofia metafsica superou essa dificuldadenegando a gnese de um a partir do outro, e supondo para as coisasde mais alto valor uma origem miraculosa, diretamente do mago eda essncia da "coisa em si". J a filosofia histrica, que no sepode mais conceber como distinta da cincia natural, o mais novodos mtodos filosficos, constatou, em certos casos (eprovavelmente chegar ao mesmo resultado em todos eles), queno h opostos, salvo no exagero habitual da concepo popular oumetafsica, e que na base dessa contraposio est um erro darazo: conforme sua explicao, a rigor no existe ao altrustanem contemplao totalmente desinteressada; ambas so apenassublimaes, em que o elemento bsico parece ter se volatilizado esomente se revela observao mais aguda. Tudo o quenecessitamos, e que somente agora nos pode ser dado, graas aonvel atual de cada cincia, uma qumica das representaes esentimentos2 morais, religiosos e estticos, assim como de todas asemoes que experimentamos nas grandes e pequenas relaes dacultura e da sociedade, e mesmo na solido: e se essa qumicalevasse concluso de que tambm nesse domnio as cores maismagnficas so obtidas de matrias vis e mesmo desprezadas?Haveria muita gente disposta a prosseguir com essas pesquisas? Ahumanidade gosta de afastar da mente as questes acerca daorigem e dos primrdios: no preciso estar quase desumanizado,para sentir dentro de si a tendncia contrria?

    2. Defeito hereditrio dos filsofos. Todos os filsofos tmem comum o defeito de partir do homem atual e acreditar que,analisando-o, alcanam seu objetivo. Involuntariamente imaginam"o homem" como uma aeterna veritas [verdade eterna], como umaconstante em todo o redemoinho, uma medida segura das coisas.Mas tudo o que o filsofo declara sobre o homem, no fundo, nopassa de testemunho sobre o homem de um espao de tempo bemlimitado. Falta de sentido histrico o defeito hereditrio de todosos filsofos; inadvertidamente, muitos chegam a tomar aconfigurao mais recente do homem, tal como surgiu sob apresso de certas religies e mesmo de certos eventos polticos,como a forma fixa de que se deve partir. No querem aprender queo homem veio a ser, e que mesmo a faculdade de cognio veio aser; enquanto alguns deles querem inclusive que o mundo inteiroseja tecido e derivado dessa faculdade de cognio. Mas tudo oque essencial na evoluo humana se realizou em temposprimitivos, antes desses quatro mil anos que conhecemos

  • aproximadamente; nestes o homem j no deve ter se alteradomuito. O filsofo, porm, v "instintos"3 no homem atual e supeque estejam entre os fatos inalterveis do homem, e que possamento fornecer uma chave para a compreenso do mundo em geral:toda a teleologia se baseia no fato de se tratar o homem dos ltimosquatro milnios como um ser eterno, para o qual se dirigemnaturalmente todas as coisas do mundo, desde o seu incio. Mastudo veio a ser; no existem fatos eternos: assim como no existemverdades absolutas. Portanto, o filosofar histrico doravantenecessrio, e com ele a virtude da modstia.

    3. Estima das verdades despretensiosas . marca de umacultura superior4 estimar as pequenas verdades despretensiosasachadas com mtodo rigoroso, mais do que os erros que nosofuscam e alegram, oriundos de tempos e homens metafsicos eartsticos. No incio as primeiras so vistas com escrnio, como seno pudesse haver comparao: umas to modestas, simples,sbrias, aparentemente desanimadoras, os outros to belos,esplndidos, encantadores, talvez extasiantes. Mas o que foiarduamente conquistado, o certo, duradouro e por isso relevantepara todo o conhecimento posterior, afinal superior; apegar-se aele viril e demonstra coragem, simplicidade, moderao. Aospoucos, no apenas o indivduo, mas toda a humanidade se alar aesta virilidade, quando enfim se habituar a uma maior estima dosconhecimentos slidos e durveis, e perder toda crena nainspirao e na comunicao milagrosa de verdades. certo queos adoradores das formas, com sua escala do belo e do sublime,tero boas razes para zombar inicialmente, to logo a estima dasverdades despretensiosas e o esprito cientfico comecem apredominar: mas apenas porque seus olhos no se abriram aindapara a atrao da forma mais simples, ou porque os homenseducados nesse esprito ainda no se acham plena e intimamentetomados por ele, de modo que continuam a imitar irrefletidamenteas velhas formas (e isso bastante mal, como faz quem j no seimporta muito com algo). Em tempos passados, o esprito no erasolicitado pelo pensamento rigoroso; ocupava-se em urdir formas esmbolos. Isso mudou; a ocupao sria com o simblico tornou-sedistintivo da cultura inferior; assim como nossas artes mesmas setornam cada vez mais intelectuais e nossos sentidos maisespirituais, e como atualmente julgamos, por exemplo, de maneirabem diversa da de cem anos atrs aquilo que sensualmenteharmonioso: assim tambm as formas de nossa vida se tornamcada vez mais espirituais, e para os olhos de pocas antigas talvezmais feias, mas apenas porque no conseguem ver como o reino dabeleza interior, espiritual, continuamente se aprofunda e se amplia, eem que medida, para todos ns, o olhar inteligente5 pode hoje valermais que a estrutura mais bela e a construo mais sublime.

    4. Astrologia e coisas afins. provvel que os objetos dasensibilidade religiosa, moral e esttica pertenam apenas superfcie das coisas, enquanto o ser humano gosta de crer quepelo menos nisso ele toca no corao do mundo; ele se engana,porque essas coisas o fazem to bem-aventurado e toprofundamente infeliz, e portanto mostra a o mesmo orgulho que

  • na astrologia. Esta acredita que o cu estrelado gira em torno dodestino do homem; o homem moral pressupe que aquilo que estessencialmente em seu corao deve ser tambm a essncia e ocorao das coisas.

    5. M compreenso do sonho. Nas pocas de cultura toscae primordial o homem acreditava conhecer no sonho um segundomundo real; eis a origem de toda metafsica. Sem o sonho, noteramos achado motivo para uma diviso do mundo. Tambm adecomposio em corpo e alma se relaciona antiqssimaconcepo do sonho, e igualmente a suposio de um simulacrocorporal da alma6, portanto a origem de toda crena nos espritos etambm, provavelmente, da crena nos deuses: "Os mortoscontinuam vivendo, porque aparecem em sonho aos vivos": assimse raciocinava outrora, durante muitos milnios.

    6. O esprito da cincia poderoso na parte, no no todo. O s menores campos distintos da cincia so tratados de modopuramente objetivo: j as grandes cincias gerais, tomadas noconjunto, nos levam a pr a seguinte questo pouco objetiva,sem dvida : para qu? com que utilidade? Devido a estaconsiderao pela utilidade, elas so tratadas, no conjunto, menosimpessoalmente que em suas partes. Na filosofia, pice da pirmidedo saber, a questo da utilidade do conhecimento lanadaautomaticamente, e toda filosofia tem a inteno inconsciente deatribuir a ele a mais alta utilidade. por isso que h em todas asfilosofias tanta metafsica altaneira, e tal temor das soluesaparentemente insignificantes da fsica; pois a importncia doconhecimento para a vida deve parecer a maior possvel. Eis aqui oantagonismo entre os campos particulares da cincia e a filosofia.Esta pretende, como a arte, dar vida e ao a maiorprofundidade e significao possvel; nos primeiros se procuraconhecimento e nada mais no importando o que dele resulte.At agora no houve filsofo em cujas mos a filosofia no setivesse tornado uma apologia do conhecimento; ao menos nesseponto cada um otimista, ou seja, que deve ser atribuda aoconhecimento a mais alta utilidade. Todos eles so tiranizados pelalgica: e esta , em sua essncia, otimismo.

    7. O desmancha-prazeres da cincia. A filosofia sedivorciou da cincia ao indagar com qual conhecimento da vida edo mundo o homem vive mais feliz. Isso aconteceu nas escolassocrticas: tomando o ponto de vista da felicidade, ps-se umaligadura nas veias da investigao cientfica o que se faz athoje.

    8. Explicao pneumtica da natureza7. A metafsica dpara o livro da natureza uma explicao, digamos, pneumtica,como a Igreja e seus eruditos faziam outrora com a Bblia. preciso grande inteligncia para aplicar natureza o mesmo tipo derigorosa arte interpretativa que os fillogos de hoje criaram paratodos os livros: com a inteno de meramente compreender o quequer dizer o texto, e no de farejar, ou mesmo pressupor, um duplo

  • sentido. Mas como, mesmo em relao aos livros, a m exegeseno est de modo algum superada, e como na melhor sociedadeculta ainda encontramos freqentemente resduos de interpretaoalegrica e mstica, assim tambm ocorre no tocante natureza e mesmo pior ainda.

    9. Mundo metafsico. verdade que poderia existir ummundo metafsico; dificilmente podemos contestar a suapossibilidade absoluta. Olhamos todas as coisas com a cabeahumana, e impossvel cortar essa cabea; mas permanece aquesto de saber o que ainda existiria do mundo se ela fossemesmo cortada. Esse um problema puramente cientfico e nomuito apto a preocupar os homens; mas tudo o que at hoje tornoupara eles valiosas, pavorosas, prazerosas as suposiesmetafsicas, tudo o que as criou, paixo, erro e auto-iluso; foramos piores, e no os melhores mtodos cognitivos, que ensinaram aacreditar nelas. Quando esses mtodos se revelaram o fundamentode todas as religies e metafsicas existentes, eles foram refutados.Ento resta ainda aquela possibilidade; mas com ela no se podefazer absolutamente nada, muito menos permitir que felicidade,salvao e vida dependam dos fios de aranha de tal possibilidade.Pois do mundo metafsico nada se poderia afirmar alm do seu ser-outro, um para ns inacessvel, incompreensvel ser-outro; seriauma coisa com propriedades negativas. Ainda que a existnciade tal mundo estivesse bem provada, o conhecimento dele seria omais insignificante dos conhecimentos: mais ainda do que deve ser,para o navegante em meio a um perigoso temporal, o conhecimentoda anlise qumica da gua.

    10. Inocuidade da metafsica no futuro. Logo que a religio,a arte e a moral tiverem sua gnese descrita de maneira tal quepossam ser inteiramente explicadas, sem que se recorra hiptesede intervenes metafsicas no incio e no curso do trajeto, acabaro mais forte interesse no problema puramente terico da "coisa emsi" e do "fenmeno".8 Pois, seja como for, com a religio, a arte e amoral no tocamos a "essncia do mundo em si"; estamos nodomnio da representao, nenhuma "intuio" pode nos levaradiante. Com tranqilidade deixaremos para a fisiologia e a histriada evoluo dos organismos e dos conceitos a questo de comopode a nossa imagem do mundo ser to distinta da essncia inferidado mundo.9

    11. A linguagem como suposta cincia. A importncia dalinguagem para o desenvolvimento da cultura est em que nela ohomem estabeleceu um mundo prprio ao lado do outro, um lugarque ele considerou firme o bastante para, a partir dele, tirar doseixos o mundo restante e se tornar seu senhor. Na medida em quepor muito tempo acreditou nos conceitos e nomes de coisas comoe m aeternae veritates [verdades eternas], o homem adquiriu esseorgulho com que se ergueu acima do animal: pensou ter realmentena linguagem o conhecimento do mundo. O criador da linguagemno foi modesto a ponto de crer que dava s coisas apenasdenominaes, ele imaginou, isto sim, exprimir com as palavras osupremo saber sobre as coisas; de fato, a linguagem a primeira

  • etapa no esforo da cincia. Da crena na verdade encontradafluram, aqui tambm, as mais poderosas fontes de energia. Muitodepois somente agora os homens comeam a ver que, emsua crena na linguagem, propagaram um erro monstruoso.Felizmente tarde demais para que isso faa recuar odesenvolvimento da razo, que repousa nessa crena. Tambm algica se baseia em pressupostos que no tm correspondncia nomundo real; por exemplo, na pressuposio da igualdade dascoisas, da identidade de uma mesma coisa em diferentes pontos dotempo: mas esta cincia surgiu da crena oposta (de queevidentemente h coisas assim no mundo real). O mesmo se dcom a matemtica, que por certo no teria surgido, se desde oprincpio se soubesse que na natureza no existe linha exatamentereta, nem crculo verdadeiro, nem medida absoluta de grandeza.

    12. Sonho e cultura. A funo cerebral mais prejudicadapelo sono a memria: no que ela cesse de todo mas reduzida a um estado de imperfeio, tal como deve ter sido emcada pessoa durante o dia e na viglia, nos tempos primeiros dahumanidade. Arbitrria e confusa como , confundeincessantemente as coisas, baseada nas semelhanas mais ligeiras:mas foi com essa mesma arbitrariedade e confuso que os povosinventaram suas mitologias, e ainda hoje os viajantes costumamobservar como o selvagem tende ao esquecimento, como, apsuma breve tenso da memria, seu esprito comea a titubear e, porsimples relaxamento, produz mentiras e absurdos. Mas no sonhotodos ns parecemos com o selvagem; o mau reconhecimento e aequiparao errada so a causa das inferncias ruins de que nostornamos culpados no sonho; de modo que ao recordar claramenteum sonho nos assustamos com ns mesmos, por abrigarmos tantatolice. A perfeita clareza de todas as representaes onricas,que tem como pressuposto a crena incondicional em sua realidade,lembra-nos uma vez mais os estados da humanidade primitiva, emque a alucinao era extraordinariamente freqente e s vezesatingia comunidades e povos inteiros. Portanto: no sono e nosonho, repetimos a tarefa da humanidade primitiva.

    13. Lgica do sonho. No sono, nosso sistema nervoso estconstantemente em excitao por mltiplos fatores internos, quasetodos os rgos liberam substncias e esto ativos,10 o sanguecircula impetuosamente, a posio de quem dorme pressionadeterminados membros, as cobertas influem sobre as sensaes demaneiras diversas, o estmago faz a digesto e perturba outrosrgos com seus movimentos, os intestinos se torcem, oposicionamento da cabea traz posturas musculares inslitas, osps descalos, no comprimindo o cho com a sola, causam asensao do inslito, assim como o vesturio diferente de todo ocorpo tudo isso, com sua extraordinariedade e conforme aalterao e o grau cotidianos, excita o sistema inteiro, at a funocerebral: de modo que h muitos ensejos para o esprito se admirare buscar razes para tal excitao: mas o sonho a busca erepresentao das causa s dessas sensaes provocadas, isto , dassupostas causas. Quem, por exemplo, cingir os ps com duascorreias, sonhar talvez que duas serpentes envolvem seus ps:

  • primeiramente isso uma hiptese, depois uma crenaacompanhada de representao e inveno visual: "essas serpentesdevem ser a causa desta sensao que tenho eu, que estoudormindo" assim julga o esprito de quem dorme. O passadorecente, desse modo inferido, para ele tornado presente mediantea imaginao excitada. Todos sabem, por experincia, como oindivduo que sonha entremeia rapidamente no sonho um rudoforte que lhe chega, como o repicar de sinos ou tiros de canho,isto , explica-o depois a partir do sonho, de forma que pensaexperimentar primeiro as circunstncias ocasionadoras e depois orudo. Mas como sucede que o esprito do sonhador seequivoque assim, quando esse mesmo esprito costuma ser tosbrio na viglia, to cauteloso e ctico em relao a hipteses? demodo que a primeira hiptese para explicar uma sensao imediatamente aceita como correta? (pois durante o sonhoacreditamos nele como se fosse realidade, isto , consideramos anossa hiptese totalmente demonstrada). O que quero dizer : talcomo o homem ainda hoje tira concluses no sonho, assim tambmfez a humanidade no estado da viglia, durante milnios: a primeiracausa que ocorresse ao esprito, para explicar qualquer coisa queexigisse explicao, bastava para ele e era tida como verdadeira.(Segundo relatos de viajantes, os selvagens procedem assim aindahoje.) No sonho continua a agir em ns esse antiqssimo qu dehumanidade,11 pois ele o fundamento sobre o qual evoluiu a razosuperior, e ainda evolui em cada homem: o sonho nos reconduz aestados longnquos da cultura humana e fornece um meio decompreend-los melhor. Se o pensamento onrico torna-se agorafcil para ns, porque durante imensos perodos da evoluohumana fomos treinados exatamente nessa forma de explicaofantstica e barata a partir da primeira idia que nos ocorre. Nisto osonho um repouso para o crebro, que durante o dia tem desatisfazer as severas exigncias impostas ao pensamento pelacultura superior. Um processo semelhante, verdadeira porta evestbulo do sonho, podemos observar na inteligncia desperta. Sefechamos os olhos, o crebro produz uma quantidade deimpresses luminosas e de cores, provavelmente como umaespcie de posldio e eco de todos os efeitos luminosos que openetram durante o dia. Mas a razo (juntamente com aimaginao) transforma de imediato esses jogos de cores, em siamorfos, em determinadas figuras, formas, paisagens, gruposanimados. Aqui o processo efetivo novamente uma espcie dededuo da causa a partir do efeito; ao perguntar de onde vmessas cores e impresses luminosas, o esprito supe como causaessas figuras e formas: ele as v como determinando essas cores eluzes, porque de dia, com olhos abertos, est habituado a acharuma causa determinante para cada cor e cada impresso luminosa.A imaginao continuamente lhe oferece imagens, recorrendo simpresses visuais do dia para produzi-las, e exatamente assim faza imaginao do sonho: isto , a suposta causa inferida doefeito e representada aps o efeito: tudo isso com extraordinriarapidez, de modo que, como diante de um prestidigitador, podehaver uma confuso do julgamento e uma sucesso se apresentarcomo algo simultneo, ou mesmo como uma sucesso invertida. Desses processos podemos concluir como se desenvolveu

  • tardiamente o pensamento lgico um tanto mais agudo, a rigorosainvestigao de causa e efeito, quando as nossas funes de razo einteligncia ainda hoje retornam involuntariamente quelas formasprimitivas de inferncia, e vivemos talvez metade de nossa vidanesse estado. Tambm o poeta, o artista, atribui a seus estadose disposies causas que no so absolutamente as verdadeiras;nisso ele nos recorda uma humanidade antiga e pode nos ajudar acompreend-la.

    14. Ressonncia simptica. Todos os estados de espritomais fortes trazem consigo uma ressonncia de sensaes e estadosde esprito afins: eles revolvem a memria, por assim dizer. Algoem ns se recorda e torna-se consciente de estados semelhantes eda sua origem. Assim se formam rpidas conexes familiares desentimentos e pensamentos, que afinal, seguindo-se velozmente, jno so percebidas como complexos, mas como unidades. Nestesentido fala-se do sentimento moral, do sentimento religioso, comose fossem simples unidades: na verdade, so correntes com muitasfontes e afluentes. Tambm a, como sucede freqentemente, aunidade da palavra no garante a unidade da coisa.

    15. No h interior e exterior no mundo. Assim comoDemcrito transferiu os conceitos de "em cima" e "embaixo" para oespao infinito, onde no tm sentido algum, os filsofostransportam o conceito de "interior e exterior" para a essncia e aaparncia do mundo; acham que com sentimentos profundoschegamos ao profundo interior, aproximamo-nos do corao danatureza. Mas esses sentimentos so profundos apenas na medidaem que com eles, de modo quase imperceptvel, se excitamregularmente determinados grupos complexos de pensamentos, quechamamos de profundos; um sentimento profundo porqueconsideramos profundo o pensamento que o acompanha. Mas opensamento profundo pode estar muito longe da verdade, como,por exemplo, todo pensamento metafsico; se retiramos dosentimento profundo os elementos intelectuais a ele misturados,resta o sentimento forte, e este no capaz de garantir, para oconhecimento, nada alm de si mesmo, tal como a crena forteprova apenas a sua fora, no a verdade daquilo em que se cr.

    16. Fenmeno e coisa em si. Os filsofos costumam secolocar diante da vida e da experincia daquilo que chamam demundo do fenmeno como diante de uma pintura que foidesenrolada de uma vez por todas, e que mostra invariavelmente omesmo evento: esse evento,12 acreditam eles, deve ser interpretadode modo correto, para que se tire uma concluso sobre o ser queproduziu a pintura: isto , sobre a coisa em si, que sempre costumaser vista como a razo suficiente do mundo do fenmeno. Poroutro lado, lgicos mais rigorosos, aps terem claramenteestabelecido o conceito do metafsico como o do incondicionado, eportanto tambm incondicionante, contestaram qualquer relaoentre o incondicionado (o mundo metafsico) e o mundo por nsconhecido: de modo que no fenmeno precisamente a coisa em sino aparece, e toda concluso sobre esta a partir daquele deve serrejeitada. Mas de ambos os lados se omite a possibilidade de que

  • essa pintura aquilo que para ns, homens, se chama vida eexperincia gradualmente veio a ser, est em pleno vir a ser, epor isso no deve ser considerada uma grandeza fixa, da qual sepudesse tirar ou rejeitar uma concluso acerca do criador (a razosuficiente). Foi pelo fato de termos, durante milhares de anos,olhado o mundo com exigncias morais, estticas, religiosas, comcega inclinao, paixo ou medo, e termos nos regalado nos maushbitos do pensamento ilgico, que este mundo gradualmente setornou assim estranhamente variegado, terrvel, profundo designificado, cheio de alma, adquirindo cores mas ns fomos oscoloristas: o intelecto humano fez aparecer o fenmeno13 eintroduziu nas coisas as suas errneas concepes fundamentais.Tarde, bem tarde ele cai em si: agora o mundo da experincia ea coisa em si lhe parecem to extraordinariamente distintos eseparados, que ele rejeita a concluso sobre esta a partir daquele ou, de maneira terrivelmente misteriosa, exorta renncia de nossointelecto, de nossa vontade pessoal: de modo a alcanar o essencialtornando-se essencial. Outros, ainda, recolheram todos os traoscaractersticos de nosso mundo do fenmeno isto , darepresentao do mundo tecida com erros intelectuais e por nsherdada e, em vez de apontar o intelecto como culpado,responsabilizaram a essncia das coisas como causa desseinquietante carter efetivo do mundo, e pregaram a libertao doser. Todas essas concepes sero decisivamente afastadas peloconstante e laborioso processo da cincia, que enfim celebrar seumaior triunfo numa histria da gnese do pensamento, que poderiatalvez resultar na seguinte afirmao: o que agora chamamos demundo o resultado de muitos erros e fantasias que surgiramgradualmente na evoluo total dos seres orgnicos e cresceramentremeados, e que agora herdamos como o tesouro acumulado dopassado como tesouro: pois o valor de nossa humanidade nelereside. Desse mundo da representao, somente em pequenamedida a cincia rigorosa pode nos libertar algo que tambm noseria desejvel , desde que incapaz de romper de modoessencial o domnio de hbitos ancestrais de sentimento; mas pode,de maneira bastante lenta e gradual, iluminar a histria da gnesedesse mundo como representao e, ao menos por instantes,nos elevar acima de todo o evento. Talvez reconheamos ento quea coisa em si digna de uma gargalhada homrica: que ela pareciaser tanto, at mesmo tudo, e na realidade est vazia, vazia designificado.

    17. Explicaes metafsicas. O homem jovem apreciaexplicaes metafsicas, porque elas lhe revelam, em coisas que eleachava desagradveis ou desprezveis, algo bastante significativo; e,se estiver descontente consigo mesmo, este sentimento se aliviarquando ele reconhecer o mais entranhado enigma ou misria domundo naquilo que tanto reprova em si. Sentir-se maisirresponsvel e ao mesmo tempo achar as coisas mais interessantes isso constitui, para ele, o duplo benefcio que deve metafsica. certo que depois se torna desconfiado em relao a toda espciede explicao metafsica; ento compreende, talvez, que osmesmos efeitos podem ser obtidos por outro caminho, igualmentebem e de modo mais cientfico: que as explicaes fsicas e

  • histricas produzem ao menos no mesmo grau aquele sentimentode irresponsabilidade, e talvez inflamem ainda mais o interesse pelavida e seus problemas.

    18. Questes fundamentais da metafsica. Quando algum diase escrever a histria da gnese do pensamento, nela tambm seencontrar, sob uma nova luz, a seguinte frase de um lgicoeminente: "A originria lei universal do sujeito cognoscente consistena necessidade interior de reconhecer cada objeto em si, em suaprpria essncia, como um objeto idntico a si mesmo, portantoexistente por si mesmo e, no fundo, sempre igual e imutvel, emsuma, como uma substncia".14 Tambm essa lei, a denominada"originria", veio a ser um dia ser mostrado como gradualmentesurge essa tendncia nos organismos inferiores: como os estpidosolhos de toupeira dessas organizaes vem apenas a mesma coisano incio; como depois, ao se tornarem mais perceptveis osdiferentes estmulos de prazer e desprazer, substncias distintas sogradualmente diferenciadas, mas cada uma com um atributo, isto ,uma nica relao com tal organismo. O primeiro nvel do[pensamento] lgico o juzo, cuja essncia consiste, segundo osmelhores lgicos, na crena. Na base de toda crena est asensao do agradvel ou do doloroso em referncia ao sujeito quesente. Uma terceira e nova sensao, resultado das duasprecedentes, o juzo em sua forma inferior. A ns, seresorgnicos, nada interessa originalmente numa coisa, exceto suarelao conosco no tocante ao prazer e dor. Entre os momentosem que nos tornamos conscientes dessa relao, entre os estadosdo sentir, h os de repouso, os de no sentir: ento o mundo e cadacoisa no tm interesse para ns, no notamos mudana neles(como ainda hoje algum bastante interessado em algo no nota queum outro passa ao lado). Para uma planta, todas as coisas sonormalmente quietas, eternas, cada coisa igual a si mesma. Doperodo dos organismos inferiores o homem herdou a crena deque h coisas iguais (s a experincia cultivada pela mais altacincia contradiz essa tese). A crena primeira de todo serorgnico, desde o princpio, talvez a de que todo o mundorestante uno e imvel. Nesse primeiro nvel do lgico, opensamento da causalidade se acha bem distante: ainda hojeacreditamos, no fundo, que todas as sensaes e aes sejam atosde livre-arbtrio; quando observa a si mesmo, o indivduo que senteconsidera cada sensao, cada mudana, algo isolado, isto ,incondicionado, desconexo, que emerge de ns sem ligao com oque anterior ou posterior. Temos fome, mas primariamente nopensamos que o organismo queira ser conservado; esta sensao15parece se impor sem razo e finalidade, ela se isola e se consideraarbitrria. Portanto: a crena na liberdade da vontade erro originalde todo ser orgnico, de existncia to antiga quanto as agitaesiniciais da lgica;16 a crena em substncias incondicionadas ecoisas semelhantes tambm um erro original e igualmente antigode tudo o que orgnico. Porm, na medida em que toda ametafsica se ocupou principalmente da substncia e da liberdadedo querer, podemos design-la como a cincia que trata dos errosfundamentais do homem, mas como se fossem verdadesfundamentais.

  • 19. O nmero. A inveno das leis dos nmeros se deu combase no erro, predominante j nos primrdios, segundo o qualexistem coisas iguais (mas realmente no h nada de igual), ou pelomenos existem coisas (mas no existe nenhuma "coisa"). Ahiptese da pluralidade pressupe sempre que existe algo queocorre vrias vezes: mas precisamente a j vigora o erro, a jsimulamos seres, unidades, que no existem. Nossas sensaesde espao e tempo so falsas, porque, examinadasconsistentemente, levam a contradies lgicas. Em todas asconstataes cientficas, calculamos inevitavelmente com algumasgrandezas falsas: mas, sendo tais grandezas no mnimo constantes,por exemplo, nossa sensao de tempo e de espao, os resultadosda cincia adquirem perfeito rigor e segurana nas suas relaesmtuas; podemos continuar a construir em cima deles at o fimderradeiro em que a hiptese fundamental errnea, os errosconstantes, entram em contradio com os resultados, porexemplo, na teoria atmica. Ento ainda nos sentimos obrigados asupor uma "coisa" ou "substrato" material que movido, enquantotodo o procedimento cientfico perseguiu justamente a tarefa dedissolver em movimentos tudo o que tem natureza de coisa (dematria): tambm a nossa sensao distingue entre o que se movee o que movido, e no samos deste crculo, porque a crena nascoisas est ligada a nosso ser desde tempos imemoriais. QuandoKant diz que "o intelecto no cria suas leis a partir da natureza, masas prescreve a ela",17 isso plenamente verdadeiro no tocante aoconceito de natureza, que somos obrigados a associar a ela(natureza = mundo como representao, isto , como erro), masque a soma de muitos erros da razo. A um mundo que noseja nossa representao, as leis dos nmeros so inteiramenteinaplicveis: elas valem apenas no mundo dos homens.

    20. Recuando alguns degraus. Um grau certamente elevadode educao atingido, quando o homem vai alm de conceitos etemores supersticiosos e religiosos, deixando de acreditar emamveis anjinhos e no pecado original, por exemplo, ou no mais sereferindo salvao das almas: neste grau de libertao ele deveainda, com um supremo esforo de reflexo, superar a metafsica.Ento se faz necessrio, porm, um movimento para trs: em taisrepresentaes ele tem de compreender a justificao histrica eigualmente a psicolgica, tem de reconhecer como se originoudelas o maior avano da humanidade, e como sem este movimentopara trs nos privaramos do melhor que a humanidade produziu athoje. No tocante metafsica filosfica, vejo cada vez maishomens que alcanaram o alvo negativo (de que toda metafsicapositiva um erro), mas ainda poucos que se movem algunsdegraus para trs; pois devemos olhar a partir do ltimo degrau daescada, mas no querer ficar sobre ele. Os mais esclarecidoschegam somente ao ponto de se libertar da metafsica e lanar-lheum olhar de superioridade; ao passo que aqui tambm, como nohipdromo, necessrio virar no final da pista.

    21. Presumvel vitria do ceticismo. Admitamos ummomento o ponto de partida ctico: supondo que no existisse umoutro mundo, um mundo metafsico, e que no tivssemos uso

  • para todas as explicaes metafsicas do nico mundo queconhecemos, com que olhos veramos homens e coisas? Issopodemos cogitar, til faz-lo, ainda que se rejeite a questo deKant e Schopenhauer terem cientificamente provado alguma coisametafsica. Pois, segundo a probabilidade histrica, bem possvelque um dia os homens se tornem geralmente cticos nesse ponto; aquesto ser ento: que forma ter a sociedade humana, sob ainfluncia de um tal modo de pensar? A prova cientfica dequalquer mundo metafsico j to difcil, talvez, que ahumanidade no mais se livrar de alguma desconfiana em relaoa ela.18 E quando temos desconfiana em relao metafsica, demodo geral as conseqncias so as mesmas que resultariam se elafosse diretamente refutada e no mais nos fosse lcito acreditarnela. A questo histrica relativa a um modo de pensar nometafsico da humanidade continua a mesma em ambos os casos.

    22. Descrena no "monumentum aere perennius" [monumentomais duradouro que o bronze].19 Uma desvantagem essencialtrazida pelo fim das convices20 metafsicas que o indivduoatenta demasiadamente para seu curto perodo de vida e no sentemaior estmulo para trabalhar em instituies durveis, projetadaspara sculos; ele prprio quer colher a fruta da rvore que planta, eportanto no gosta mais de plantar rvores que exigem um cuidadoregular durante sculos, destinadas a sombrear vrias seqncias degeraes. Pois as convices metafsicas levam a crer que nelas seencontra o fundamento ltimo e definitivo sobre o qual se ter deassentar e construir todo o futuro da humanidade; o indivduopromove sua salvao quando, por exemplo, funda uma igreja ouum mosteiro, ele acha que isto lhe ser creditado e recompensadona eterna vida futura da alma, que uma obra pela eterna salvaoda alma. Pode a cincia despertar uma tal crena nos seusresultados? O fato que ela requer a dvida e a desconfiana,como os seus mais fiis aliados; apesar disso, com o tempo a somade verdades intocveis, isto , sobreviventes a todas as tormentasdo ceticismo, a toda decomposio, pode se tornar to grande (nadiettica da sade, por exemplo), que com base nisso haja a decisode empreender obras "eternas". Por enquanto, o contraste entrenossa agitada, efmera existncia e o longo sossego das erasmetafsicas ainda muito forte, pois os dois perodos se achamainda muito prximos um do outro; o indivduo mesmo atravessahoje demasiadas evolues internas e externas para ousar seestabelecer duradoura e definitivamente, ainda que seja pelo tempode sua vida. Um homem totalmente moderno que queira, porexemplo, construir uma casa para si, sente como se quisesse seemparedar vivo num mausolu.

    23. A era da comparao. Quanto menos os homensestiverem ligados pela tradio, tanto maior ser o movimentointerior dos motivos, e tanto maior, correspondentemente, odesassossego exterior, a interpenetrao dos homens, a polifoniados esforos. Para quem ainda existe, atualmente, a rgidaobrigao de ligar a si e a seus descendentes a um lugar? Paraquem ainda existe algum lao rigoroso? Assim como todos osestilos de arte so imitados um ao lado do outro, assim tambm

  • todos os graus e gneros de moralidade, de costumes e de culturas. Uma era como a nossa adquire seu significado do fato de nelapoderem ser comparadas e vivenciadas, uma ao lado da outra, asdiversas concepes do mundo, os costumes, as culturas; algo queantes, com o domnio sempre localizado de cada cultura, no erapossvel, em conformidade com a ligao de todos os gneros deestilo ao lugar e ao tempo. Agora uma intensificao do sentimentoesttico escolher definitivamente entre as tantas formas que seoferecem comparao; ela deixar perecer a maioria ou seja,todas as que forem rejeitadas por este sentimento. Hoje ocorreigualmente uma seleo nas formas e hbitos da moralidadesuperior, cujo objetivo no pode ser outro seno o ocaso dasmoralidades inferiores. a era da comparao! este seu orgulho mas, como justo, tambm seu sofrimento. No tenhamosmedo desse sofrimento! Vamos, isto sim, compreender tograndemente quanto possvel a tarefa que nos imposta pela era: aposteridade nos abenoar por isso uma posteridade que sesaber tanto acima das originais culturas nacionais fechadas quantoda cultura da comparao, mas que olhar com gratido, comovenerveis antigidades, para ambas as formas de cultura.

    24. Possibilidade do progresso . Quando um estudioso dacultura antiga jura no mais lidar com pessoas que crem noprogresso, ele tem razo. Pois a cultura antiga deixou para trs suagrandeza e seus bens, e a educao histrica nos obriga a admitirque ela jamais recuperar o frescor; preciso uma estupidezintolervel ou um fanatismo igualmente insuportvel para negarisso. Mas os homens podem conscientemente decidir sedesenvolver rumo a uma nova cultura, ao passo que antes sedesenvolviam inconsciente e acidentalmente: hoje podem criarcondies melhores para a procriao dos indivduos, suaalimentao, sua educao, sua instruo, podem economicamentegerir a Terra como um todo, ponderar e mobilizar as foras dosindivduos umas em relao s outras. Essa nova cultura conscientemata a antiga, que, observada como um todo, teve uma vidainconsciente de animal e vegetal; mata tambm a desconfianafrente ao progresso ele possvel. Quero dizer: precipitado equase absurdo acreditar que o progresso deva necessariamenteocorrer; mas como se poderia negar que ele seja possvel? Poroutro lado, um progresso no sentido e pela via da cultura antiga no sequer concebvel. Se a fantasia romntica usa tambm a palavra"progresso" para seus objetivos (por exemplo, para as originaisculturas nacionais fechadas), de qualquer modo toma essa imagemdo passado; seu pensamento e sua imaginao no tm qualqueroriginalidade nesse campo.

    25. Moral privada e moral mundial. Aps o fim da crenade que um deus dirige os destinos do mundo e, no obstante asaparentes sinuosidades no caminho da humanidade, a conduzmagnificamente sua meta, os prprios homens devem estabelecerpara si objetivos ecumnicos, que abranjam a Terra inteira. A antigamoral, notadamente a de Kant, exige do indivduo aes que sedeseja serem de todos os homens: o que algo belo e ingnuo;como se cada qual soubesse, sem dificuldades, que procedimento

  • beneficiaria toda a humanidade, e portanto que aes seriamdesejveis; uma teoria como a do livre-comrcio, pressupondoque a harmonia universal tem que produzir-se por si mesma,conforme leis inatas de aperfeioamento. Talvez uma futura visogeral das necessidades da humanidade mostre que no absolutamente desejvel que todos os homens ajam do mesmomodo, mas sim que, no interesse de objetivos ecumnicos,deveriam ser propostas, para segmentos inteiros da humanidade,tarefas especiais e talvez ms, ocasionalmente. Em todo caso,para que a humanidade no se destrua com um tal governo globalconsciente, deve-se antes obter, como critrio cientfico paraobjetivos ecumnicos, um conhecimento das condies da culturaque at agora no foi atingido. Esta a imensa tarefa dos grandesespritos do prximo sculo.

    26. A reao como progresso . De vez em quando surgemespritos speros, violentos e arrebatadores, e no entanto atrasados,que conjuram novamente uma fase passada da humanidade: elesservem para provar que as tendncias novas a que se opem noso ainda bastante fortes, que ainda lhes falta algo: de outra maneiraelas resistiriam mais a esses conjuradores. A Reforma de Lutero,por exemplo, testemunha que em seu sculo todos os movimentosda liberdade de esprito eram ainda incertos, frgeis, juvenis; acincia ainda no podia levantar a cabea. O Renascimento inteiroaparece como uma primavera precoce, quase apagada novamentepela neve. Mas tambm em nosso sculo a metafsica deSchopenhauer provou que mesmo agora o esprito cientfico no ainda forte o bastante; assim, apesar de todos os dogmas cristosterem sido h muito eliminados, toda a concepo do mundo epercepo do homem crist e medieval pde ainda celebrar umaressurreio na teoria de Schopenhauer. Muita cincia ressoa nasua teoria, mas no a cincia que a domina, e sim a velha econhecida "necessidade metafsica". Sem dvida, um dos grandes einestimveis benefcios que nos vm de Schopenhauer que eleobriga nossa sensibilidade a retornar por um momento a formasantigas e potentes de ver o mundo e os homens, s quais nenhumoutro caminho nos levaria to facilmente. O ganho para a histria ea justia muito grande: creio que ningum hoje conseguiriafacilmente, sem a ajuda de Schopenhauer, fazer justia aocristianismo e seus parentes asiticos: o que impossvel,sobretudo, partindo do terreno do cristianismo existente. Somenteaps esse grande xito da justia, somente aps termos corrigido,num ponto to essencial, a concepo histrica que a era doIluminismo trouxe consigo, poderemos de novo levar adiante abandeira do Iluminismo a bandeira com os trs nomes: Petrarca,Erasmo, Voltaire. Da reao fizemos um progresso.

    27. Substituto da religio. Cremos dizer algo de bom sobreuma filosofia, quando a apresentamos como substituto da religiopara o povo. De fato, na economia espiritual so necessrios,ocasionalmente, crculos de idias intermedirios; de modo que apassagem da religio para a concepo cientfica um saltoviolento e perigoso, algo a ser desaconselhado. Neste sentido justificado aquele louvor. Mas deveramos tambm aprender, afinal,

  • que as necessidades que a religio satisfez e que a filosofia deveagora satisfazer no so imutveis; podem ser enfraquecidas eeliminadas. Pensemos, por exemplo, na misria crist da alma, nolamento sobre a corrupo interior, na preocupao com a salvao conceitos oriundos apenas de erros da razo, merecedores node satisfao, mas de destruio. Uma filosofia pode ser tilsatisfazendo tambm essas necessidades, ou descartando-as; poisso necessidades aprendidas, temporalmente limitadas, querepousam em pressupostos contrrios aos da cincia. melhorrecorrer arte para fazer uma transio, a fim de aliviar o nimosobrecarregado de sentimentos;21 pois aquelas concepes sobem menos alimentadas pela arte do que por uma filosofiametafsica. Partindo da arte, pode-se passar mais facilmente parauma cincia filosfica realmente libertadora.

    28. Palavras de m reputao. Fora com as palavras"otimismo" e "pessimismo", utilizadas at saciedade! Pois cadavez mais faltam motivos para empreg-las: apenas os tagarelasainda tm inevitvel necessidade delas. Pois por que desejariaalgum no mundo ser otimista, se no tiver que defender um deusque deve ter criado o melhor dos mundos, caso ele mesmo seja obem e a perfeio mas que ser pensante ainda necessita dahiptese de um deus? No entanto, falta igualmente qualquermotivo para uma profisso de f pessimista, se no houverinteresse em irritar os advogados de Deus, os telogos ou osfilsofos teologizantes, afirmando vigorosamente o contrrio: que omal governa, que o desprazer maior que o prazer, que o mundo uma obra malfeita, a manifestao de uma perversa vontade devida.22 Mas quem se importa ainda com os telogos excetuandoos telogos? Deixando de lado a teologia e o combate que se faza ela, fica evidente que o mundo no nem bom nem mau, etampouco o melhor ou o pior, e os conceitos "bom" e "mau" s tmsentido em relao aos homens, e mesmo a talvez no sejustifiquem, do modo como so habitualmente empregados: emtodo caso, devemos nos livrar tanto da concepo do mundo que oinvectiva como daquela que o glorifica.

    29. Embriagado pelo aroma das flores . A barca dahumanidade, pensamos, tem um calado cada vez maior, medidaque mais carregada; acredita-se que quanto mais profundo opensamento do homem, quanto mais delicado seu sentimento,quanto mais elevada sua auto-estima, quanto maior sua distnciados outros animais quanto mais ele aparece como gnio entre osanimais , tanto mais perto chega da real essncia do mundo e deseu conhecimento: isso ele realmente faz com a cincia, mas pensafaz-lo mais ainda com suas religies e suas artes. Estas so, verdade, uma florao do mundo, mas no se acham mais prximasda raiz do mundo do que a haste: a partir delas no se pode emabsoluto entender melhor a essncia das coisas, embora quasetodos o creiam. O erro tornou o homem profundo, delicado einventivo a ponto de fazer brotar as religies e as artes. O puroconhecimento teria sido incapaz disso. Quem nos desvendasse aessncia do mundo, nos causaria a todos a mais incmodadesiluso. No o mundo como coisa em si, mas o mundo como

  • representao (como erro) que to rico em significado, toprofundo, maravilhoso, portador de felicidade e infelicidade. Essaconcluso leva a uma filosofia da negao lgica do mundo: que,alis, pode se unir to bem a uma afirmao prtica do mundoquanto a seu oposto.

    30. Maus hbitos de raciocnio. Os erros de raciocnio maishabituais dos homens so estes: uma coisa existe, portanto legtima. A se deduz a pertinncia a partir da capacidade de viver, ea legitimidade a partir da pertinncia.23 Em seguida: uma opinio fazfeliz, portanto verdadeira; seu efeito bom, portanto ela mesma boa e verdadeira. A se atribui ao efeito o predicado de fazer feliz,de bom, no sentido de til, e se dota a causa com o mesmopredicado de bom, mas no sentido de vlido logicamente. O reversodessas proposies diz: uma coisa no capaz de se impor, de semanter, portanto injusta; uma opinio atormenta, agita, portanto falsa. O esprito livre, que conhece bem demais o que h de erradonessa maneira de deduzir e que tem de sofrer suas conseqncias,sucumbe freqentemente tentao de fazer as dedues opostas,que em geral tambm so erradas, naturalmente: uma coisa no capaz de se impor, portanto boa; uma opinio causa aflio,inquieta, portanto verdadeira.

    31. A necessidade do ilgico. Entre as coisas que podemlevar um pensador ao desespero est o conhecimento de que oilgico necessrio aos homens e que do ilgico nasce muita coisaboa. Ele se acha to firmemente alojado nas paixes, na linguagem,na arte, na religio, em tudo o que empresta valor vida, que nopodemos extra-lo sem danificar irremediavelmente essas belascoisas. Apenas os homens muito ingnuos podem acreditar que anatureza humana pode ser transformada numa natureza puramentelgica; mas, se houvesse graus de aproximao a essa meta, o queno se haveria de perder nesse caminho! Mesmo o homem maisracional precisa, de tempo em tempo, novamente da natureza, isto, de sua ilgica relao fundamental com todas as coisas.

    32. Necessidade de ser injusto. Todos os juzos sobre ovalor da vida se desenvolveram ilogicamente, e portanto soinjustos. A inexatido do juzo est primeiramente no modo comose apresenta o material, isto , muito incompleto, em segundo lugarno modo como se chega soma a partir dele, e em terceiro lugarno fato de que cada pedao do material tambm resulta de umconhecimento inexato, e isto com absoluta necessidade. Porexemplo, nenhuma experincia relativa a algum, ainda que eleesteja muito prximo de ns, pode ser completa a ponto de termosum direito lgico a uma avaliao total dessa pessoa; todas asavaliaes so precipitadas e tm que s-lo. Por fim, a medida comque medimos, nosso prprio ser, no uma grandeza imutvel,temos disposies e oscilaes, e no entanto teramos de conhecera ns mesmos como uma medida fixa, a fim de avaliar com justiaa relao de qualquer coisa conosco. A conseqncia disso tudoseria, talvez, que de modo algum deveramos julgar; mas se aomenos pudssemos viver sem avaliar, sem ter averso e inclinao! pois toda averso est ligada a uma avaliao, e igualmente toda

  • inclinao. Um impulso em direo ou para longe de algo, sem osentimento de querer o que proveitoso ou se esquivar do que nocivo, um impulso sem uma espcie de avaliao cognitiva sobreo valor do objetivo, no existe no homem. De antemo somos seresilgicos e por isso injustos, e capazes de reconhecer isto: eis umadas maiores e mais insolveis desarmonias da existncia.

    33. O erro acerca da vida necessrio vida . Toda crenano valor e na dignidade da vida se baseia num pensar inexato; possvel somente porque a empatia com a vida e o sofrimentouniversais da humanidade pouco desenvolvida no indivduo.Mesmo os homens raros, cujo pensamento vai alm de si mesmos,no lanam os olhos a essa vida universal, mas somente a parteslimitadas dela. Quem sabe ter em mira sobretudo as excees,quero dizer, os talentos superiores e as almas puras, quem toma oseu surgimento como objetivo de toda a evoluo do mundo e sealegra com o seu agir, pode acreditar no valor da vida, porque noenxerga os outros homens: portanto, pensa inexatamente. Domesmo modo quem considera todos os homens, mas neles admiteapenas um gnero de impulsos,24 os menos egostas, desculpandoos homens no que toca aos outros impulsos: pode tambm esperaralguma coisa da humanidade como um todo, e assim acreditar novalor da vida: portanto, tambm nesse caso por inexatido dopensar. Tanto ao proceder de um modo como do outro, porm,constitumos uma exceo entre os homens. A grande maioria doshomens suporta a vida sem muito resmungar, e acredita ento novalor da existncia, mas precisamente porque cada um quer eafirma somente a si mesmo, e no sai de si mesmo como aquelasexcees: tudo extrapessoal, para eles, ou no perceptvel ou o ,no mximo, como uma frgil sombra. Portanto, para o homemcomum, cotidiano, o valor da vida baseia-se apenas no fato de elese tomar por mais importante que o mundo. A grande falta deimaginao de que sofre faz com que no possa colocar-se na pelede outros seres, e em virtude disso participa o menos possvel deseus destinos e dissabores. Mas quem pudesse realmente delesparticipar, teria que desesperar do valor da vida; se conseguisseapreender e sentir a conscincia total da humanidade, sucumbiria,amaldioando a existncia, pois no conjunto a humanidade notem objetivo nenhum, e por isso, considerando todo o seupercurso, o homem no pode nela encontrar consolo e apoio, massim desespero. Se ele v, em tudo o que faz, a falta de objetivoltimo dos homens, seu prprio agir assume a seus olhos carter dedesperdcio. Mas sentir-se desperdiado enquanto humanidade (eno apenas enquanto indivduo), tal como vemos um brotodesperdiado pela natureza, um sentimento acima de todos ossentimentos. Mas quem capaz dele? Claro que apenas umpoeta:25 e os poetas sempre sabem se consolar.

    34. Para tranqilizar. Mas nossa filosofia no se tornaassim uma tragdia? A verdade no se torna hostil vida, ao que melhor? Uma pergunta parece nos pesar na lngua e contudo noquerer sair: possvel permanecer conscientemente na inverdade?Ou, caso tenhamos de faz-lo, no seria prefervel a morte? Pois jno existe "dever"; a moral, na medida em que era "dever", foi

  • destruda por nossa maneira de ver, exatamente como a religio. Oconhecimento s pode admitir como motivos o prazer e odesprazer, o proveitoso e o nocivo: mas como se arrumaro essesmotivos com o senso da verdade? Pois eles tambm se ligam aerros (na medida em que, como foi dito, a inclinao e a averso, esuas injustas medies, determinam essencialmente nosso prazer edesprazer). Toda a vida humana est profundamente embebida nainverdade; o indivduo no pode retir-la de tal poo sem irritar-secom seu passado por profundas razes, sem achar descabidos osseus motivos presentes, como os da honra, e sem opor zombaria edesdm s paixes que impelem ao futuro e a uma felicidade neste.Sendo isso verdadeiro, restaria apenas um modo de pensar que trazo desespero como concluso pessoal e uma filosofia da destruiocomo concluso terica? Creio que o temperamento de umhomem decidir quanto ao efeito posterior do conhecimento: eupoderia imaginar um outro efeito que no o descrito, igualmentepossvel em naturezas individuais, mediante o qual surgiria umavida muito mais simples e mais pura de paixes que a atual: demodo que inicialmente os velhos motivos do cobiar violento aindateriam fora, em conseqncia do velho costume herdado, mas aospoucos se tornariam mais fracos, sob influncia do conhecimentopurificador. Afinal se viveria, entre os homens e consigo, tal comona natureza, sem louvor, censura ou exaltao, deleitando-se commuitas coisas, como um espetculo do qual at ento se tinhaapenas medo. Estaramos livres da nfase,26 e no mais seramosaguilhoados pelo pensamento de ser apenas natureza ou mais quenatureza. Certamente, como disse, isto exigiria um temperamentobom, uma alma segura, branda e no fundo alegre, uma disposioque no precisasse estar alerta contra perfdias e erupesrepentinas, e em cujas manifestaes no houvesse trao deresmungo e teimosia essas caractersticas notrias edesagradveis de ces e homens velhos que ficaram muito tempoacorrentados. Um homem do qual caram os costumeiros grilhesda vida, a tal ponto que ele s continua a viver para conhecersempre mais, deve poder renunciar, sem inveja e desgosto, a muitacoisa, a quase tudo o que tem valor para os outros homens; deve-lhe bastar, como a condio mais desejvel, pairar livre e destemidosobre os homens, costumes, leis e avaliaes tradicionais dascoisas. Com prazer ele comunica a alegria dessa condio, e talvezno tenha outra coisa a comunicar o que certamente envolveuma privao, uma renncia a mais. Se no obstante quisermosmais dele, meneando a cabea com indulgncia ele indicar seuirmo, o livre homem de ao, e no ocultar talvez um pouco deironia: pois a "liberdade" deste um caso parte.

  • Captulo segundoCONTRIBUIO HISTRIADOS SENTIMENTOS MORAIS

    35. Vantagens da observao psicolgica . Que a reflexosobre o humano, demasiado humano ou, segundo a expressomais erudita: a observao psicolgica seja um dos meios quenos permitem aliviar o fardo da vida, que o exerccio dessa arteproporcione presena de esprito em situaes difceis e distraonum ambiente enfadonho, que mesmo das passagens maisespinhosas e desagradveis de nossa vida possamos colhersentenas, e assim nos sentir um pouco melhor: nisto se acreditava,isto se sabia em sculos passados. Por que foi esquecido nestesculo, quando, ao menos na Alemanha, e mesmo na Europa, apobreza da observao psicolgica se mostra em tantos signos?No particularmente em romances, novelas e consideraesfilosficas estas so obras de homens de exceo; um poucomais no julgamento dos eventos e personalidades pblicos; massobretudo falta a arte da dissecao e composio psicolgica navida social de todas as classes, onde talvez se fale muito daspessoas, mas no do ser humano. Por que se deixa de lado o maisrico e inofensivo tema de conversa? Por que no se lem mais osgrandes mestres da sentena psicolgica? pois, sem qualquerexagero: o homem culto que tenha lido La Rochefoucauld e seuspares em esprito e arte coisa rara na Europa; e ainda mais raroaquele que os conhea e no os insulte. Mas provvel que mesmoesse leitor incomum tenha com eles menos satisfao do quedeveria lhe dar a forma desses artistas; pois nem o esprito maisrefinado capaz de apreciar devidamente a arte de polir sentenas,se no foi educado para ela, se nela no competiu. Sem talinstruo prtica, consideramos esse criar e formar algo mais fcildo que na verdade, no sentimos com suficiente agudeza o quenele bem realizado e atraente. Por isso os atuais leitores desentenas tm com elas um prazer relativamente insignificante, malchegam a sabore-las; de modo que lhes sucede o mesmo que spessoas que examinam camafeus: as quais elogiam porque nosabem amar, e prontamente se dispem a admirar, e ainda maisprontamente a se esquivar.

    36. Objeo. Ou haveria um contrapeso tese de que aobservao psicolgica se inclui entre os atrativos e meios desalvao e alvio da existncia? No deveramos estar bastanteconvencidos das desagradveis conseqncias dessa arte, para delaafastar intencionalmente o olhar dos que se educam? De fato, umaf cega na bondade da natureza humana, uma arraigada averso anlise das aes humanas, uma espcie de pudor frente nudez daalma podem realmente ser mais desejveis para a felicidade geral deum homem do que o atributo da penetrao psicolgica, vantajosoem casos particulares; e talvez a crena no bem, em homens eaes virtuosas, numa abundncia de boa vontade impessoal nomundo, tenha tornado os homens melhores, na medida em que os

  • tornou menos desconfiados. Quando imitamos com entusiasmo osheris de Plutarco e relutamos em indagar suspeitosamente sobreas motivaes de seu agir, no a verdade, mas o bem-estar dasociedade humana que lucra com isso: o erro psicolgico e ainsensibilidade nesse campo ajudam a humanidade a avanar,enquanto o conhecimento da verdade talvez ganhe mais com afora estimulante de uma hiptese como a que La Rochefoucauldanteps primeira edio das suas Sentences et maximes morales:Ce que le monde nomme vertu n'est d'ordinaire qu'un fantmeform par nos passions, qui on donne un nom honnte pour faireimpunment ce qu'on veut [Aquilo que o mundo chama de virtudeno , via de regra, seno um fantasma formado por nossaspaixes, ao qual damos um nome honesto para impunemente fazero que quisermos]. La Rochefoucauld e outros mestres franceses doestudo da alma (aos quais recentemente se juntou um alemo, oautor das Observaes psicolgicas)27 parecem atiradores de boamira que acertam sempre no ponto escuro mas no escuro danatureza humana. Sua destreza provoca admirao, mas afinal umespectador que seja conduzido no pelo esprito da cincia, maspelo esprito humanitrio, amaldioar uma arte que parece plantarna alma humana o gosto pela diminuio e pela suspeita.

    37. No obstante. Seja qual for o resultado dos prs e doscontras: no presente estado de uma determinada cincia, oressurgimento da observao moral se tornou necessrio, e nopode ser poupada humanidade a viso cruel da mesa dedissecao psicolgica e de suas pinas e bisturis. Pois a comandaa cincia que indaga a origem e a histria dos chamadossentimentos morais, e que, ao progredir, tem de expor e resolver osemaranhados problemas sociolgicos: a velha filosofia noconhece em absoluto estes ltimos, e com precrias evasivassempre escapou investigao sobre a origem e a histria dossentimentos morais. As conseqncias podem hoje ser vistasclaramente, depois que muitos exemplos provaram que em geral oserros dos maiores filsofos tm seu ponto de partida numa falsaexplicao de determinados atos e sentimentos humanos; que, combase numa anlise errnea, por exemplo, das aes ditas altrustas,constri-se uma tica falsa; que depois, em favor desta, recorre-sede novo religio e barafunda mitolgica e que, por fim, assombras desses turvos espritos se projetam at mesmo na fsica eem toda a nossa considerao do mundo. Mas se certo que asuperficialidade da observao psicolgica estendeu e continua aestender ao julgamento e ao raciocnio humanos as mais perigosasarmadilhas, ento necessria agora a persistncia que no cansade amontoar pedra sobre pedra, pedrinha sobre pedrinha, necessria uma austera valentia, para no nos envergonharmos detrabalho to modesto e afrontarmos todo desdm de que for objeto. verdade: numerosas observaes particulares sobre o humano e odemasiado humano foram primeiramente descobertas e enunciadasem crculos sociais habituados a oferecer toda espcie de sacrifciono ao conhecimento cientfico, mas a uma espirituosa coqueteria;e o aroma deste velho bero da sentena moral um aroma muitosedutor aderiu quase que inseparavelmente a todo o gnero: demodo que por causa dele o homem de cincia manifesta

  • involuntariamente alguma desconfiana face ao gnero e a suaseriedade. Mas basta apontar as conseqncias: pois j se comea aver que produtos da mais sria natureza crescem no solo daobservao psicolgica. Qual a principal tese a que chegou um dosmais frios e ousados pensadores, o autor do livro Sobre a origemdos sentimentos morais,28 graas s suas cortantes e penetrantesanlises da conduta humana? "O homem moral" diz ele "noest mais prximo do mundo inteligvel (metafsico) que o homemfsico." Esta proposio, temperada e afiada sob os golpes demartelo do conhecimento histrico, talvez possa um dia, em algumfuturo, servir como o machado que cortar pela raiz a "necessidademetafsica" do homem se para a bno ou para a maldio dobem-estar geral, quem saberia diz-lo? mas, em todo o caso,como uma tese das mais graves conseqncias, simultaneamentefecunda e horrenda, e olhando para o mundo com aquela dupla faceque possuem todos os grandes conhecimentos.

    38. Em que medida til. Portanto: se a observaopsicolgica traz mais utilidade ou desvantagem aos homenspermanece ainda sem resposta; mas certamente necessria, pois acincia no pode passar sem ela. Mas a cincia no temconsiderao pelos fins ltimos, e tampouco a natureza; e comoesta ocasionalmente produz coisas da mais elevada pertinncia, semt-las querido, tambm a verdadeira cincia, sendo a imitao danatureza em conceitos, promover ocasionalmente, e mesmo comfreqncia, vantagem e bem-estar para os homens, e alcanar oque pertinente mas igualmente sem t-lo querido. Quem, naatmosfera de tal modo de ver, sentir o nimo demasiado frio, talveztenha muito pouco fogo em si: se olhar sua volta, no entanto,perceber doenas que requerem compressas de gelo, e homens detal maneira "moldados" com ardor e esprito que mal encontramlugar em que o ar lhes seja suficientemente frio e cortante. Almdisso, ver como indivduos e povos muito srios necessitam defrivolidades, como outros muito excitveis e inconstantes precisamtemporariamente, para sua sade, de fardos pesados e opressores:no deveremos ns, os homens mais espirituais de uma poca quevisivelmente se inflama cada vez mais, recorrer a todos os meios deextino e refrigerao existentes, de modo a continuar ao menosto firmes, inofensivos e moderados como hoje ainda somos, etalvez um dia servir a esta poca como espelho e autoconscincia?

    39. A fbula da liberdade inteligvel .29 A histria dossentimentos em virtude dos quais tornamos algum responsvel porseus atos, ou seja, a histria dos chamados sentimentos morais,tem as seguintes fases principais. Primeiro chamamos as aesisoladas de boas ou ms, sem qualquer considerao por seusmotivos, apenas devido s conseqncias teis ou prejudiciais quetenham. Mas logo esquecemos a origem dessas designaes eachamos que a qualidade de "bom" ou "mau" inerente s aes,sem considerao por suas conseqncias: o mesmo erro que faz alngua designar a pedra como dura, a rvore como verde isto ,apreendendo o que efeito como causa. Em seguida, introduzimosa qualidade de ser bom ou mau nos motivos e olhamos os atos emsi como moralmente ambguos. Indo mais longe, damos o

  • predicado bom ou mau no mais ao motivo isolado, mas a todo oser de um homem, do qual o motivo brota como a planta doterreno. De maneira que sucessivamente tornamos o homemresponsvel por seus efeitos, depois por suas aes, depois porseus motivos e finalmente por seu prprio ser. E afinaldescobrimos que tampouco este ser pode ser responsvel, namedida em que inteiramente uma conseqncia necessria e seforma30 a partir dos elementos e influxos de coisas passadas epresentes: portanto, que no se pode tornar o homem responsvelpor nada, seja por seu ser, por seus motivos, por suas aes ou porseus efeitos. Com isso chegamos ao conhecimento31 de que ahistria dos sentimentos morais a histria de um erro, o erro daresponsabilidade, que se baseia no erro do livre-arbtrio. Schopenhauer, por outro lado, raciocinou assim: desde que certasaes acarretam mal-estar ("conscincia de culpa"), deve existirresponsabilidade, pois no haveria razo para esse mal-estar se noapenas todo o agir do homem ocorresse por necessidade comode fato ocorre, e tambm segundo a viso desse filsofo , masse o prprio homem adquirisse o seu inteiro ser32 pela mesmanecessidade o que Schopenhauer nega. Partindo do fato dessemal-estar, Schopenhauer acredita poder demonstrar uma liberdadeque o homem deve ter tido de algum modo, no no que toca saes, certo, mas no que toca ao ser: liberdade, portanto, de serdesse ou daquele modo, no de agir dessa ou daquela maneira. Doesse [ser], da esfera da liberdade e da responsabilidade decorre,segundo ele, o operari [operar], a esfera da estrita causalidade,necessidade e irresponsabilidade. certo que aparentemente o mal-estar diz respeito ao operari na medida em que assim faz errneo , mas na verdade se refere ao esse, que o ato de umavontade livre, a causa fundamental da existncia de um indivduo; ohomem se torna o que ele quer ser, seu querer precede suaexistncia. A o erro de raciocnio est em, partindo do fato domal-estar, inferir a justificao, a admissibilidade racional dessemal-estar; com essa deduo falha, Schopenhauer chega fantstica concluso da chamada liberdade inteligvel. Mas o mal-estar aps o ato no precisa absolutamente ser racional: e no o ,de fato, pois se baseia no errneo pressuposto de que o ato notinha que se produzir necessariamente. Logo: porque o homem seconsidera livre, no porque livre, ele sofre arrependimento eremorso. Alm disso, esse mal-estar coisa que podemos deixarpara trs; em muitas pessoas ele no existe em absoluto, comrespeito a aes pelas quais muitas outras o sentem. algo bastantevarivel, ligado evoluo dos costumes e da cultura, s existentenum perodo relativamente breve da histria do mundo, talvez. Ningum responsvel por suas aes, ningum responde por seuser; julgar significa ser injusto. Isso tambm vale para quando oindivduo julga a si mesmo. Essa tese clara como a luz do sol; noentanto, todos preferem retornar sombra e inverdade: por medodas conseqncias.

    40. O superanimal. A besta que existe em ns quer serenganada; a moral mentira necessria, para no sermos por eladilacerados. Sem os erros que se acham nas suposies da moral, ohomem teria permanecido animal. Mas assim ele se tomou por algo

  • mais elevado, impondo-se leis mais severas. Por isso ele tem dioaos estgios que ficaram mais prximos da animalidade: de onde sepode explicar o antigo desprezo pelo escravo, como sendo um no-humano, uma coisa.

    41. O carter imutvel. Que o carter seja imutvel no uma verdade no sentido estrito; esta frase estimada significa apenasque, durante a breve durao da vida de um homem, os motivosque sobre ele atuam no arranham com profundidade suficientepara destruir os traos impressos por milhares de anos. Mas, seimaginssemos um homem de oitenta mil anos, nele teramos umcarter absolutamente mutvel: de modo que dele se desenvolveriaum grande nmero de indivduos diversos, um aps o outro. Abrevidade da vida humana leva a muitas afirmaes erradas sobreas caractersticas do homem.

    42. A ordem dos bens e a moral . A hierarquia dos bensaceita, baseada em como um egosmo pequeno, elevado ousupremo deseja uma ou outra coisa, decide atualmente acerca damoralidade ou imoralidade. Preferir um bem pequeno (por exemplo,o prazer dos sentidos) a um altamente valorizado (por exemplo, asade) tido como imoral, tanto quanto preferir a boa vida liberdade. Mas a hierarquia dos bens no fixa e igual em todos ostempos; quando algum prefere a vingana justia, ele moralsegundo a medida de uma cultura passada, imoral segundo a atual."Imoral" designa, portanto, que um indivduo ainda no sente, ouno sente ainda com fora bastante, os motivos mais elevados,mais sutis e mais espirituais trazidos pela nova cultura: designa umser atrasado, mas apenas numa diferena de grau. A prpriahierarquia dos bens no estabelecida ou alterada segundo pontosde vista morais; mas com base na sua determinao vigente decidido se uma ao moral ou imoral.

    43. Homens cruis, homens atrasados. Devemos pensar noshomens que hoje so cruis como estgios remanescentes deculturas passadas: a cordilheira da humanidade mostra abertamenteas formaes mais profundas, que em geral permanecem ocultas.So homens atrasados, cujo crebro, devido a tantos acasospossveis na hereditariedade, no se desenvolveu de forma vria edelicada. Eles mostram o que todos ns fomos, e nos infundempavor: mas eles prprios so to responsveis como um pedao degranito responsvel pelo fato de ser granito. Em nosso crebrotambm devem se achar sulcos e sinuosidades que correspondemquela mentalidade, assim como na forma de alguns rgoshumanos podem se achar lembranas do estado de peixe. Masesses sulcos e sinuosidades j no so o leito por onde rolaatualmente o curso de nosso sentimento.

    44. Gratido e vingana. A razo por que o homempoderoso grato esta. Mediante seu benefcio, o benfeitor comoque violou a esfera do poderoso e nela se introduziu: em represlia,este viola a esfera do benfeitor com seu ato de gratido. umaforma suave de vingana. Se no tivesse a compensao da

  • gratido, o poderoso teria se mostrado sem poder e depois seriavisto como tal. Por isso toda sociedade de bons, ou seja,originariamente de poderosos, situa a gratido entre os primeirosdeveres. Swift afirmou que os homens so gratos na mesmaproporo em que nutrem a vingana.33

    45. A dupla pr-histria do bem e do mal. O conceito debem e mal tem uma dupla pr-histria: primeiro, na alma das tribose castas dominantes. Quem tem o poder de retribuir o bem com obem, o mal com o mal, e realmente o faz, ou seja, quem grato evingativo, chamado de bom; quem no tem poder e no poderetribuir tido por mau. Sendo bom, o homem pertence aos"bons", a uma comunidade que tem sentimento comunal, pois osindivduos se acham entrelaados mediante o sentido da retribuio.Sendo mau, o homem pertence aos "maus", a um bando de homenssubmissos e impotentes que no tm sentimento comunitrio. Osbons so uma casta; os maus, uma massa como o p. Durantealgum tempo, bom e mau equivalem a nobre e baixo, senhor eescravo. Mas o inimigo no considerado mau: ele pode retribuir.Em Homero, tanto os troianos como os gregos so bons. Noaquele que nos causa dano, mas aquele desprezvel, tido por mau.Na comunidade dos bons o bem herdado: impossvel que ummau cresa em terreno to bom. Apesar disso, se um dos bons fazalgo que seja indigno dos bons, recorre-se a expedientes; porexemplo, atribui-se a culpa a um deus: diz-se que ele golpeou obom com a cegueira e a loucura. Depois, na alma dosoprimidos, dos impotentes. Qualquer outro homem consideradohostil, inescrupuloso, explorador, cruel, astuto, seja ele nobre oubaixo. "Mau" a palavra que caracteriza o homem e mesmo todoser vivo que se suponha existir, um deus, por exemplo; humano,divino significam o mesmo que diablico, mau. Os signos dabondade, da solicitude, da compaixo so vistos medrosamentecomo perfdia, preldio de um desfecho terrvel, entorpecimento eembuste, como maldade refinada, em suma. Com tal mentalidadeno indivduo, dificilmente pode surgir uma comunidade, no mximoa sua forma mais rude: de modo que em toda a parte ondepredomina essa concepo de bem e mal o declnio dos indivduos,de suas tribos e raas est prximo. Nossa moralidade atualcresceu no solo das tribos e castas dominantes.

    46. Compadecer, mais forte que padecer .34 Existem casosem que o compadecer mais forte do que o prprio padecer.Quando um de nossos amigos culpado de algo vergonhoso, porexemplo, sentimos uma dor maior do que quando ns mesmos osomos. Pois acreditamos mais do que ele na pureza de seu carter:ento o amor que temos a ele, provavelmente devido a essa crena, mais forte do que seu amor a si mesmo. Embora seu egosmorealmente sofra com isso mais do que o nosso, na medida em queele deve suportar mais as conseqncias ruins de sua falta, o queh em ns de altrusta palavra que nunca deve ser entendidarigorosamente, mas apenas como facilitadora da expresso mais afetado por sua culpa do que o que h nele de altrusta.

    47. Hipocondria. Existem homens que se tornam

  • hipocondracos por empatia e preocupao com outra pessoa; aespcie de compaixo que da nasce no outra coisa que umadoena. De modo que h tambm uma hipocondria crist, que atacaas pessoas solitrias e movidas pela religio, que continuamente tmdiante dos olhos a paixo e a morte de Cristo.

    48. Economia da bondade. A bondade e o amor, as ervas eforas mais salutares no trato com seres humanos, so achados topreciosos que bem desejaramos que se procedesse o maiseconomicamente possvel, na aplicao desses meios balsmicos:mas isto impossvel. A economia da bondade o sonho dos maisarrojados utopistas.

    49. Benevolncia. Entre as coisas pequenas, mas bastantefreqentes, e por isso muito eficazes, s quais a cincia deveatentar mais do que s coisas grandes e raras, deve-se incluirtambm a benevolncia; refiro-me s expresses de nimo amigvelnas relaes, ao sorriso dos olhos, aos apertos de mo, satisfaoque habitualmente envolve quase toda ao humana. No hprofessor, no h funcionrio que no junte esse ingrediente quiloque seu dever; a atividade contnua da humanidade, como queas ondas de sua luz, nas quais tudo cresce; sobretudo no crculomais estreito, no interior da famlia, a vida s verdeja e florescemediante essa benevolncia. A boa ndole, a amabilidade, a cortesiado corao so permanentes emanaes do impulso altrusta, econtriburam mais poderosamente para a cultura do que asexpresses mais famosas do mesmo impulso, chamadas decompaixo, misericrdia e sacrifcio. Mas costumamosmenosprez-las, e realmente: nelas no h muito de altrusta. Asoma dessas doses mnimas no entanto formidvel, sua fora total das mais potentes. De modo semelhante, no mundo se achamuito mais felicidade do que vem os olhos turvos: isto , secalculamos direito e no esquecemos todos os momentos desatisfao de que todo dia humano, mesmo na vida maisatormentada, rico.

    50. O desejo de suscitar compaixo. La Rochefoucauldacerta no alvo quando, na passagem mais notvel de seu auto-retrato (impresso pela primeira vez em 1658), previne contra acompaixo todos os que possuem razo, quando aconselha a deix-la para as pessoas do povo, que necessitam das paixes (no sendoguiadas pela razo) para chegarem ao ponto de ajudar os quesofrem e de intervir energicamente em caso de infortnio; enquantoa compaixo, no seu julgamento (e no de Plato), enfraquece aalma. Deveramos, sem dvida, manifestar compaixo, masguardarmo-nos de t-la: pois, sendo os infelizes to tolos,demonstrar compaixo para eles o maior bem do mundo. Talvez possamos alertar mais ainda contra a compaixo, seentendermos tal necessidade dos infelizes no exatamente comotolice e deficincia intelectual, como uma espcie de perturbaomental que a infelicidade ocasiona (assim parece entend-la LaRochefoucauld), mas como algo totalmente diverso e mais digno dereflexo. Observemos as crianas que choram e gritam a fim deinspirar compaixo, e por isso aguardam o momento em que seu

  • estado pode ser visto; tenhamos contato com doentes e pessoasmentalmente afligidas, e perguntemos a ns mesmos se oseloqentes gemidos e queixumes, se a ostentao da infelicidadeno tem o objetivo, no fundo, de causar dor nos espectadores: acompaixo que eles ento expressam um consolo para os fracos esofredores, na medida em que estes percebem ter ao menos umpoder ainda, apesar de toda a sua fraqueza: o poder de causar dor.O infeliz obtm uma espcie de prazer com o sentimento desuperioridade que a demonstrao de compaixo lhe traz conscincia; sua imaginao se exalta, ele ainda importante osuficiente para causar dores ao mundo. De modo que a sede decompaixo uma sede de gozo de si mesmo, e isso custa doprximo; ela mostra o homem na total desconsiderao de seuquerido Eu, no exatamente em sua "tolice", como quer LaRochefoucauld. Na conversa em sociedade, a maioria dasperguntas feita e a maioria das respostas dada com o objetivo decausar um pequeno mal ao interlocutor; por isso tantos tm sede desociedade: ela lhes d o sentimento de sua fora. Nessas dosesincontveis, mas muito pequenas, em que a maldad